08/10/2003 - 10:00
A rua Oscar Freire, no elegante bairro dos Jardins, em São Paulo, reduto das vitrines mais caras do Brasil, é um dos poucos lugares ao ar livre que ainda resistem às dezenas de shoppings centers que se instalaram na cidade, nos últimos dez anos. Badaladíssima, é frequentada por quem quer – e pode – gastar, passear, ver e ser visto. O que pouca gente sabe, no entanto, é que o nome da rua é uma homenagem a um médico baiano, que viveu apenas nove anos em São Paulo. O legista Oscar Freire de Carvalho foi um dos fundadores do Instituto Médico Legal de São Paulo e da Bahia e o primeiro professor da especialidade na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Ao morrer, aos 40 anos, deixou a mulher, Marieta, e dois filhos ainda jovens: Estélio e Zeneida. Marieta voltou para Salvador e lá ficou até o final da vida com os filhos. Zeneida está hoje com 99 anos e vive na capital baiana, em companhia da filha Nícia, 65. Sua outra filha, Isa Maria, 75, mora com um dos seus sete filhos.
Conversar com Zeneida é reviver a história. Ela se lembra com saudade dos anos em que viveu em São Paulo. “É minha segunda terra. Fiquei lá até o papai morrer. Agora dizem que está tudo diferente. Mas eu ainda lembro dos piqueniques na praça Buenos Aires com as amigas”, conta. A filha de Oscar Freire guarda na memória o longínquo ano de 1914, quando o governo do Estado de São Paulo convidou o legista Oscar Freire para ir a São Paulo fundar a cadeira de Medicina Legal da Universidade de São Paulo. A indicação de Freire tem duas versões: as netas contam que ele foi recomendado por médicos franceses, mas alguns registros históricos afirmam que ele veio a convite do também médico Arnaldo Vieira de Carvalho – o mesmo da avenida Doutor Arnaldo, vizinha à rua Oscar Freire. Assim que chegou em São Paulo com a família, o médico morou em diversas pensões no bairro de Higienópolis, até se instalar numa casa na rua Martinico Prado, que foi frequentada por intelectuais, como o médico Osvaldo Portugal e o jornalista Julio Mesquita. Freire foi personagem ilustre da cena acadêmica paulistana, mas morreu precocemente e sem dinheiro. “Ele pegou uma pneumonia e não resistiu”, explica Zeneida.
Mãe moderna – O governo de São Paulo contratou um navio para levar o corpo a Salvador. A volta para a Bahia, em tais circunstâncias, deixou marcas indeléveis na família Freire. Zeneida, então com 19 anos, ainda se lembra da dor de perder o pai, de quem era muito próxima, e de deixar a cidade na qual viveu sua adolescência. “Na Bahia, sou turista. Depois que eu vim de São Paulo virei uma estranha.” Seu irmão mais velho, Estélio, também morreu jovem, com apenas 33 anos. Mas nem só de saudade vive a herdeira de Oscar Freire. Logo depois de voltar para a Bahia, ela se casou com Eder Muniz de Aragão, também legista, pai de suas filhas. Zeneida, que hoje tem 11 netos, foi uma mãe “moderna e independente”. “Deixava minhas filhas saírem, namorarem. Sempre cuidei de tudo, sem precisar de ninguém. Agora não. Com 99 anos, tenho direito de ficar caduca”, brinca. Mas de caduca ela não tem nada. Embora com problemas de visão devido a uma catarata, fica ligada em seu rádio para saber o que se passa no mundo.“Não gosto dos Estados Unidos. Eles querem engolir o mundo. São negociantes e querem impor o estilo deles, que não é o nosso. Somos latinos, né?”, argumenta.
Ao que parece, a família é um tanto politizada. Isa, a filha mais velha, se diz “subversiva”. Desenhista talentosa – pintou o quadro do avô como lembrança –, entrou na Faculdade de Belas Artes, numa época em que as mulheres não iam para a universidade. Depois trabalhou no Diário da Bahia e na Rádio Excelsior. Durante a ditadura militar, foi presidente do diretório estudantil da faculdade. “Eu, claro, era contra a ditadura. Fui até perseguida por isso. Tive que queimar os livros de Caio Prado Júnior…”, lamenta. Hoje festejada e conhecida em Salvador como artista plástica e professora, Isa não sabe direito como se livrou da prisão. “O Antônio Carlos Magalhães me conhece desde mocinha e provavelmente foi ele, que era aliado dos militares, quem impediu minha prisão.” Ironicamente nessa mesma época, sua irmã, Nícia, era funcionária de gabinete do governo do Estado da Bahia.
Isa e Nícia fazem questão de destacar o quanto têm personalidades antagônicas. “Ela se enquadra no sistema”, acusa Isa. A caçula se defende: “Se você quer transformar, primeiro deve entender como o sistema funciona. Do contrário, não pode influenciá-lo”, filosofa. Embora discordantes em quase todos os temas, as duas são inseparáveis. Bem- humoradas, trocam chacotas o tempo todo. Isa ama a Bahia e diz que “os paulistas ignoram o resto do Brasil e só enxergam o Sul maravilha”. Nícia logo rebate: “Mas é maravilha mesmo. Lá tem de tudo, nem se compara.” Formada em administração de empresas, Nícia conta que a sua criação foi mais conservadora do que a da irmã. “Minha vida foi pautada em sistemas tradicionais, estudei em colégios de freiras, trabalhei na Secretaria da Fazenda e fiquei no gabinete do governador por 14 anos.”
Em Salvador, as irmãs não são conhecidas por serem netas de Oscar Freire. E também não sabem direito o quanto é badalada a rua que leva o nome do avô. “Lá tem rua, museu, instituto, um monte de coisas com o nome de vovô. Mas morreu tão pobre que o governo ficou com os livros dele e deu o dinheiro para a viúva e os filhos poderem voltar para cá e sobreviver”, comentam. Exatamente 80 anos depois disso, a ONG Boulevard Oscar Freire – formada por comerciantes da região –, em parceria com a Eletropaulo, está investindo R$ 7 milhões numa mega-reforma que vai deixar a rua ainda mais sofisticada e iluminada. A obra deve estar pronta no dia 25 de janeiro de 2004, data em que a cidade de São Paulo comemora 450 anos.