Em 1919, ao comentar as pesadas indenizações que a França e o Reino Unido tinham imposto à Alemanha com o Tratado de Versalhes, que marcou o fim da carnificina da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o economista britânico John Maynard Keynes escreveu um artigo que o tornaria célebre, As consequências econômicas da paz. Nele, o intelectual vitoriano denuncia a carnificina econômica dos aliados com a tentativa de extrair da Alemanha, derrotada no conflito, uma indenização que o país não teria condições de pagar sem se arruinar como nação. Para Keynes, isso levaria à destruição dos mecanismos econômicos sobre os quais fora construída a prosperidade econômica da Europa antes do conflito. Mais: se as exigências por pagamentos de dívidas impagáveis entre europeus fossem mantidas, previa, os Estados Unidos seriam os grandes beneficiários. “O que me assusta é a perspectiva do empobrecimento geral. Dentro de mais um ano não teremos mais créditos para reivindicar do Novo Mundo e, em contrapartida, este país estará hipotecado à América”, afirmava Keynes numa carta à sua mãe, ainda em 1917. Seus conselhos foram solenemente ignorados, o Reino Unido nunca mais seria o “império onde o sol nunca se põe” e a Alemanha, sob a República de Weimar, conheceria a pior crise econômica e social de sua história, que desembocaria, em 1933, na tomada do poder pelos nazistas.

Keynes não era profeta e a Argentina, claro, não pode ser comparada ao Reino Unido nem à Alemanha. Nem mesmo à Alemanha que emergiu da Primeira Guerra, embora muitos analistas econômicos enxerguem semelhanças entre a anarquia que engolfava Weimar e o caos que hoje toma conta das margens do rio da Prata. A Argentina, de qualquer forma, era até pouco tempo atrás considerada um país modelo, por ter seguido, por mais de uma década, o receituário neoliberal prescrito por Wall Street e Washington. Por isso, salta aos olhos a insensibilidade dos dirigentes ocidentais diante da crise agônica do país vizinho que faria Keynes – um defensor intransigente da estabilidade do capitalismo – se revirar no túmulo. Depois do premiê da Espanha, José María Aznar, que saiu em defesa dos interesses das empresas e bancos espanhóis, que investiram cerca de US$ 30 bilhões na Argentina, foi a vez de o presidente dos EUA, George W. Bush, exigir mais sangue dos argentinos. Em discurso proferido na quarta-feira 16 na sede da Organização dos Estados Americanos (OEA) em Washington, Bush, recém-recuperado de um desmaio provocado pela ingestão desastrada de um pretzel, afirmou que “alguns estão questionando o caminho da prosperidade, alguns se perguntam se as reformas pró-mercado não são penosas demais para continuar, alguns põem em questão a equidade de um comércio livre e aberto, acenando com o falso conforto do protecionismo”. O mandatário não se fez de rogado ao posar de porta-voz da massa dos excluídos das Américas: “As esperanças de nossos povos, das favelas do Rio e de Caracas aos trabalhadores migrantes da Califórnia, passando pelos aposentados de Buenos Aires, repousam numa maior liberdade: mercados mais livres e comércio aberto são as melhores armas contra a pobreza, a doença e a tirania”, declarou. Por fim, Bush admitiu que Tio Sam está “profundamente preocupado” com as dificuldades que a “amiga e aliada Argentina e seu grande povo enfrentam” e prometeu lançar uma bóia para socorrer o náufrago – se este se comportar, bem entendido. “Uma vez que a Argentina se comprometa com um plano econômico sólido e sustentável, daremos nosso apoio por meio das instituições financeiras internacionais.”

Enfrentando críticas e pressões de todos os lados, o governo do presidente Eduardo Duhalde, que assumiu no dia 2 de janeiro, já contabiliza derrotas e trapalhadas. Por dois dias consecutivos, o Banco Central teve que intervir no mercado para segurar a cotação da moeda americana, que chegou a atingir 2,20 pesos por dólar – o câmbio oficial é de 1,40 peso/dólar, gastando cerca de US$ 18 milhões. Isso enquanto o presidente do Banco Central do Brasil, Armínio Fraga, explicava aos seus colegas argentinos como o Brasil conduziu a desvalorização do real em 1999. Na quinta-feira 17, o presidente do Banco Central, Roque Maccarone, renunciou. Um dia antes, por ordem do presidente Duhalde, o BC teve que voltar atrás na decisão de manter as dívidas hipotecárias superiores a US$ 100 mil cotadas pelo câmbio livre.

Os bancos parecem estar vencendo a primeira queda-de-braço com o governo. O setor se recusava a assumir as perdas decorrentes da desvalorização da moeda argentina. As maiores críticas eram a “pesificação”, a transformação das dívidas de até US$ 100 mil em pesos e a manutenção dos depósitos dos correntistas em dólares. Os bancos argentinos – a maioria controlada por capital estrangeiro – têm depósitos no valor de US$ 67 bilhões e empréstimos e financiamentos de US$ 75 bilhões; cerca de 70% dos depósitos são denominados em dólares. Na quarta-feira 16, o vice-ministro da Fazenda, Jorge Todesca, anunciava que os depósitos em cadernetas de poupança poderiam ser sacados apenas em pesos, de acordo com o câmbio oficial. No dia seguinte, o próprio Todesca anunciou uma flexibilização no chamado “corralito” (curralzinho, o confisco dos depósitos decretado em dezembro): os titulares de cadernetas de poupança em dólares poderão convertê-los em pesos, até o valor de US$ 5 mil, ao câmbio oficial. Com isso, os correntistas poderiam fazer saques graduais, dentro dos limites entre 1.200 e 1.500 pesos mensais.

O único “refresco” que o governo de Duhalde teve durante a semana foi a aceitação, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), de um pedido da Argentina para adiar por um ano o pagamento de uma parcela de US$ 934 milhões dos empréstimos fornecidos ao país em janeiro do ano passado e que venciam na quinta-feira 17. O problema é que essa parcela, parte do Programa de Suplementação de Reservas, tem juros de 3% acima dos custos dos recursos regulares do FMI. Em outras palavras, trata-se do dinheiro mais caro do Fundo. Enquanto isso, a Justiça investigava a denúncia de que bancos como o espanhol BBVA e o britânico HSBC, entre outros, teriam participado, pouco antes do confisco, de uma retirada ilegal de US$ 26 bilhões para o exterior. Como definiu o presidente Duhalde numa entrevista coletiva para correspondentes estrangeiros, “na Argentina, nos sentimos em um pântano em que não sabemos se já tocamos o fundo. Estamos próximos de um banho de sangue”.