Há 26 anos, o pediatra Leonardo Posternak, 54 anos, deixou para trás sua terra natal, Buenos Aires. Desembarcou no Brasil e a nova moradia, antes vista como temporária, o deixou tão apaixonado que virou sua casa. Com clínica particular em São Paulo e integrante do Departamento de Pediatria do Hospital Israelita Albert Einstein, também na capital paulista, não sente falta nem mesmo do tango, dança típica da região onde nasceu. Apesar de admirar as belas coreografias, Posternak não arrisca nenhum passo. Se nesse campo ele não ousa bailar, o mesmo não se pode dizer sobre seu gosto pela arte de escrever. Cheio de histórias de pais e filhos para contar, o pediatra aproveitou a experiência para relatar, em livros, muito do que aprende sobre as relações entre a família, a saúde e as crianças. O primeiro livro, E agora, o que fazer? A difícil arte de criar os filhos, foi escrito em co-autoria com a psicanalista Magdalena Ramos e teve sua primeira edição esgotada. Agora, Posternak se prepara para lançar O direito à verdade – cartas para uma criança, que tem previsão de chegar às livrarias entre março e abril. A obra é escrita em forma de cartas para a garotada. Nelas, o especialista responde às perguntas mais frequentes dos pais que vão ao seu consultório. Os assuntos tratados são o divórcio, a morte de um parente e adoção, entre outras questões. O objetivo é ajudar a família e os profissionais que lidam com as crianças a conversar com os pequenos sobre assuntos delicados, mas que não devem ser omitidos. “As coisas que não são faladas não são pensadas. Ficam incompreendidas e desconhecidas, gerando insegurança e angústia”, defende o médico. E muitas vezes a maneira de as crianças expressarem suas aflições é usar a linguagem do corpo. Um exemplo é fazer muito xixi na cama. Pai de Luciana, 28 anos, e Thiago, 23, Posternak tem respaldo para defender essa tese. São 30 anos de experiência clínica e um curso na área de psicanálise que o ajudaram a analisar a criança como um indivíduo completo e complexo, sempre dentro do contexto familiar e social. Foi para falar a respeito do seu trabalho que ele recebeu ISTOÉ em seu consultório.

ISTOÉ – Quais são as dúvidas mais frequentes relatadas no livro?
Posternak

As cartas retratam situações que deixam os pais muito atrapalhados na hora de conversar com as crianças. Na carta introdutória, escrevo sobre o direito de a criança saber a verdade. Depois, abordo outros temas, como contar à criança sobre a separação dos pais, revelar o fato de ela ser adotada, o que dizer quando ela tem de ser hospitalizada ou se perdeu um ser amado. Também escrevo para a criança que começar a ir à escola, vai ganhar um irmão, faz xixi na cama, não come ou não dorme sozinha. São questões que, se não forem bem resolvidas, podem prejudicar os filhos e as famílias.

ISTOÉ – Por que o sr. escreveu o livro em forma de cartas?
Posternak

Elas me permitem falar com as crianças usando uma linguagem simples que não menospreza a inteligência delas. Não adianta conversar com elas como se fossem pequenos tolos, na língua do “tatibitate”, ou usarmos uma linguagem complicada. Nas duas situações, é como se não desejássemos ser compreendidos. A omissão também é uma forma de mentira.

ISTOÉ – O sr. poderia comentar o conteúdo de algumas cartas?
Posternak

Vamos começar com a separação dos pais. Escrevo na carta que a situação é bastante frequente. Quando as pessoas se casam acham que é para sempre. Às vezes dá certo, outras não. Para a criança é uma experiência dolorosa, mas nem por isso se deve esconder a verdade. Com a mentira, constroem-se equívocos que atrapalham a vida da criança, como pensar que os pais se separaram por não amá-la mais, como castigo por ela ter pensado ou feito algo errado ou que só um dos pais seja o culpado pela separação. Mas nessa história não existem mocinhos ou bandidos. Meu papel é tentar desfazer esses equívocos. Deixo claro que o divórcio é algo possível. Porém, os pais jamais se separam dos seus filhos. Se a verdade é escondida, os pequenos podem pensar que os pais são “monstros” por se separarem ou até que o divórcio ocorreu por culpa deles. Também falo sobre as novas famílias que se formam após a separação.

ISTOÉ – Em que outra situação os pais têm dificuldade de conversar com os filhos?
Posternak

Contar sobre a morte de um parente. É uma enorme dificuldade que os adultos têm e eles acabam criando fantasmas na cabeça das crianças. Não adianta dizer para um filho que perdeu um ser querido que ele está viajando a trabalho ou no céu olhando para a criança. A morte está presente nas ruas, dentro de casa… Para que negá-la? Isso só provoca dúvidas e expectativas na mente infantil, sendo motivo de dor e sofrimento. Os pequenos têm o direito de colocar a pessoa amada onde quiserem. Contudo, precisam saber que ela não vai mais voltar. No livro, uso histórias de meus pacientes com nome fictício. Um deles ficou com fobia – medo inexplicável e irracional – de voar porque os pais disseram que a avó falecida tinha viajado de avião. É preciso entender que não há volta. Só as saudades e as boas lembranças é que ficam.

ISTOÉ – Mas nem sempre é fácil falar de temas como esse.
Posternak

Falar da morte é falar de nossa própria morte e finitude. E isso não é fácil. Porém, quem falou que criança não pode ou não deve sentir dor ou saudade? A nossa cultura ocidental acredita que elas devam ficar alienadas dos problemas para não sofrer frustrações. Está errado. É como se imaginássemos que o fato de não passar na frente de uma favela faria a miséria deixar de existir para elas. Quando as crianças ficam sabendo, têm a oportunidade de elaborar uma solução para o caso. Já a mentira não permite isso, pois ela engana e o indivíduo fica alienado do contexto. O livro fala do direito da criança à verdade e reflete com os pais como abordá-la com os filhos.

ISTOÉ – Então, no caso da perda de alguém, como agir?
Posternak

É preciso contar a verdade aos poucos, deixando a criança assimilar as respostas no ritmo dela, respeitando sua vontade de saber ou não. Contar tudo rapidamente pode significar: “Já fiz o certo, entreguei a batata quente na mão dela. Agora se vire.” Não podemos agir assim. Devemos ficar perto dos filhos, responder suas dúvidas e observar as reações. Se após dez a 12 meses da perda eles continuarem diferentes e tristes, o ideal é procurar um psicólogo.

ISTOÉ – Qual a recomendação para os pais que adotaram uma criança?
Posternak

Numa consulta, uma mãe adotiva falou que o filho biológico sai da barriga para encontrar seus pais e que o adotivo entra no coração dos pais para também os encontrar. No livro, reflito sobre o sofrimento de muitos pais adotivos por imaginarem que perderão o amor dos filhos na hora de revelar a verdadeira origem. Por isso, protelam a conversa, às vezes definitivamente. Eles devem ser ajudados a entender que a biologia não define os afetos, vínculos amorosos ou a confiança entre pais e filhos.

ISTOÉ – E quando a criança precisa ser hospitalizada?
Posternak

Se, por exemplo, ela for fazer uma cirurgia daqui a um mês, existem várias maneiras de os pais a prepararem. Esse processo é fundamental. A criança liga a palavra hospital a doença grave ou morte. Em geral ela conhece alguém que foi internado e morreu. É importante lembrar que a internação é uma fratura do cotidiano e a criança está sendo levada para um lugar com cheiros, gente e uma rotina diferente da sua casa. Além do trauma e da dor dos procedimentos clínicos ou cirúrgicos. É preciso dizer a verdade e deixá-la falar sobre seus medos e fantasias, aceitar as mudanças de humor e ainda aguentar as “marteladas” de perguntas como: “Eu vou morrer”? Para explicar o que irá acontecer, a família pode, por exemplo, pegar um boneco de estimação do filho e simular os fatos reais com uma brincadeira. Vamos supor que a criança irá operar as amígdalas. O pai pode mostrar onde será dada a anestesia, explicar como serão retiradas as amígdalas da garganta, informando a criança que isso é necessário para ela não ter mais febre e poder voltar a brincar. Se não cuidarmos desses detalhes, uma cirurgia bem- sucedida tecnicamente pode deixar sequelas psico-emocionais nos pequenos.

ISTOÉ – O que essas situações têm a ver com a saúde dos filhos?
Posternak

A criança vive em família e ambos em sociedade. Assim, ela sente as decisões tomadas nesses contextos. A saúde da criança se apóia na saúde do grupo familiar. Quando o casal está discutindo por causa de problemas financeiros ou pessoais, os filhos podem manifestar suas angústias perante a situação fazendo xixi na cama ou deixando de comer, por exemplo. Eles usam o corpo como forma de linguagem para mostrar que algo não está bem, pois nem sempre conseguem se expressar verbalmente de forma clara. Cada indivíduo tem seu ponto fraco ou órgão de choque, por isso as manifestações de ansiedade podem aparecer como crises de bronquite, gastrite…

ISTOÉ – Como saber se a doença tem fundo emocional?
Posternak

As relações entre emoções e saúde são observadas no cotidiano do consultório. Para chegar a essa conclusão, deve-se verificar se o problema não tem causa orgânica. A realização de exames é imprescindível para chegar ao diagnóstico. Se nada for encontrado, parte-se para a segunda etapa. É necessário saber, por exemplo, se a doença está relacionada a determinados eventos, como a separação entre pais e filhos nas segundas-feiras, após um fim de semana juntos.

ISTOÉ – O que o sr. recomenda para crianças que não comem e para aquelas que não dormem?
Posternak

Primeiro, uma boa conversa com os pais, revendo rotinas, normas familiares, limites e a exposição ou não da criança a doses toleráveis de frustração, fatores que podem ter levado à construção de um pequeno tirano, insone ou inapetente. As crianças com esses problemas não respeitam os limites. Em geral, os pais são cúmplices e vítimas dos fatos. Para que o filho durma, um dos pais dorme com ele no quarto infantil, ou a criança dorme na cama dos pais, desarrumando a arquitetura familiar. Para que comam, se constrói um circo, onde os adultos viram palhaços, leões ou equilibristas para distrair o filho e assim alimentá-lo.

ISTOÉ – O que deve ser feito quando a criança sente ciúme diante do nascimento de um irmão?
Posternak

É muito bom quando a criança verbaliza o medo de perder o amor dos pais e seu espaço. E ninguém perde o trono impunemente. A criança luta, faz bagunça e azucrina a vida dos pais. Eles precisam explicar que o amor é suficiente para todos os filhos. É preciso enfrentar o problema, sem deixar, obviamente, de impor limites, de exercer sua autoridade. Se a família não agir assim, a criança pode realmente acreditar que o nascimento do outro bebê é algo terrível que está sendo compensado pelos pais. No entanto, se a criança só recebe broncas e castigo sem a mínima tentativa de compreensão sobre o que está acontecendo com ela, pode-se estar facilitando a confirmação fantasiosa de que ela está sendo preterida e abandonada.

ISTOÉ – Como é o retorno do seu trabalho?
Posternak

Não há uma receita. São saídas individuais, e muitas vezes tento chegar à solução junto com os pais. Cada família sabe o que quer da vida. E isso não começa pelo que você exige de seu filho, mas pelo que você exige de si próprio. Se você quer um carro do ano, por exemplo, irá trabalhar todo domingo à noite para conseguir. Mas será que esse carro significa a felicidade da família? É óbvio que não. E muitas vezes as crianças vão agir da mesma maneira que os pais. Vão aprender que para ser feliz é necessário virar um gênio, fazer mil coisas ao mesmo tempo. É por isso que nessas situações se torna necessária a intervenção do pediatra. O médico pode ajudar no desenvolvimento de todo o grupo familiar.

ISTOÉ – O sr. se considera um bom pai?
Posternak

Adoraria poder responder rapidamente que sim. Infelizmente, não posso. Como muitos pais, preciso trabalhar muito, gosto do que faço e às vezes me sinto ambivalente e contraditório. Mas no decorrer de minha vida percebi que não há como solucionar certas contradições. Contudo, é preciso conhecê-las. A primeira vez que pensei nisso falava numa conferência para colegas sobre o papel do pai na sociedade e estava fora de casa há 14 horas. Disse ao público que não conseguia pôr em prática o que discutia na teoria. Pensei que não deveria ter aceito aquela conferência. Depois refleti e cheguei à conclusão de que continuarei aceitando. Não posso deixar de lado meu papel de pediatra. Não consigo me dedicar apenas a criar filhos, pois não conseguiria ser feliz. Grave mesmo é estar ausente quando presente, escondido atrás do jornal ou da tela do computador. É mais coerente estar ausente fora de casa, pois a criança compreende melhor. É importante saber dosar o papel de pai e profissional. Você não pode ser um bom pai se não está gratificado profissionalmente. Se não tem dinheiro para sustentar sua família. Acho que cada casal deveria tentar definir o que é ser bons pais. Será que é oferecer todo o conforto para nossos filhos? Muitas vezes agimos assim sem saber o que estamos perseguindo. As únicas pessoas que podem nos dar essa resposta são nossos filhos, quando eles crescem.