A impressão que se tem é que, quanto mais a ciência avança em direção à cura do câncer, mais a doença mata. Isso não é inteiramente verdade nem totalmente falso. Na contramão da ciência, hábitos da vida moderna – sedentarismo, alimentação inadequada e poluição ambiental – aumentam a incidência da enfermidade, tornando a luta contra o problema cada vez mais árdua. No Brasil, para piorar, a falta de investimentos na saúde e em campanhas de prevenção colaboram muito para o número de óbitos registrados devido à doença. Segundo os últimos dados disponíveis do Instituto Nacional do Câncer (Inca), 130 mil pessoas morreram vítimas de tumores em 2002. E a previsão para este ano é do surgimento de 470 mil novos casos.

Mas não é só isso. Muito embora a oferta de novas opções contra o mal seja cada vez mais abundante, centenas de brasileiros não conseguem ser beneficiados pelas novidades rapidamente ou porque o lançamento por aqui acontece meses – ou anos – depois em relação ao resto do mundo ou simplesmente porque a droga tem preço inacessível. Por isso, em busca de remédios de novíssima geração, mais eficazes contra o tumor e menos danosos às células sadias, muitos – que podem – são obrigados a buscar tratamento no Exterior. Reflexões como essas fizeram parte do XIV Congresso Brasileiro de Oncologia Clínica, ocorrido há duas semanas no Rio de Janeiro. Um dos objetivos do encontro, que reuniu especialistas de vários países da América Latina, foi traçar uma política de atenção e combate ao câncer para a região. “Queremos medidas concretas para reduzir a incidência da mortalidade causada pelos tumores na América Latina”, explica Roberto de Almeida Gil, 53 anos, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica até o mês passado. Futuro diretor de comunicação da entidade, ele concedeu a seguinte entrevista a ISTOÉ.

ISTOÉ – É verdade que muitos brasileiros estão voltando a procurar tratamento fora do País?
Roberto de Almeida Gil

Sem dúvida. Começamos a ter dificuldade de acesso a determinados tratamentos. Não estamos conseguindo aprovar a entrada de medicamentos de ponta lançados no mercado internacional porque não se chega a um acordo de preço. Então, a alternativa de ir para fora aparece como opção para obter melhor tratamento. Isso é muito ruim. Primeiro para quem vai, que terá de se afastar de seus familiares, de seus amigos, de suas referências justamente no momento em que mais precisa desse apoio. Depois, para quem está doente e fica, resta a sensação de que a terapia que está recebendo é inferior à que receberia
se estivesse em outro país, apesar de termos profissionais altamente qualificados. Por fim, isso faz com que alguns hospitais, como o Sírio-Libanês e o Albert Einstein, em São Paulo, se especializem prioritariamente no atendimento a esse tipo de paciente, de elite. Não temos ainda números, uma estatística de quantos brasileiros estão procurando tratamento fora, mas posso afirmar isso baseado na minha rotina e na de meus colegas.

ISTOÉ – É como se fosse um país rico dentro de outro, pobre?
Roberto de Almeida Gil

Há uma enorme defasagem entre o sistema público e o serviço privado de saúde no Brasil. E está começando a aparecer também uma defasagem entre o tratamento no Brasil e nos países desenvolvidos.

ISTOÉ – O que deve ser feito?
Roberto de Almeida Gil

Temos de pressionar o governo para que defina a saúde como questão prioritária e para que coloque o câncer como prioridade dentro do projeto de saúde. Há ainda que se discutir com a indústria farmacêutica: por que os remédios têm de ser tão caros? Por mais que se diga que o desenvolvimento da pesquisa científica é dispendiosa, tem de ter limites. Se está ficando difícil para os ricos bancar esses tratamentos, imagine para o resto. Isso é muito perverso. E o mundo globalizado cria mecanismos nos quais os preços são fixados em função do mercado dos Estados Unidos. O preço americano é impossível de ser pago pela maior parte dos países em desenvolvimento. Então, temos acesso à informação, mas não ao produto.

ISTOÉ – E as novidades acabam enchendo os pacientes de esperança, não é mesmo?
Roberto de Almeida Gil

E, em geral, o que há de novo no tratamento da doença é lançado nos eventos americanos. Depois, os congressos realizados em outros países repercutem as informações, as analisam com detalhes, aproximam tudo à realidade de cada nação, do cotidiano de cada centro, para poder saber se será possível utilizar a informação ou não. Mas há muitas coisas que ficam distantes para nós devido à dificuldade de adaptação de tecnologia, por exemplo. Então, além da preocupação com o que temos de supernovidades, devemos dar a mesma importância sobre o que vale a pena ou não, o que é possível e o que não é. Esse é o desafio maior que temos no Brasil.

ISTOÉ – Por quê?
Roberto de Almeida Gil

Porque aqui temos de fazer escolha de prioridades o tempo todo. Temos menos recursos, não podemos desperdiçar. Nossa escolha é mais difícil. Ela se baseia em onde iremos investir, em quem iremos salvar. Temos, também, deficiências estruturais importantes que nos levam a diagnósticos tardios, com maior dificuldade de cura e tratamento mais dispendioso. Além disso, possuímos uma rede de assistência que não se comunica, apesar de o Sistema Único de Saúde (SUS) existir desde 1988. Todos esses fatores fazem
com que não consigamos modificar os indicadores. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, a mortalidade por câncer de mama, por exemplo, está caindo. No Brasil, está crescendo.

ISTOÉ – Quais os tipos de câncer que mais matam no Brasil?
Roberto de Almeida Gil

Em homem, pulmão e próstata. Em mulher, mama e colo uterino. A terceira causa é igual para homens e mulheres: estômago, cujo quadro mudou depois do advento da refrigeração. Conservar alimentos no refrigerador diminuiu a incidência de câncer no estômago em todos os países, mas aumentou o de intestino. Provavelmente por causa do aumento de produtos congelados com gordura saturada (tipo de gordura muito nociva presente, por exemplo, na manteiga). O câncer de intestino é a segunda causa de mortalidade dos países desenvolvidos. No Brasil, a maior incidência de câncer de estômago e esôfago é no Sul, talvez devido a hábitos alimentares que incluem consumo frequente de churrasco.

ISTOÉ – Churrasco é cancerígeno?
Roberto de Almeida Gil

Altamente cancerígeno. O churrasco agrega três fatores importantes. Primeiro, o uso do carvão. Vale lembrar que o primeiro câncer ocupacional relatado foi o de testículo na bolsa escrotal de limpadores de chaminé que moravam na Inglaterra. Eles trabalhavam com as pernas abertas e em contato com a fuligem. Segundo, por causa do processo de defumação por meio da fumaça, que faz aumentar na carne uma substância chamada nitrozanina, um potente cancerígeno, particularmente na área gastrointestinal. E, terceiro, porque o churrasco usa mais a carne vermelha e com gordura que, independentemente do processo, está relacionada a um desenvolvimento maior de câncer. Fazer um churrasco eventualmente não tem problema. Mas como dinâmica social repetitiva tem impacto em determinados indicadores de incidência.

ISTOÉ – No Brasil, temos um problema sério de diagnóstico tardio. Os mais pobres não fazem diagnóstico precoce porque têm dificuldades no acesso aos serviços de saúde. Mas e os mais ricos?
Roberto de Almeida Gil

A classe economicamente privilegiada faz mais diagnóstico precoce, mas também não tem o esclarecimento que deveria. Acreditamos que essa preocupação deve ser antecipada dentro das escolas. Alguns fatores que contribuem para o desenvolvimento do câncer estão muito presentes dentro da sociedade moderna. Começa-se a fumar mais cedo, há aumento de obesidade, sedentarismo, poluição ambiental. Há um conjunto de hábitos que precisam ser discutidos desde cedo. A Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica está desenvolvendo um programa educacional para conscientizar a população. Ela pode interferir sim. O câncer não é um processo de curto prazo. Leva, às vezes, oito, dez, 15 anos para se desenvolver. Dá tempo de interferir e modificar hábitos.

ISTOÉ – E os exames de prevenção? Também não são importantes?
Roberto de Almeida Gil

Sim, mas hoje, por exemplo, 50% dos exames papanicolaou (preventivo para câncer de colo de útero) feitos dentro do sistema público são tecnicamente inadequados, não servem, vão para o lixo. Isso faz com que o câncer de colo uterino ainda seja a principal causa de morte pela doença no Norte e Nordeste do País.

ISTOÉ – O câncer é uma doença também ligada à pobreza?
Roberto de Almeida Gil

Isso é muito importante: durante muito tempo se acreditou que as doenças de países pobres eram as infecciosas. Hoje, sabe-se que não. Cinqüenta e três por cento dos casos de câncer do mundo são encontrados nos países em desenvolvimento e 47% nos países desenvolvidos. E o que é mais grave: um terço desses tumores malignos diagnosticados nos países em desenvolvimento pode ser prevenido, como o de colo uterino e de mama (que podem ser curados em fase bem inicial). A Organização Mundial de Saúde está colocando o câncer como uma questão endêmica mundial, como problema de saúde pública para os países em desenvolvimento. Diferente do que era no passado, quando se considerava o câncer uma doença de ricos.


ISTOÉ – Quem vive muito tem um encontro marcado com o câncer?
Roberto de Almeida Gil

Existe o aumento da possibilidade, sem dúvida nenhuma. Acho que, independentemente de todos os fatores da vida moderna, quanto mais a pessoa viver, maiores são as chances de acontecer uma mutação e o indivíduo vir a desenvolver um tumor. Existe uma relação direta entre idade e incidência do câncer. Há um crescimento mundial da oncogeriatria, com tratamento específico para os idosos. Mudou também o conceito de investimento na cura do idoso. Antigamente, a família perguntava: o senhor acha que vale a pena? Os pacientes sempre querem ser tratados, sempre acham que vale a pena.

ISTOÉ – Já estamos na fase dos remédios personalizados?
Roberto de Almeida Gil

Acreditamos que no futuro vamos poder mapear geneticamente um tumor e aplicar um tratamento próprio para ele. Claro que não será específico para um paciente, mas para um grupo que tenha o mesmo tipo de tumor. Hoje já não estamos tratando todos os tumores da mesma forma.

ISTOÉ – Quanto tempo é necessário para um ex-fumante deixar de ser grupo de risco?
Roberto de Almeida Gil

De 15 a 20 anos depois que ele pára de fumar. Nesse período, ele ainda tem o mesmo risco da doença de um fumante ativo. Isso vai diminuindo com o tempo. Então, é sempre oportuno parar de fumar. O cigarro é o grande vilão não só de câncer de pulmão, mas também de boca, língua, laringe, traquéia, brônquios, esôfago, bexiga, pâncreas. Se as pessoas todas parassem de fumar, teríamos uma redução de 30% a 40% de mortes por câncer e de 50% devido à doença cardiovascular.


ISTOÉ – É verdade que a fé altera o resultado dos tratamentos?
Roberto de Almeida Gil

Há pessoas que conseguem uma energia, vontade, fé, não sei o nome. Mas o fato é que elas apresentam uma evolução diferente da doença. Eu diria que não só do ponto de vista quantitativo, de viver mais. Falo também de viver melhor. Alguns indivíduos colocam metas, como viagem, formatura de filho. Isso a gente vê todos os dias: às vezes, é biologicamente improvável que um paciente atinja aquela meta, mas ele consegue.