"Me acompanha por aqui. Arrocha! Vai os dois juntos”, orienta o matador Sandro.
“Diz!” Ouve-se um tiro. “Diz!”, insiste outro sujeito, Luiz Henrique Pereira. Mais tiros.
“Diz! ‘Bora! Tás no beco?” Mais tiros.
“Vai, meu filho, tá no beco?”, pergunta Sandro.
“Tô.”
“Então, pronto!”
“Eu tô no beco, porra!”
“Eu tô chegando, pode parar aí na frente um pouquinho.”
“Tá, tá.”
“Corre não, porra!”
Horas depois, Sandro recebe uma ligação do soldado Eduardo José Morais dos Santos, da Polícia Militar de Pernambuco.
”Pronto!”
”Foi?”
“Pronto!”
“Vão embora!”
Mais tarde, outra ligação.
“Oi, Sandro.”
“Mas, rapaz, mandasse passar o cerol no cara, foi, porra?“
“Qual cara?”
“No ‘adivo’ (advogado).”
“Sim, e aí? E aí?”
“Agorinha, agorinha mesmo?“
“Foi, foi”, repete Sandro.
“E aí, caiu, tava pronto já?”
“Tá lá, tá lá, tá que levou uns oito tiro na cara.”

Esse diálogo, que parece extraído de um romance policial, como O matador, de Patrícia Melo, é do bangue-bangue real de Pernambuco. A vítima também é real: o advogado Antônio Armando de Moura, 56 anos, executado em 13 de junho de 2001 quando deixava uma alfaiataria no bairro de Cavaleiro, em Jaboatão dos Guararapes, na Grande Recife. Foram cinco tiros na cabeça. Na Polícia Civil, o inquérito acabou arquivado por falta de provas. Retrato da pistolagem que assola Pernambuco e pelo menos 15 Estados brasileiros, misturando policiais, agentes penitenciários e pistoleiros em grupos de extermínio como “anjos da guarda” e “os abelhas”, a execução de Antônio Moura, segundo a OAB, poderia ter sido evitada. Outras também. Todos esses diálogos e muitos mais, gravados com autorização judicial entre 21 de fevereiro de 2001 e 4 de abril de 2002 por agentes da Coordenação de Inteligência da Polícia Federal, a pedido do Ministério Público Federal, fazem parte de um dossiê confidencial de mais de mil páginas, ao qual ISTOÉ teve acesso. As transcrições de conversas telefônicas revelam cerca de 30 execuções sendo planejadas e realizadas por matadores na área de Jaboatão, além de mostrarem operações de tráfico de drogas e armas e venda de carros roubados. Execuções anunciadas, até com hora marcada. A Polícia Civil de Pernambuco jamais foi acionada.

Os grampos faziam parte da chamada Operação Vassourinha da PF, encerrada em 20 de setembro de 2002, aberta para investigar uma quadrilha acusada de corrupção e sonegação. Com mais de 100 telefones monitorados, a PF esbarrou no PM Eduardo José dos Santos, dono de uma empresa de segurança ilegal, fachada de um impressionante esquema de matadores, financiada por comerciantes e protegida por gente influente. Entre os amigos da empresa destacam-se o vereador Manoel Panta, candidato a prefeito de Jaboatão, e um agente da PF, Adalberto Alves de Lima. “Beto Moura”, como é conhecido, chega a ligar para um fornecedor pedindo uma espingarda “para matar alguém nesse final de semana”. O gerente da firma de execuções, tratado por Lula, que coordena um grupo de 15 matadores, conversa abertamente no telefone sobre várias mortes, assaltos a bancos, chacinas e compra de armas. Pelas conversas, a PF soube de crimes de autoria desconhecida, como as mortes de cinco PMs da Rádio Patrulha e de um soldado em Palmares (PE), todos assumidos por Lula. Em muitos casos, os matadores dão suas localizações e as de suas vítimas antes e depois dos crimes. Entre 17 e 19 de abril de 2001, o soldado Eduardo coordenou a execução de um homem chamado Paulo, que deveria ser morto “quando passar, por volta das 5h da manhã, embaixo de um viaduto que fica perto da ponte de quem vai para a feira do passarinho”, no bairro de Cavaleiro, em Jaboatão. Paulo é executado da forma combinada. Em outro diálogo, os matadores Sandro e Toinho discutem outro crime.

“Alô! Manda, tá na frente, na rua Treze, na rua do Edson”, diz Toinho.
“Em que lugar?”, pergunta Sandro.
“Sentado, na porta do rolo.”
“Qual é a roupa?”
“Blusão cinza e calça marrom. Mande, que eu vou tá bem pra esquina.”
Mais tarde, Sandro e outro homem, identificado como Teto, conferem seu êxito.
“Tás aonde?”, pergunta Teto.
“Eu tô aqui na Charneca.”
“E aquela bronca?”
“Mas, então, mataram o menino aqui nesse instante, porra”.
“Aonde?”
“Aqui na rua. Rua Treze.”
“Quem é o cara?”
“É um tal de Valdeci Negão.”

Vítima mais conhecida do esquadrão da morte de Jaboatão, Antônio Moura era alvo de conversas do grupo desde o fim de março, quando já planejavam executar “um advogado”. Em 28 de março de 2001, Eduardo escolhe Sandro, um homem de sua confiança, para o serviço. “Manda bronca nele o mais rápido possível”, determina Eduardo. Depois do crime, discutem até a rota de fuga.

Outra vítima do grupo, José Marques Freire, 29 anos, foi executado quando almoçava em um bar no bairro Imbiribeira, no Recife. A morte
foi encomendada por um açougueiro. O mecânico Capitulino Tadeu
Borges Neto, 44 anos, também foi executado com vários tiros, no
dia 11 de maio de 2001. Um dia depois do serviço, dois “seguranças”
da firma, Sandro e Eduardo, conversam:

“Fala, delegado!”, cumprimenta Eduardo.
“Fala, delegado”, responde Sandro.
“Quem dançou foi Capitu, né?”
“Foi, foi.”
“Saiu daí mesmo?”
“Foi, foi, foi. Seu João não disse que era pra fazer?”
“Foi.”
“Aí ontem passaram o barrote no homem.”
Em outro trecho, dois matadores comentam a execução de outra pessoa.
“Eu dei quatro. Tome, tome, tome, aí saí. Aí China chegou e a pistola dele engasgou.”
“Engasgou, foi? Aquilo é uma arma de cabra safado.”
“Aí arrastou o revólver das costa e deu mais seis tiros de revólver.”
“Tá vendo, aquilo não é arma de garantia não, rapaz.”

O presidente da OAB de Pernambuco, Ademar Rigueira Neto, entregou há uma semana ao ministro da Justiça, Márcio Thomas Bastos, denúncia em que acusa a PF de omissão. “Os policiais envolvidos na operação tinham conhecimento de atos preparatórios para a consumação de crimes de homicídio. Muitos crimes poderiam ter sido evitados”, afirmou Rigueira. A Operação Vassourinha levou à prisão de 16 pessoas, mas todas acabaram soltas. No final, a vassourada da PF rendeu apenas quatro inquéritos por porte ilegal de armas, falsidade ideológica e uso indevido de celulares funcionais. A descoberta de grupos de extermínio planejando e executando homicídios, no entanto, nunca veio a público, embora as conversas entre matadores fizessem parte do Procedimento Administrativo Criminal (PAC) 2001.83.00.001904-9, a cargo da PF e do Ministério Público Federal. “Nenhuma prisão foi requerida, nenhuma vida foi poupada”, resume o presidente da OAB-PE. Ele acredita que o grupo continua matando.

A PF e o MPF negam que tenham sido omissos e informam que, por serem crimes de responsabilidade das autoridades estaduais, pediram à Justiça Federal que informasse ao Ministério Público de Pernambuco que as mortes estavam sendo planejadas. Quase dois meses antes do assassinato de Antônio Moura, no dia 19 de abril de 2001, o juiz federal Antônio Bruno de Azevedo Moreira enviou o ofício 013 à então subprocuradora-geral de Justiça de Pernambuco, Helena Caúla Reis, pedindo providências para investigar “fortíssimos indícios” da atuação de um “poderoso e ativo grupo de extermínio”. O governo de Pernambuco alega que nunca recebeu cópia dos grampos. As gravações só foram reveladas agora e por acaso. Um agente da PF denunciado na Operação Vassourinha, José Otávio de Queiroga, conseguiu na Justiça acesso ao conteúdo do PAC sigiloso para preparar sua defesa. Surpreendeu-se com as ações detalhadas dos grupos de extermínio. “O fato é que pessoas morreram, armas entraram nas cidades e houve tráfico de entorpecentes. Havia gente que sabia e mesmo assim os crimes aconteceram. Queremos os responsáveis”, disse o deputado federal Luiz Couto (PT-PB), relator da recém-criada CPI dos Grupos de Extermínio, que vai investigar o assunto.

“É fácil montar um grupo de extermínio por aqui. São muitos, desde os que vivem de extorsão até os que fazem ‘segurança’ para comerciantes, eliminando pequenos bandidos de suas áreas”, explica o delegado Roberto Geraldo Pereira, que chefia o Núcleo Especializado na Apuração de Homicídios Múltiplos, ou, como é conhecido, Núcleo de Chacinas de Pernambuco. No ano passado, foram registrados 2.506 homicídios dolosos no Estado. Na divisa entre Pernambuco e Paraíba, em cidades como Itambé (PE) e Pedras de Fogo (PB), um desses grupos executou 235 pessoas em cinco anos. Em Timbaúba (PE), chegaram a abrir a parada de 7 de Setembro, desfilando armados. Esse exército de carrascos julga, condena e executa regularmente homossexuais, trabalhadores rurais, índios, lideranças sindicais e comunitárias, defensores de direitos humanos, vereadores, promotores e quem mais cruzar seus caminhos. Intitulam-se “anjos da guarda” e batizam seus alvos de “almas sebosas”, termo comum no Nordeste, uma das regiões onde floresce a indústria das execuções. Em Itambé, Nair Maria da Conceição teve três filhos assassinados. Alaíde Maria da Conceição também teve um filho executado. E Maria José dos Santos perdeu filho e marido. “Nunca vivi tanto sofrimento”, diz Maria José, que não larga a foto do filho morto.

“Ainda não fui embora daqui porque tenho uma missão, quero ir até o fim”, desabafa a promotora pública de Itambé, Rosemary Souto Maior de Almeida, ameaçada de morte e que só sai de casa com colete à prova de bala e policial federal a tiracolo. “É um grande negócio acobertado por pessoas poderosas, que financiam e apóiam isso dentro do aparelho do Estado”, concorda o vereador Manoel Mattos, também de Itambé, outro “cabra” marcado pelos justiceiros. “Não dá mais para esperar a próxima vítima”, diz. O agricultor Flávio Manoel da Silva, 23 anos, único sobrevivente de uma das ações do grupo de extermínio, foi executado em 27 de setembro com dois tiros na cabeça, cinco dias depois de ser recebido pela relatora da ONU para Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais, Asma Jahangir, que ficou horrorizada com o quadro que encontrou no Brasil. Na Bahia, o fato se repetiu. O mecânico Gerson Jesus Bispo, 26 anos, foi assassinado na quinta-feira 9, após ter conversado com Asma há duas semanas. “Os assassinos no Brasil sabem que a impunidade impera”, diz a advogada paquistanesa, que decidiu pedir uma equipe da ONU para inspecionar o Judiciário brasileiro. As Cortes reagiram mal e o presidente do Supremo Tribunal Federal, Maurício Corrêa, chamou a interferência de “indébita e atrevida”.

O relator da CPI dos Grupos de Extermínio já tem um dossiê que reúne casos de execução em Santo Antônio de Jesus, Camaçari e Paratinga (BA), Guarulhos e Ribeirão Preto (SP), Vitória (ES), Manaus (AM), interior do Pará, Minas Gerais e no entorno de Brasília. No Pará, continua impune o assassinato do sindicalista João Canuto, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria. Na região metropolitana de Belo Horizonte, assaltantes como Evandro Ribeiro Soares, 18 anos, e Anderson Jhosé Alves Batista, 27, assassinados em julho, foram encontrados com as cabeças cortadas. Na periferia e região metropolitana de Salvador, casos de execução aumentaram 291%, com 46 assassinatos só este ano. “Eles instalaram uma justiça paralela, onde condenam, com tribunais extrajudiciais, com a presença de delegados e comerciantes”, aponta Luiz Couto. Oito em cada dez casos de execução têm o envolvimento de policiais civis ou militares.

“Temos que desmantelar isso de vez. Todo mundo sabe quem está matando, nome, patente, tudo. Não prendem porque não querem”, afirma o secretário Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, Nilmário Miranda, que defende o envio de uma força-tarefa para o foco dos grupos de extermínio em Pernambuco. “O mais grave é que esses grupos têm a proteção de gente em todos os níveis do poder público, Executivo, Legislativo, Judiciário”, reconhece o delegado federal Rodney Rocha Miranda, secretário de Segurança Pública do Espírito Santo, que acaba de criar um Grupo de Combate à Impunidade no Estado para enfrentar o poder da Scuderie Le Coq e prepara um ranking dos 30 principais pistoleiros de Vitória, Vila Velha, Cariacica e Serra. A maioria dos 100 homicídios registrados por mês no Espírito Santo tem ligação com o crime organizado, como o assassinato, em março deste ano, do juiz Alexandre Martins de Castro Filho.

O relatório “Execuções Sumárias no Brasil”, da ONG Justiça Global, seleciona 349 execuções entre 1997 e 2003, concluindo que existe
no País um sistema de “extermínio e opressão perpetrado diariamente, direta ou indiretamente, por agentes do Estado”. “O envolvimento de policiais no extermínio de populações pobres é gravíssimo“, diz Sandra Carvalho, diretora da Justiça Global. Outro relatório, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, denuncia o extermínio sistemático de jovens de 16 a 24 anos, homens pobres e moradores das periferias. Em São Paulo, entre 2001 e 2003, foram identificados 21 casos de atuação de grupos de extermínio, com 50 mortes. Em bairros como Jardim Presidente Dutra, em Guarulhos, seis testemunhas e parentes de pessoas assassinadas vêm sofrendo ameaças de policiais-exterminadores. Hoje, 550 pessoas vivem no País sob a guarda do Programa de Proteção às Testemunhas, 130 em São Paulo. Metade dos protegidos é de sobreviventes ou testemunhas. Em São Paulo, a corregedoria da PM recebeu 362 denúncias contra policiais em 2000 e 543 este ano. No Rio de Janeiro, a Corregedoria Geral Unificada, que acolhe denúncias contra policiais, recebeu 130 denúncias em 2000, quando foi criada, e 600 este ano. “Estamos tentando romper uma tradição de brutalidade e violência policial”, explica o secretário de Direitos Humanos do Rio, João Luís Duboc Pinaud. Numa lógica inversa à do ex-secretário de Segurança do Rio, general Newton Cerqueira, que premiava quem matasse mais, o governo do Rio decidiu instituir uma premiação para os policiais que tiverem a
ficha limpa de execuções e torturas.