08/10/2003 - 10:00
Faz pouco mais de 30 anos que o sábio Mário Henrique Simonsen sintetizou em uma frase séculos da história econômica da região Norte do Brasil: “A única coisa que falta na Amazônia é imaginação”, disse o então ministro da Economia, após uma longa seção de pedidos de ajuda e reclamações de empresários locais. Se fosse vivo, Simonsen talvez começasse a mudar seu conceito sobre uma área que cobre 60% da extensão territorial brasileira com o mais rico conjunto de fauna, flora e minerais do mundo, mas que até hoje não consegue caminhar com suas próprias pernas em termos de desenvolvimento socioeconômico.
Não é o caso de um novo ciclo da borracha a repetir a alucinada aventura da penúltima virada de século. Também não se trata de mais um projeto para rasgar estradas inúteis e intermináveis na floresta. Tampouco surgiu mais uma fórmula tributária que faça aparecer da noite para o dia um novo distrito industrial como a Zona Franca de Manaus. O que se vislumbra hoje, em meio à úmida atmosfera da floresta, são pequenas nuvens de imaginação. Elas trazem a mensagem de que é possível ganhar dinheiro, integrar comunidades isoladas e proteger a natureza ao mesmo tempo. Saber se elas vão ter força para criar uma nova atmosfera de desenvolvimento é uma questão de tempo. O importante, por enquanto, é que tomem força para um dia, quem sabe, se transformar na locomotiva econômica da região.
Um bom apanhado de iniciativas imaginativas foi a mostra Amazontech 2003, organizada em Manaus no fim de setembro pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Gente como o baiano Jorge Luiz da Silva Sales teve a chance, ao longo do evento, de vender seu peixe (ou guaraná, no caso dele) e de contar sua história (ótima, por sinal). Foi há mais de 20 anos que o engenheiro elétrico, empregado do pólo petroquímico de Camaçari, cortou os rios do Amazonas a passeio, se apaixonou e sonhou em se mudar para lá. O sonho virou realidade logo, quando a Petrobras descobriu petróleo e gás natural em Urucu, hoje uma base de exploração distante 680 quilômetros de Manaus e só acessível por via fluvial ou aérea. Em meados dos anos 80, Sales deixou a Bahia para trabalhar na implantação da unidade petrolífera, onde dá expediente até hoje. Tamanho é o isolamento do lugar que os funcionários operam num curioso turno: 14 dias ininterruptos de trabalho seguidos de 14 dias de folga.
“Eu passo duas semanas do mês no meio do mato e as outras duas semanas… no meio do mato”, brinca Sales, 52 anos não aparentes.
É que ele resolveu se instalar em Maués, um município de 35 mil habitantes localizado 16 horas rio acima a partir de Manaus, considerado a capital mundial do guaraná. “Eu produzo o melhor guaraná do planeta”, garante Sales. O raciocínio que o leva a esse arroubo de imodéstia é tão simples quanto irrefutável: “Só compro os melhores frutos da produção
de Maués, que por sua vez é a melhor do mundo.” Os frutos entram na ainda modesta linha de produção da Guaraná Maués, a empresa que
Sales toca durante os 14 dias que não está em Urucu, e saem em formato de pó. Não há um supermercado de Manaus que não venda
a mercadoria, que começou a ser produzido há apenas oito anos.
Planos? “Abrir uma fábrica em Manaus.”
Incentivos – A grande ironia é que, se Sales vier a realizar seu desejo, será obrigado (como é hoje, diga-se) a pagar rigorosamente todos os impostos devidos, sem nenhuma folga. Muito provavelmente ele será vizinho de uma empresa de capital estrangeiro que não paga impostos para montar produtos eletrônicos cujas peças vêm de algum lugar do Sudeste Asiático no berço esplêndido da Zona Franca. Pensando em eliminar essa distorção, o governo do Amazonas deu início a um projeto chamado de Zona Franca Verde. O primeiro passo foi dado durante a Amazontech, quando o governador Eduardo Braga (PPS) enviou à Assembléia estadual uma reforma tributária que proporciona tratamento diferenciado aos transformadores de matéria-prima da região. “O modelo que buscamos não será de grandes empreendimentos”, diz Braga, mirando no potencial de gente como o baiano Sales.
Além de incentivos fiscais, o projeto prevê injeção de recursos e assistência técnica para os empreendedores da região. “Não existe
outro caminho no longo prazo”, afirma o governador, que tem pela
frente a ingrata tarefa de encontrar o rumo do desenvolvimento para, entre outras coisas, tirar do século XIX determinadas regiões do Estado, o maior do País em extensão territorial e com população de três milhões de habitantes. “Temos mais de 300 mil pessoas que vivem sem luz elétrica. Precisamos pagar essa dívida histórica.” Dinheiro estrangeiro, segundo Braga, não chega ao Estado para financiar projetos relevantes há 15 anos. “Estamos cansados das ONGs que abrem projetos pilotos
na mata, tiram fotografia para a primeira página do New York Times
e nunca mais aparecem.”
Jorge Alberto Coelho da Silva nunca lidou
com ONGs nem apareceu em capa de jornal americano, mas vem construindo uma das
mais curiosas histórias de sucesso entre os empreendedores locais. Faz apenas cinco anos que ele investiu R$ 300 para fundar a Bombons Finos da Amazônia, em Manaus. Sem alternativas depois de 30 anos de carteira assinada em grandes empresas e de uma fracassada tentativa de negócio próprio, Coelho da Silva e sua esposa, dona Lúcia, resolveram produzir, em casa mesmo, o tradicional bombom de cupuaçu. Nas primeiras semanas, o casal vendia perto de mil unidades. Hoje, a fábrica do casal tira 15 mil unidades
por dia de doces de diversos sabores inspirados em frutos da região (araçá-boi, açaí, castanha, cubiu, entre outros). “Eu preciso, nos
próximos seis meses, triplicar a produção”,
conta o empresário.
Emprego – Não há visitante ilustre que não saia de Manaus com uma das belas caixinhas de doces produzidos por artesões locais a pedido da Bombons Finos. Cada membro da Seleção Brasileira, por exemplo, foi embora da cidade no início de setembro levando a vitória sobre o Equador e um saco de juta forrado com 70 doces produzidos pela empresa. A fábrica emprega 23 pessoas diretamente, além dos artesãos e do pessoal necessário para colher três toneladas por mês de cupuaçu, sem contar os outros frutos. Nada mau para uma empresa formada há cinco anos.
Ainda mais fulminante, quase imediato, foi o sucesso da Native, uma loja de objetos de decoração instalada em dezembro do ano passado no porto de Manaus, na área reservada para turistas. No segundo dia de funcionamento, o estabelecimento foi invadido por uma leva de americanos que acabara de desembarcar de um cruzeiro. Sobrou pouca coisa no estoque após a blitz consumista ianque. “Não estamos dando conta da produção, temos de respeitar o ritmo da floresta e dos artesãos”, diz a publicitária Rosana Trilha, sócia da loja com sua colega de profissão Tânia Ferraz.
O desenho inovador das peças e o acabamento perfeito garantiram o sucesso da empreitada, iniciada na verdade há quatro anos dentro da Fundação Centro de Análise, Pesquisa e Inovação Tecnológica (Fucapi). “Todas as peças são produzidas com resíduos da floresta. Nenhuma árvore é derrubada”, diz a diretora da Fucapi, Isa Assef. Os objetos são feitos nos rincões do Amazonas por bem treinadas equipes de marcenaria. Mais um gol do projeto: criar fonte de renda no local de origem das pessoas, reduzindo o fluxo em direção aos grandes centros urbanos do País.
Pergunte, por exemplo, a Isana Carvalho Peres, uma bela morena de traços típicos da região, se ela quer deixar Rio Branco, a capital do Acre, para tentar a vida em outro lugar. A resposta será negativa. Aos 21 anos, ela é um dos motores da Associação Acreana de Artesãos, que recentemente encontrou clientes na Alemanha para os colares e pulseiras produzidos com sementes da floresta. Os pais de Isana já viviam disso, mas é ela quem está conseguindo agregar um pouco de informação e agressividade comercial ao negócio. Graças, em parte, à faculdade de administração que ela paga com o trabalho de artesã. “Aos poucos, a gente vai aprendendo a atender os clientes, a caprichar nas embalagens”, diz a moça.
Imaginação – Quase um século antes de Isana começar a traçar seu próprio caminho, o farmacólogo italiano Francisco Filizzola alojou-se no rio Juruá, um afluente da margem direita do rio Amazonas, fugido da Primeira Guerra Mundial. Uma de suas filhas, Izabel, herdou as fórmulas desenvolvidas por Filizzola com os recursos naturais da região e, no fim dos anos 60, abriu uma empresa de produtos de beleza chamada Juruá. A atriz Tônia Carrero conheceu os produtos e, espontaneamente, passou a divulgá-los. Mais de 30 anos depois e já na quarta geração familiar, a empresa acaba de abrir uma moderna loja-modelo em Belém do Pará (sede da empresa). Os sabonetes e xampus feitos a partir de substâncias naturais, como andiroba, copaíba e banha de tartaruga, ganharam até o mercado externo. “Tentaram até copiar meus sabonetes no Japão”, diz Sônia Busman, filha de Izabel. “Mas não deu certo”, diverte-se. Mais uma prova de que imaginação não se compra, não se copia nem dá em árvore.