A Califórnia resolveu colocar um bocado de músculos em seu governo, que anda acéfalo há 11 meses. Na terça-feira 7, votou pelo “recall” – uma espécie de cassação de mandato – do governador democrata Gray Davis. Uma rejeição de 56% dos votos. Ao mesmo tempo elegeu, com 48% dos sufrágios, o ator austríaco Arnold Schwarzenegger para o cargo executivo. Foi uma vitória da celebridade contra a impopularidade, num local onde se inventaram as grandes bilheterias. Fala-se em terremoto político, mas na verdade o fenômeno era previsível numa terra acostumada aos abalos sísmicos. Não foi tanto Arnold quem ganhou, mas Davis quem perdeu. Depois de 11 meses, desde sua reeleição ao palácio de Sacramento, o governador que se defenestra agora reinava sobre bases ruídas, com um déficit orçamentário de US$ 38 bilhões – o maior da história do país –, níveis de desemprego de 6,7% (marca um pouco acima da média nacional, de 6,4%), aumentos de impostos que, em alguns casos, chegaram a triplicar e falta de carisma, que é a antítese da aura de seu oponente. Saído de Hollywood, Schwarzenegger, republicano moderado, 56 anos, casado com Maria Shriver – da família democrata dos Kennedy –, incorpora a acepção das fantasias californianas. Um imigrante de origem humilde, seguida por carreira brilhante, conquista de fortuna e fama, e visto agora como herói salvador da pátria. Mas, para interpretar o maior papel de sua vida, Arnold terá de contar com milagres que nem mesmo as máquinas de efeitos especiais de seu último emprego têm condições de perpetrar. Política, sabe-se, não é filme.

Schwarzenegger segue agora um enredo com mais desafios do que aqueles protagonizados em seus sucessos de celulóide. Num intervalo
de quatro semanas, a Secretaria de Estado da Califórnia deve certificar os resultados das eleições. A mudança do novo governador, de Pacific Palisades, onde mora, para Sacramento, a capital californiana, ocorrerá até 16 de novembro. Dali em diante, deverá enfrentar uma pedreira
capaz de exaurir qualquer campeão. A começar pelo balanço orçamentário para o exercício de 2004, que terá de ser feito até 10
de janeiro, com a aprovação da maioria de oponentes democratas nas duas Casas do Legislativo. Faltam US$ 8 bilhões para que isso aconteça. Ninguém sabe como o “Exterminador” se comportará no futuro. Em nenhum momento de sua campanha, Arnold desenhou uma plataforma política para as graves questões de governo. De concreto, por exemplo, prometeu acabar com os impostos que triplicaram os custos do licenciamento de veículos. Grande parte da impopularidade de Gray Davis vem deste aumento. Num Estado onde o bar da esquina fica a três milhas de distância e a maioria das pessoas precisa de carro para ir comprar um litro de leite, os gastos com licenciamento são capazes de provocar rebeliões populares. O discurso de palanque de Schwarzenegger, porém, não explicou como substituirá os US$ 4 bilhões de faturamento que tal imposto propicia. Eis aí um pequeno exemplo do tamanho da encrenca
em que o herói está se metendo.

Outsider – “Até agora esta aventura foi um passeio para Arnold. As pessoas estavam fartas de Gray Davis, um político profissional que jamais teve outra atividade em sua vida. A perspectiva de ter alguém de fora, com a aura de um astro das telas, arrebatou corações. Mas, a partir do discurso da vitória, a festa acabou. As pessoas vão exigir ações, que, francamente, beiram o impossível”, diz Richard Wheeler, do Instituto de Ciências Políticas de Los Angeles. A primeira parte deste conto de fadas, na verdade, não foi tão suave. Nos dez últimos dias de campanha, por exemplo, as hostes do governador Davis – gente famosa por jogar pesado e sujo em tempos de eleições – arregimentaram nada menos que 15 mulheres acusando Arnold de assédio sexual. Houve muita desconfiança sobre as acusadoras. Não porque se duvidasse do apetite do galã de Predador, mas sim porque a seleção de moças formava um time de raivosas feministas e hediondas mocréias.

Antes mesmo de anunciar sua candidatura, no programa The tonight show, com o apresentador campeão de audiência Jay Leno, a fama priápica de Arnold era moeda corrente. Na matéria de ISTOÉ sobre Arnold (edição 1764, de 23 de setembro), já se descrevia esta característica. Também se falou de seu filme-documentário Carnival in Rio (1983), no que foi escrito que o ator “rasgou a fantasia” naquele carnaval. A rede de televisão a cabo CNN ligou para a revista pedindo, entre outras coisas, mais informações sobre as cenas em que Schwarzenegger rasgara a roupa. Foi necessário esclarecer que “rasgar a fantasia” era uma expressão antiga – literalmente de outros carnavais –, cujo sentido havia se perdido na tradução do texto, do português para o inglês.

O episódio, porém, era demonstrativo da caça por histórias picantes sobre o passado schwarzeneguiano. Parece que o ex-halterofilista não gostava apenas de “puxar ferro”, como se diz no meio, mas também era chegado a apertar carnes. A mão grande do ator deslizou por coxas, panturrilhas, peitorais e outros cantões anatômicos de mocinhas ao seu alcance. Histórias de adultério ganharam a boca do povo. Mas não havia novidade alguma nestas fofocas. O eleitorado da Califórnia é liberal. Lá, afinal, se deu o pontapé inicial na revolução sexual do país nos anos 60. Embora dono de um eleitorado feminista de respeito, o Partido Democrata, com o governador Gray Davis, não conseguiu pintar o ex-Mr. Universo e ex-Mr. Olympia como o bicho-papão. Ninguém se importou com as acusações. E como poderiam?

Pendurada nos fortes bícepes de Arnold estava Maria Shriver – filha
de Sargent (nome, e não patente) e Eunice. Ele, um ex-diretor do
Peace Corps e ex-candidato à vice-presidência americana, e ela, a irmã de John, Robert e Ted Kennedy. Maria acompanhou o marido durante toda a tempestade de lama provocada pelas histórias de adultério.
Com duas filhas e dois filhos, o casal parece saído de um conto da carochinha – só que com script mais picante para o príncipe encantado. Casaram-se em 1986 – o que dá tempo suficiente para a disputa de recordes de longevidade de vida comunal em Hollywood. Famosa repórter da rede NBC e autora de livros, a nova primeira-dama do Estado é tipo “cabeça”, e ninguém duvida de sua integridade pessoal. Portanto, a percepção é de que, se uma mulher como ela apóia Arnold, como outras liberadas californianas iriam jogá-lo aos porcos? “Se as pessoas o conhecessem – com seu humor, integridade e bondade –, como eu o conheço, todas votariam nele”, disse a senhora Schwarzenegger na
única entrevista que concedeu à imprensa, no popularíssimo programa
de auditório Oprah. A imprensa americana, depois das eleições, manchetou que Maria foi a arma secreta do Exterminador de Gray
Davis. E o papo de adultério ficou para trás.

Participação – Desde 1982 não se via tanta gente votando em eleições estaduais californianas. Houve um comparecimento de pouco mais de 60% dos 15,4 milhões de eleitores registrados. “O apelo de Schwarzenegger não deriva exclusivamente do fato de ele ser um astro do cinema. Ele também representa uma repulsa aos valores políticos tradicionais”, diz Frank Lutz, guru pesquisador de opinião pública do Partido Republicano. E Arnold, sabendo dessa tendência, explorou o viés ao máximo. Nos últimos dias de campanha, foi buscar num filme que não estrelou seu slogan: “Nós estamos bravos como o diabo, e não vamos aguentar mais”, frase do roteiro de Network (1976, dirigido por Sidney Lumet). “A percepção foi a de que Gray Davis, o político profissional, não está apto para o trabalho e age apenas a favor dos interesses do establishment. Era preciso encontrar alguém novo e sem os vícios da política tradicional. Acho que esta eleição deve servir de lição para outros políticos tradicionais de outros Estados. O que aconteceu na Califórnia poderá ocorrer novamente”, diz Lutz.

Bem, acrescente-se que tal já ocorreu. Em 1998, o Estado de Minnesota elegeu governador o atleta de luta-livre e novato em política Jesse Ventura. Em 2002, no final do mandato, os eleitores estavam exaustos e arrependidos, indicando nas pesquisas que Jesse “O Corpo” Ventura não teria nenhuma chance de reeleição. Ele saiu de fininho, voltando ao círculo privado da mediocridade de onde jamais deveria ter saído. Para os californianos, as consequências da decisão tomada na terça-feira 7 podem também repetir esta dose. Arnold controlará apenas 15% do orçamento do Estado, com o resto da dinheirama ficando comprometida com despesas que vão de folha de pagamento de funcionários a programas sociais que a lei tornou obrigatórios. Por exemplo: 40% do que é recolhido será gasto com educação. “Num Estado onde até mesmo os filhos de imigrantes ilegais têm direito a escolas gratuitas, as despesas com educação aumentam em velocidade espantosa”, diz o analista republicano Tom Kerner. Considere-se também que o país vive uma recessão sem mostras de recuo, transformando o desemprego numa questão explosiva. Parte do que detonou Gray Davis vem deste front.

O governador que está saindo viveu a passagem entre os tempos de euforia e expansão econômica do final dos anos 90. Era onde os enganos sobre uma certa “nova economia” determinavam que as vacas gordas não terminariam. Havia pleno emprego na Califórnia, principalmente no Vale do Silício, que capitaneava a informática e a exuberante performance americana. Empregadores iam buscar funcionários dentro das penitenciárias, pois faltava mão-de-obra em todos os setores. Veio o ano 2000, que trouxe o governo George W. Bush. A bolha econômica estourou, voltou-se à velha economia e, ainda por cima, o presidente empossado adotou uma política de corte de impostos federais. Esta combinação de golpes levou os 50 Estados da União à beira da insolvência. A diminuição da receita fiscal foi repassada aos Estados, que tiveram de cortar despesas de modo dramático. Alguns governadores ainda conseguiram se manter acima da linha d’água, mas a maioria foi afundando. A Califórnia mergulhou de cabeça na bancarrota. Davis não só deixou passar oportunidades de reformas, como também viu suas mãos amarradas por legislações que lhe impunham gastos altos. Falta de visão, aliada à covardia política e compromissos variados deixaram um saldo de US$ 38 bilhões de déficit. O único remédio prescrito pelo governador foi o aumento de impostos. Some-se a isso uma crise energética, de responsabilidade das grandes empresas do setor que têm como patronos e parceiros membros do governo Bush, como o vice-presidente Dick Cheney. Os seguidos apagões na Califórnia são de responsabilidade tanto da política pouco inspirada de Gray Davis quanto das falcatruas de uma indústria protegida pelos novos inquilinos da Casa Branca.

Pouco antes do discurso da vitória, Arnold recebeu telefonema de congratulações do presidente Bush. Houve troca de promessas de trabalho conjunto. O astro-governador eleito deveria gravar estas promessas, pois Bush não apenas vem deixando a Califórnia – terra
de democratas – secar, como não tem mais recursos fiscais para
reverter a situação. O futuro de Schwarzenegger, com mandato de apenas três anos, pode ser exterminado logo depois de sua estréia no papel de governador. Caso ele repita na vida suas façanhas vitoriosas das telas e a Califórnia seja salva da catástrofe, a Casa Branca pode
ser a próxima morada do herói. Hoje, apenas cidadãos nascidos nos
EUA podem se tornar presidente. Mas, no Senado, o republicano Orrin Hatch, aliado ao ultraliberal Ted Kennedy, faz circular um projeto de lei que permitiria a cidadãos americanos, naturalizados há pelo menos 20 anos, terem o direito de se candidatar à Presidência do país. Schwarzenegger se naturalizou em 1983.

 

Um novo script

Convidada para fazer sua primeira capa para a revista americana Rolling Stone, a portentosa cantora country Dolly Parton equilibrou sua principal arma corporal e posou, em 1977, com um halterofilista desconhecido. Tão desconhecido que a lendária fotógrafa Annie Leibovitz, na foto, cortou a cabeça do rapaz, deixando apenas seu corpo esculpido fazendo sombra aos monumentais seios da cantora. Foi difícil convencê-la a ter outra pessoa além dela no ensaio. Ficou nervosa. “Arnold Schwartza, Schwartzanooger, Schwartzenhiger? Gente, quem é esta pessoa?”, perguntou num quase surto, sem conseguir guardar o sobrenome do fortão. Quinze anos depois, a mesma revista contou esta história revelando quem era o garotão de cabeça cortada. Ninguém menos que Arnold Schwarzenegger, que já havia feito um documentário chamado Pumping iron (1977), algo como puxando ferro na gíria dos anabolizados, sobre o concurso de Mister Olímpia. Mas o pulo para a fama definitiva só aconteceu em 1982, quando de feioso Mister Universo, o austríaco natural da cidade de Granz, protagonizou o filme Conan, o bárbaro, uma barbaridade de ruim pela qual recebeu US$ 250 mil.

Diante de uma bilheteria de US$ 100 milhões, veio a natural sequência, Conan, o destruidor, de 1984, mesmo ano em que ele foi convidado para interpretar o vilão Kyle Reese, de O exterminador do futuro. No entanto, quando o diretor James Cameron se deparou com o corpão robótico de Schwarzenegger não teve dúvidas: “Você é a máquina”, empolgou-se e lhe deu o papel do cyborg. Cameron estava certo. O exterminador do futuro se transformou num grande sucesso, faturando US$ 150 milhões. Com a fita, Schwarzenegger ingressou no exclusivo grupo dos salários mais altos do cinema. Para fazer O exterminador do futuro 2 – o julgamento final (1991), ganhou US$ 15 milhões. O filme rendeu a impressionante quantia de US$ 500 milhões carregando a curiosidade de que o astro não falou mais que 700 palavras, entre elas a famosa frase: “Hasta la vista baby.” Mesmo assim, Arnold Schwarzenegger plantou seu nome no panteão cinematográfico a ponto de – quando estrelou Batman e Robin, em 1997 – superar em salário nomes como os de Tom Cruise e Harrison Ford. À época, para fazer o vilão camp Mr. Freeze, ele embolsou
US$ 25 milhões. Recentemente, engordou sua conta em US$ 30 milhões como intérprete principal de O exterminador do futuro 3 – a rebelião das máquinas, que até agora arrecadou US$ 183 milhões.

Semana passada, o Carvalho Austríaco, Conan, o Republicano ou simplesmente Arnie ultrapassou seus limites. Agora, ele integra o teatro da política. Mas na ficção que o consagrou, uma situação premonitória lhe indicou um caminho bem mais ambicioso no filme O demolidor, produção catástrofe de 1993, com Sylvester Stallone e Wesley Snipes nos papéis principais. A ação se passa em 2032, quando o policial interpretado por Stallone, ainda meio aturdido depois de despertar de um congelamento forçado de 36 anos, ouve a colega Sandra Bullock falar da Biblioteca Presidencial Schwarzenegger. “Ele foi presidente?”, espanta-se Stallone. “Sim, e devido à sua popularidade foi feita uma emenda muito importante”, diz Bullock. “Presidente!”, cala-se Stallone, quase bufando. Ou seja, nem Hollywood parece acreditar em tal script.

Apoenan Rodrigues

 

Balaio de gatos

Pode até parecer piada, mas não é. Numa eleição em que o vencedor foi ninguém menos do que o exterminador do futuro Arnold Schwarzenegger, é possível imaginar a lista das 135 pessoas que se candidataram para governar o Estado da Califórnia. Além do vencedor, mais presente nas páginas de entretenimento do que nas seções de política do jornal, havia uma série de candidatos, no mínimo esdrúxulos, para fazer jus à peculiar democracia da Califórnia. Desde uma atriz pornô até um ex-boxeador, passando por um líder de uma banda de rock e um pornógrafo, várias pessoas comuns pagaram a módica taxa de
US$ 3.500 (mais 65 assinaturas válidas de votantes sem filiação política) para poder concorrer ao mais alto cargo do mais rico
e populoso Estado americano.

Uma delas pode não ser a candidata mais apropriada ao cargo,
mas, certamente, foi a mais vistosa. Mary Carey, 23 anos, tem
quase a mesma profissão do vencedor Schwarzenegger, porém
com uma sutil – mas fundamental – diferença: o público-alvo. Mary
é atriz pornô e sua plataforma de campanha teve como bandeira o desarmamento da população. Para convencer os californianos, Mary propôs a troca de armas por filmes pornográficos – o Porn for pistols. Outra de suas idéias originais era taxar os implantes de silicone nos seios. “Somente em Beverly Hills, nós poderíamos arrecadar milhões com essa taxa”, dizia. E Mary ainda fez um adendo pessoal à sua proposta: “Notem: eu sou toda natural e, pessoalmente, desencorajo o uso de implantes.” Advindo de parecida área de atuação profissional, o editor da revista pornográfica Hustler, Larry Flynt, também concorreu ao cargo. Com sua controvertida vida mostrada no filme
de Milos Forman O povo contra Larry Flynt, agora ele pôde divulgar politicamen
te suas idéias de liberdade de expressão e direitos individuais. Flynt foi o sétimo mais votado e Mary a décima,
com 15.454 e 10.110 votos, respectivamente.

Entre os candidatos que buscaram seu lugar ao sol, há também aqueles que são, digamos, mais segmentados. Ned Roscoe, 42 anos, trabalha para uma fábrica de cigarros e defende os fumantes. “Os políticos têm de ser cuidadosos ao lidar com os fumantes e enterrá-los com impostos”, diz. Já Richard Gosse é autor de oito livros sobre a vida de solteiro e afirma que aqueles que não contraíram o matrimônio são sobretaxados com impostos. Ele buscou o voto dos 34% de votantes solteiros. Detalhe: o próprio Gosse é casado desde 1999. Talvez isso explique os seus parcos 429 votos.

Mas nem sempre tudo dá certo. Mathilda Karel Spak conseguiu
o dinheiro da taxa através de patrocínio de uma cadeia de lojas.
Com toda a vitalidade, Mathilda já se preparava para a campanha quando teve sua candidatura desqualificada por falha nas 65 assinaturas necessárias. Aos 101 anos, Mathilda perdeu a oportunidade de se tornar a pessoa mais velha a concorrer
ao posto de governador dentro dos EUA .

Fernando F. Kadaoka