Cara amarrada, respostas monossilábicas, ar de quem está pronto para uma briga. Quem nunca foi vítima de uma manifestação de mau humor? Em tempos difíceis como os atuais, então, nada mais fácil do que ser acometido ou despejar em cima do coitado mais próximo um acesso de irritação extrema. No entanto, um dado da Organização Mundial de Saúde (OMS) tem preocupado uma boa parcela dos psiquiatras. De acordo com a entidade, 3% da população mundial – cerca de 180 milhões de pessoas – estão sofrendo da doença do mau humor. Trata-se, como o próprio nome diz, de uma patologia. E como grande parte das enfermidades psiquiátricas, a distimia, como o problema foi denominado, causa prejuízos não só à saúde. Tem repercussão na vida familiar, social e profissional.

Ser vítima da doença é diferente de ter episódios de cara feia.
Perder a esportiva quando o carro quebra é normal. Esse estado
de espírito se torna patológico quando está sempre presente, independentemente de acontecer algo positivo ou negativo. “O doente fica de mau humor por causa dos outros, do trânsito, porque está chovendo”, explica o psiquiatra Antonio Egídio Nardi, professor
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Uma pessoa que procura vaga para estacionar o automóvel fica mal-humorada se não
a encontra. O distímico fica mal-humorado se a achar ou não. Se a localizar, vai concluir que a vaga não é boa, por isso estava sobrando, que alguma coisa dará errada, etc. Mas a distimia se caracteriza
também por outros sintomas.

Mitos – Para que a doença seja diagnosticada, é preciso que os sintomas estejam presentes por no mínimo dois anos. Essa medida de tempo serve para diferenciar o abatimento de uma pessoa em uma má fase profissional ou pessoal de outra cujo mau humor seja cotidiano e tenha sobrevivido por mais tempo. Um grande problema para o diagnóstico é separar a distimia da depressão, já que há semelhança nas manifestações. “Mas o deprimido tem humor triste, enquanto o distímico apresenta humor irritado”, diz Nardi. Na verdade, identificar a enfermidade é um desafio. Primeiro, porque a doença é pouco conhecida. Depois, porque se trata de um assunto cercado de mitos. É comum as pessoas encararem o estado de ânimo como algo natural da personalidade. “Muita gente sofre anos sem saber que está doente e que essa é a causa de estar sempre de mal com a vida”, explica Táki Cordás, professor da Universidade de São Paulo e autor do livro Distimia, do mau humor ao mal do humor.

As causas da doença não estão elucidadas. Mas, a exemplo do que ocorre com a maioria das patologias psiquiátricas, imagina-se que a distimia seja provocada por fatores genéticos, ambientais e psicológicos. Entre estes últimos, estão conflitos em casa e superproteção ou educação rígida demais. Também não se conhece com precisão suas repercussões no organismo. Já se sabe, no entanto, que o paciente apresenta uma disfunção que leva ao desequilíbrio de substâncias que fazem a comunicação entre os neurônios. Entre elas estão a serotonina e a noradrenalina, envolvidas no processamento das emoções. O doente também é mais vulnerável à dor. Na opinião do psiquiatra Nardi, isso se deve muito ao fato de o distímico sempre achar que está doente. “Ele tem mais queixas físicas, até por ser mais tenso e pelo pessimismo em relação a tudo”, diz. As dores mais frequentes são as de cabeça, as musculares e as de estômago. “Há relatos de baixa imunidade e alteração de pressão arterial”, completa a psiquiatra Alexandrina Meleiros, do Hospital das Clínicas de São Paulo (HC/SP).

Embora não tenha a configuração de patologia,
o mau humor eventual também traz estragos à saúde – entre eles, o enfraquecimento da capacidade de defesa do organismo. Além disso, a irritação pode levar a um isolamento, não tão grave quanto o imposto pela distimia, obviamente. Pior ainda. Está provado que mau humor leva a mau humor, num ciclo prejudicial ao indivíduo e ao ambiente. “Criança com pais mal-humorados aprende a ser mal-humorada. Na adolescência, a pessoa começa a ser excluída dos programas com os colegas e dos trabalhos de grupo”, afirma a psiquiatra Alexandrina Meleiro.

É fácil imaginar o estrago dessa corrente também na vida de uma empresa. Como é sabido que mau humor pega, há uma espécie de efeito cascata. A irritação do chefe contamina o subordinado e assim por diante. O resultado é que o que pode ser uma tarefa difícil certamente o será. A produtividade fica ameaçada. No entanto, as companhias estão alertas para essa constatação. Hoje, há uma tendência mundial de evitar funcionários zangados. “Nos Estados Unidos, é comum empresas excluírem o mal-humorado na fase de recrutamento”, explica Ricardo De Machi, presidente da Corporation and Personal Health, empresa especializada na criação de projetos de qualidade de vida no trabalho. É certo que, onde os funcionários têm um astral melhor, há maior produção e, consequentemente, maior lucro. “O bom humor deixa as pessoas mais criativas e flexíveis”, diz De Machi.

Empresas – No Brasil, a tendência de cuidar também do humor do empregado começa a despontar. Na Coca-Cola, no Rio, desde 2000 estão sendo implantadas ações nesse sentido. As medidas incluem a instalação de uma academia de ginástica, abolição do terno e gravata, plano de saúde com cobertura nos melhores hospitais (o que certamente melhora o humor de qualquer um) e a criação do summer day. “No verão, em duas sextas-feiras do mês, todos saem às 13 horas para curtir o dia”, explica Mônica Vieira, gerente de Saúde e Ambiente no Trabalho da multinacional no Brasil. “Sabemos que mau humor acarreta postura negativa e nós queremos um ambiente saudável”, completa.

Esse tipo de ação de fato melhora o astral. Outra estratégia sugerida pelos especialistas para acabar com o mau humor comum é incluir a positividade na maneira de lidar com os problemas cotidianos. Fazer exercícios físicos também é uma opção. A atividade libera endorfina, verdadeiro bálsamo para as dores e responsável por sensação de bem-estar. Pode-se ainda praticar um hobby realmente prazeroso, submeter-se a métodos que promovem o relaxamento (ioga e massagens são ótimas alternativas) e até procurar ajuda psicológica. Conviver com mal-humorados também exige estratégia de sobrevivência. Nesse caso, o segredo é não se deixar contaminar, garante a filósofa Susan Leibig, de São Paulo. “Se uma pessoa lhe trata de forma mal-humorada e você acha que é pessoal, acaba contrariado e mal-humorado também”, explica.

Profissionais que lidam diretamente com o público tentam obedecer a essa cartilha. O operador de atendimento de um plano de saúde, o carioca Márcio Silva, 32 anos, cansou de ouvir desaforos. “Se eu disser para a pessoa manter a calma, fica pior. A irritação cresce”, diz. Nessas horas, há um recurso. “Peço para esperar um minuto, aperto o mute (botão que interrompe a comunicação momentaneamente) e desabafo com alguém por perto ou comigo mesmo. Esse tempo serve para a pessoa se acalmar”, conta. A empresa faz a sua parte. Os funcionários contam com a orientação de fisioterapeutas para a realização de exercícios de relaxamento. O objetivo é alcançado. “Nunca terminei o expediente de mau humor”, garante Márcio. O bancário Luis Gonzaga Filho, 42 anos, gerente de uma agência no Rio, também dispõe de suporte e treinamento da empresa para não entrar no clima de mau humor. “A filosofia do banco é a de que não interessa como o cliente chega nas agências, mas de que maneira sai delas”, explica. É onde entra sua capacidade de manter a calma e afastar caras feias. “Meu temperamento calmo é fundamental, mas também é importante ter uma família feliz e estruturada”, diz.

Isolamento – Um dos problemas mais graves associados à enfermidade é o fato de a distimia predispor à depressão. Segundo a OMS, 70% dos adultos com depressão tiveram distimia na infância ou adolescência. E o número de jovens vítimas da doença é preocupante. No Rio, dezenas deles são atendidos na Neuropsiquiatria Infantil da Santa Casa. “Atendemos crianças que acham que tudo vai dar errado, não têm interesse em nada”, diz o médico Fábio Barbirato, chefe do serviço.

Nesses casos, os prejuízos também são grandes. Uma pesquisa com 78 crianças e adolescentes de seis a 16 anos atendidos no centro mostrou resultados inquietantes: 42% apresentavam queda no rendimento escolar, 78% tinham dificuldade em se divertir, 64% tinham problemas de relacionamento social e 78% sofriam com baixa auto-estima. Muitos já apresentavam sinais de depressão (64%).

O adolescente B.S., 13 anos, foi um dos participantes do estudo. Aos nove anos, sua família e professores desconfiaram que a velha timidez de B. passava dos limites. “Descobrimos que ele não era apenas um garoto diferente. Tinha uma doença. O fato de gostar de ficar isolado não era uma questão de temperamento”, disse a mãe, L.S. Ao ser perguntado se gosta de conversar, o menino responde: “Não.” Por quê? “Porque não.” É visível que perguntas o deixam aborrecido. A grande preocupação de L. é a de que o filho acabe usando drogas como uma ponte para a convivência social. Seu temor faz sentido: está provado que a distimia aumenta a chance de abuso de álcool e tranquilizantes. Essas são algumas das saídas encontradas pelos pacientes para facilitar o contato com as outras pessoas. Afinal, outra consequência do problema é o isolamento vivido por esses doentes, por vontade própria ou por rejeição de amigos e familiares.

Felizmente, existe um tratamento eficaz contra a doença. Ele é baseado no uso de antidepressivos e psicoterapia. A ajuda psicológica é importante para que o paciente aprenda, por exemplo, a enxergar a vida com mais otimismo. “Ele deve encarar o cotidiano de forma positiva”, explica José Antônio Atta, do HC/SP. Em geral, o tratamento demora de um a dois anos e apresenta sucesso em cerca de 70% dos casos. “Quem consegue bons resultados passa a ter vida normal, embora não se torne otimista. Jamais será o animador das festas”,
diz o médico Barbirato.

De qualquer maneira, a informação de que mais da metade dos doentes se livra de um estado de espírito permanentemente ranzinza é um alívio. Melhor ainda seria se a medicina descobrisse uma saída igualmente eficaz para o mau humor comum, aquele do qual todo ser humano já foi vítima algum dia (ou vários dias…). Suas causas são variadas e dependem de cada um. Muita gente fica de mau humor só de acordar numa segunda-feira. O professor Antônio José Lopes, 47 anos, de São Paulo, por exemplo, sai do sério quando atende
a telefonemas de vendedores. “Sou mal-educado mesmo”, diz. Ele
próprio não se considera mal-humorado – aliás, nenhum deles tem
essa opinião sobre si mesmo –, mas os amigos sempre se lembram do professor quando se toca no tema. “Acho que as pessoas confundem
mau humor com timidez. Sou alegre, mas não gasto meu bom humor
com qualquer coisa”, diz.

É claro que existem razões mais profundas e generalizadas para o mau humor. Entre elas, está a falta de dinheiro. Porém, o problema é agravado pela ânsia de ter sempre mais, independentemente do quanto já se possui. “Primeiro, o indivíduo não sossega enquanto não tem a casa na praia. Depois, em vez de desfrutá-la, não fica quieto enquanto não constrói a piscina. A felicidade está pautada pelo que queremos ter. E quando não as conseguimos, vem a irritação, um mau humor que aprendemos a ter”, afirma a psicóloga Lisete Del Bianco, de São Paulo.

Há ainda pelo menos uma razão orgânica conhecida para a cara feia. São os problemas da tireóide, glândula produtora dos hormônios envolvidos no metabolismo. Sua atividade exagerada pode causar irritabilidade e mau humor. Com o hipotiroidismo (baixa atividade) acontece o inverso, mas o resultado é o mesmo: o indivíduo pode se tornar letárgico, engordar e ficar “azedo” por causa dessa falta de energia. Por isso, uma das principais perguntas que os médicos fazem ao paciente quando suspeitam de problemas na tireóide é se ele anda de mal com a vida. “Pessoas mal-humoradas que têm outros desses sintomas devem procurar ajuda”, alerta o endocrinologista Marcos Tambascia, da Universidade Estadual de Campinas.