09/11/2005 - 10:00
Fóbico a ponto de não chegar perto de um avião, o cineasta dinamarquês Lars von Trier nunca pôs os pés nos Estados Unidos. Mas, desde Dançando no escuro, de 2000, todos os seus filmes se passam em alguma pequena cidade americana e têm alguma mazela daquele país como tema. Tudo reconstituído em estúdio, claro. Seu último trabalho, Manderlay (Manderlay, Dinamarca/
Suécia/Holanda/França/Alemanha/Estados Unidos, 2005), em cartaz nacional na sexta-feira 11, desenrola-se no ano de 1933, no Estado do Alabama. Trata da escravidão e do racismo de forma ácida, como fez com o puritanismo em Dogville, de 2003, o primeiro filme da trilogia USA – terra de oportunidades, que se encerra em 2007 com Wasington (assim mesmo, sem “h”). Os americanos, óbvio, torcem o nariz. O semanário Variety, por exemplo, chama Trier ironicamente de “professor de história americana”. Sua nova aula desenrola-se de forma distanciada, à maneira das peças do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Como no filme anterior, o solar da fazenda Manderlay, as plantações de algodão, as acomodações dos “escravos” (bem, a escravidão já tinha sido abolida nos Estados Unidos havia 70 anos, mas nessa “plantation” o sistema ainda vigora), todos os cenários enfim são apenas indicados no chão, numa marcação à maneira de diagramas. É um golpe certeiro no ilusionismo do cinema naturalista americano.
Os Estados Unidos não são alvo apenas de Trier. Na mesma sexta-feira 11 chega às telas mais dois grandes filmes: Marcas da violência (A history of violence, Estados Unidos, 2005), do canadense David Cronenberg, exame do DNA beligerante americano, e Flores partidas (Broken Flowers, Estados Unidos/França, 2005), de Jim Jarmusch que retrata uma sintomática “crise de paternidade” através de um personagem solteirão, vivido por Bill Murray. São três visões inquietantes de um país que difundiu os mitos modernos da liberdade e do individualismo, e que, por isso mesmo, se presta a grandes metáforas, como as retratadas nos títulos citados. A mais contundente é, sem dúvida, a de Manderlay, que enquadra a filha de gângster Grace Mulligan (Bryce Dallas Howard, em substituição a Nicole Kidman) esforçada em implantar idéias democráticas numa fazenda de escravos. Na pele do ex-escravo Wilhelm, Danny Glover solta a frase lapidar: de que adianta a liberdade se a sociedade não consegue nos absorver?
Não foram poucas as críticas estrangeiras que perceberam ecos da intervenção americana no Iraque na fracassada empreitada de Grace. Mesma metáfora enxergada no instinto de defesa da família demonstrado pelo dono de lanchonete Tom Stall (Viggo Mortensen), de Marcas da violência, que entra numa espiral de agressividade ao ser visitado por alguns gângsteres numa pacata cidade de Indiana. Os broncos insistem ser ele um tal de Joey Cusak, bandido foragido da Filadelfia. O próprio Cronenberg, ciente da matriz western-policial de sua obra-prima, acredita que ela ressoa na política externa de Bush, com sua “mitologia da violência”. E o que pensa disso tudo um cineasta americano como Jim Jarmusch, que sempre se comportou como um estrangeiro nos Estados Unidos? Neste momento especial, ele preferiu o registro da comédia, ao mostrar um envelhecido don-juan indo ao encontro de suas ex-amantes – vividas por Sharon Stone, Jessica Lange, Tilda Swinton e Frances Conroy – depois de receber uma carta anônima dizendo ser ele o pai de um rapaz de 19 anos. Diante do road movie desencantado, que esbarra suavemente na completa crise de valores, o espectador se pergunta: que país é este?