Desde julho de 1992, quando o papa João Paulo II se submeteu a uma cirurgia para a retirada de um tumor benigno do intestino, sua saúde vem sendo tão fortemente abalada que as especulações sobre a sucessão no trono de São Pedro se tornaram o exercício predileto da futurologia midiática. Tanto que os “vaticanólogos” são hoje especialistas tão prestigiados quanto foram os “kremlinólogos” nos tempos da guerra fria. Mas, apesar da onipresença da imagem de um ancião caquético, arcado e padecendo do mal de Parkinson, a resistência do pontífice polonês tem derrubado as mais agourentas previsões sobre sua morte iminente. De fato, de lá para cá a vontade de viver do Servo dos Servos de Deus não apenas enterrou cardeais cotados para sucedê-lo, a exemplo do brasileiro dom Lucas Moreira Neves – morto em 2002 –, como inviabilizou outros fortíssimos papabili, que se tornaram demasiado idosos para a função. Os casos mais famosos são os do italiano Pio Laghi, 80 anos, um brilhante diplomata, e dos franceses Roger Etchegaray, 80, um talentoso pastor e intelectual, e Jean-Marie Lustiger, 77, cardeal de origem judaica.

No entanto, às vésperas de completar 25 anos de pontificado, os indícios de que Karol Wojtyla, 83 anos, está mais próximo do que nunca de seu encontro com Deus aumentaram muito. Primeiro, foi o cancelamento de uma audiência pública do papa, há duas semanas. Os rumores se intensificaram no domingo 28, depois que o Sumo Pontífice anunciou, com dificuldade e voz cansada, a nomeação de 31 novos cardeais – entre eles o brasileiro dom Eusébio Oscar Scheid, do Rio de Janeiro. O que quase fez os sinos dobrarem foi a notícia de que o consistório no qual os cardeais recém-nomeados receberão seus barretes púrpuros, previsto para fevereiro de 2004, foi antecipado para o dia 21 de outubro próximo. A alegação do Vaticano é que, nesta data, a maioria dos cardeais estará em Roma para participar do 25º aniversário do pontificado de João Paulo II e, assim, seria mais econômico realizar o consistório já. Os céticos, contudo, viram nesse gesto sinais de abertura do processo de sucessão do Santo Padre, principalmente porque os novos príncipes da Igreja Católica não poderão votar na eleição para um novo papa enquanto não forem consagrados. Tudo isso já era suficientemente preocupante, mas o rebanho na Santa Sé ficou ainda mais inquieto na terça-feira 30, depois que a revista alemã de celebridades Bunte atribuiu ao cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Santo Ofício, o órgão da Inquisição), uma grave indiscrição (os leigos diriam fofoca): “O papa está mal. Devíamos rezar por ele”, teria alfinetado o cardeal tido como a eminência parda de Wojtyla. As declarações foram negadas pela assessoria de Ratzinger, que alegou que o prelado nem sequer recebeu a revista, mas o estrago já estava feito.

Depois de tudo isso, o papa reapareceu na Praça de São Pedro na quarta-feira 1º, garantindo, em polonês, que, “se Deus quiser”, estaria em Pompéia (sul da Itália) na terça-feira 7. Como nem a Santa Sé conhece os desígnos do Altíssimo, ninguém sabe se João Paulo II poderá, mais uma vez, usar a máxima de Mark Twain – “as notícias sobre minha morte são exageradas”. De qualquer forma, as atenções já se concentram na composição do peculiar colégio eleitoral que escolherá o próximo papa, chamado conclave (do latim cum clave, com chave). Trata-se de uma reunião em que cardeais se trancam na belíssima Capela Sistina, no Vaticano, de onde só saem depois de terem ungido, entre seus pares, o novo Vigário de Cristo. Hoje, esses eleitores, incluindo os novos purpurados, somam 135 cardeais – um número recorde, já que o limite estabelecido para o colégio eleitoral cardinalício era 120. No total, são 195 cardeais, mas só votam aqueles com menos de 80 anos.

Bola de cristal – Um dos mais conhecidos ditados de Roma assegura que quem entra papa no conclave sai dele cardeal. Trocado em miúdos, significa que é temerário falar em favoritos, como numa eleição normal. Karol Wojtyla, por exemplo, nunca foi citado nas listas de papabili que circulavam quando se tornou João Paulo II, em outubro de 1978. Por isso, elaborar previsões sobre sucessores do papa pode ser um exercício tão cansativo quanto inútil. Apesar disso, é quase impossível fugir dessas listas; elas se impõem, como uma força sobrenatural, mesmo que seja apenas para satisfazer a curiosidade mórbida do público – ou da mídia. Mas é uma missão traiçoeira.

Para alguns papabili, traiçoeiros têm sido o tempo e as circunstâncias. Há dez anos, quando começou o calvário de João Paulo II, o arcebispo-emérito de Milão, o cardeal Carlo Maria Martini, era apontado pela mídia como um dos mais fortes candidatos à sucessão. Hoje, aos 76 anos, tem-se como certo que seu momento já passou. De qualquer maneira, Martini sempre teve um perfil demasiado liberal para obter o consenso de um conclave. Ele defende a descentralização do poder da Igreja, maior participação dos leigos e das mulheres e a ampliação do ecumenismo. Erudito e poliglota, Martini chegou a discutir ética e moral com o pensador agnóstico Umberto Eco. Tudo isso tornou tensas as relações entre ele e a Cúria romana, a burocracia do Vaticano. Para complicar, Martini é jesuíta e, embora isso não o impeça de ser papa, nunca houve pontífice oriundo dessa ordem.

Ainda entre os italianos, são citados Dionigi Tettamanzi e Giovanni Battista Re, ambos com 69 anos. O primeiro, arcebispo de Milão, é ligado à organização conservadora Opus Dei e tido como ortodoxo em questões teológicas. Apesar disso, apoiou os movimentos de protesto contra a globalização na cúpula do Grupo dos Oito (G-8) realizada em Gênova, em 2001. Já Battista Re, membro de longa data da Cúria, é tido como um defensor de reformas na burocracia vaticana. Da lista dos italianos estão excluídos poderosos da Cúria, como Angelo Sodano, secretário de Estado da Santa Sé, Joseph Ratzinger e Camillo Ruini, vigário de Roma. Poucos acreditam que figuras tão polêmicas obtenham consenso.

O belga Godfried Danneels, 70 anos, é outro adepto da reforma da Cúria, mas sofreu um grave ataque cardíaco em 1997. Os alemães Walter Kasper, 70, e Karl Lehmann, 67, também são citados, mas ambos são considerados muito liberais. Já o dominicano-austríaco Christoph Schönborn, 58, arcebispo de Viena, ganhou pontos apagando o incêndio provocado por seu antecessor, Hans H. Gröer, acusado de pedofilia – um pesadelo recorrente do clero católico contemporâneo. Ultimamente, tem cometido algumas gafes. Na quinta-feira 2, por exemplo, declarou que: “O mundo todo está vendo um papa doente, incapacitado, que está morrendo. Ele está se aproximando dos últimos dias e meses de sua vida.”
Caso o conclave se incline para a escolha de um papa do Terceiro Mundo, um nome sempre lembrado é o do nigeriano Francis Arinze, 70 anos. Nascido da tribo ibo, ele converteu-se ao catolicismo aos nove anos. É considerado moderado, embora tenha, como João Paulo II, opiniões extremamente conservadoras a respeito da moral. O jornalista John L. Allen Jr. inclui o sul-africano Wilfrid Fox Napier, 62 anos, arcebispo de Durban, como outro possível candidato africano. E, se o conclave mirar a América Latina, majoritariamente católica, o brasileiro Claudio Hummes, cardeal-arcebispo de São Paulo, 69 anos, é um dos mais cotados. Outro latino é o arcebispo de Tegucigalpa (Honduras), Oscar Rodríguez Maradiaga, 60 anos, mas suas posições sociais o tornam um tanto esquerdista para os gostos de um conclave.

Indiferente às discussões sobre sua sucessão, o papa João Paulo II continua fazendo planos para o futuro, mesmo doente e alquebrado.
Por isso, poucos duvidariam da existência, entre as pias almas da
Santa Sé, de um sentimento de impaciência similar ao manifestado
por um dos cardeais que elegeram o papa Leão XIII, morto em 1903, depois de um pontificado de 25 anos: “Nós elegemos um Santo
Padre, não um Padre Eterno.”