Com um cartão de visitas ostentando o invejável currículo de uma das principais exportadoras de agrobusines do País e maior esmagadora de soja do Brasil, a multinacional Bunge Alimentos S/A tem gerado milhares de postos de trabalho e obtido uma série de incentivos fiscais para interiorizar suas atividades. No Piauí, a empresa começou a operar em agosto na cidade de Uruçuí, em pleno cerrado, com a promessa de investir
R$ 420 milhões, gerar 517 empregos diretos e outros 10,4 mil indiretos até 2007. Para isso, a Bunge foi beneficiada com isenção do ICMS por 15 anos. Na região de Uruçuí, prefeitos já festejam a chegada do asfalto
e de um comércio cada dia mais aquecido. Essas comemorações, no entanto, podem estar com os dias contados. O Ministério Público Federal, o Ministério Público Estadual e a Funáguas – Fundação Águas
do Estado do Piauí – brigam na Justiça para que as atividades da Bunge sejam imediatamente suspensas até que se tenha uma exata noção dos danos que ela vem provocando ao meio ambiente nos últimos dois meses.

A postura do Ministério Público desagradou o governo estadual,
que vislumbra em apenas dois anos triplicar a produção anual de soja, passando das atuais 200 mil para 600 mil toneladas. Sob a batuta do governador Welington Dias (PT), técnicos do governo sustentam que todas as operações realizadas pela Bunge estão de acordo com as exigências constitucionais. A empresa, é verdade, só começou a funcionar depois de apresentar o Estudo de Impacto Ambiental (EIA/Rima) e obter a aprovação da Secretaria Estadual do Meio Ambiente. O que o Ministério Público questiona, no entanto, é a qualidade das informações contidas nos documentos. O EIA/Rima apresentado pela Bunge é um calhamaço de 205 páginas que simplesmente ignora que para fazer o esmagamento dos grãos
e secar a soja é necessário aquecer caldeiras e, para isso, a
empresa optou pela matriz energética mais barata: a lenha. O documento aceito passivamente pelo governo desconsidera a
origem e a quantidade de lenha necessária.

“O EIA/Rima apresentado pela Bunge apresenta um conjunto de falhas técnicas, estruturais e ortográficas difíceis de se imaginar que possam estar incluídas em um único documento. Atuamos nesta área em todo
o País há 17 anos e nunca vimos um EIA tão falho e comprometido”, atesta Álvaro Fernando de Almeida, do Departamento de Ciências Florestais da Universidade de São Paulo. Segundo ele, da forma como
as coisas estão sendo operadas pela Bunge no Piauí, “haverá um imenso impacto ambiental negativo, com destruição total da fauna e da flora
nas áreas ocupadas, danos significativos nos solos desmatados, reduzindo-se a recarga do lençol freático, comprometendo a qualidade da água dos rios e provavelmente afetando o clima da região”. Ainda
em seu relatório, anexado pelo MP na ação judicial, o professor
Almeida diz estranhar o fato de a secretaria ter aceito uma
avaliação ambiental “carregada de erros”.

Para contrapor o professor, a Bunge alega que o relatório foi endossado por um laudo feito pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O problema é que os documentos apresentados pela empresa revelam uma incrível ação entre amigos. Uma das responsáveis pela elaboração do EIA/Rima da Bunge é Iracildes Moura Fé Lima, casada com Almir Lima, o técnico responsável pelo laudo do Ibama. Além disso, o Ministério Público também questiona o fato de
o governo não ter feito audiência pública antes da concessão do aval para funcionamento da empresa, como determina o Conselho Nacional
do Meio Ambiente. A curadora do Meio Ambiente do Ministério Público Estadual, Carmen Almeida, responde a isso de maneira singela. Diz apenas que perdeu o prazo para requerer a audiência pública. Ela é casada com o advogado Joaquim Almeida, secretário de Governo e ex-coordenador da campanha de Wellington Dias. Conhecido como Lord, Almeida possui uma carteira de clientes investigados por lavar dinheiro em empresas instaladas em paraísos fiscais. Ele também é o procurador da empresa Mineradora Graúna, terceirizada pela Bunge para o fornecimento de lenha. No ano passado, quando negociava sua entrada no Piauí, a Bunge despejou nas campanhas políticas do Estado um terço de tudo o que destinou oficialmente para campanhas em todo o Brasil, favorecendo gregos e troianos. Um dos mais aquinhoados foi o deputado Sebastião Rocha Leal Júnior (PFL), que escolheu sua cidade natal, Uruçuí, para sediar a Bunge.

Lucro x natureza – Análises feitas pelo MP e pela Funáguas, a partir de dados fornecidos pela própria Bunge, indicam que a quantidade de lenha necessária para o funcionamento da empresa é muito superior ao que foi delimitado e aprovado pelo Ibama e pela Secretaria do Meio Ambiente. No projeto apresentado ao governo do Piauí há a previsão de um consumo anual de 114 mil metros estéreis de lenha até 2007. O MP descobriu, porém, com fabricantes de caldeiras similares à da Bunge, que será necessário um consumo de 11.021 quilos de lenha por hora para que a empresa cumpra seus objetivos. Como um metro estéril de lenha rende perto de 400 quilos, a Funáguas constatou que serão necessários 27,5 metros
de lenha por hora, o que representa 217,5 milhões de metros
estéreis de lenha por ano, quantia bem superior aos 114 mil
descritos no projeto da empresa.

No cerrado piauiense é possível a extração de 20 metros estéreis de lenha por hectare. Portanto, para alimentar a caldeira da Bunge será necessário desmatar 10.876,7 hectares por ano. Como a multinacional paga R$ 22 por metro estéril de lenha, suas caldeiras acabaram produzindo uma corrida ao desmatamento desordenado em Uruçuí. “No Piauí existem dez milhões de hectares de cerrados e apenas dois milhões aptos para a agricultura. É evidente que o grande provedor de lenha para a Bunge serão os oito milhões de hectares restantes. Ainda mais
em se tratando de uma região de fronteira, onde a fiscalização é quase inexistente”, diz Júdson Barros, presidente da Funáguas. Ele é um dos diretores da Secretaria de Meio Ambiente e está com o emprego ameaçado. “Ou ele toca o sino ou acompanha a procissão”, disse o governador ao saber da ação judicial contra a Bunge.

A Bunge alega que a lenha utilizada é fornecida pelos próprios plantadores de soja, usando a madeira retirada de área desmatada para o plantio. Na ação proposta pelo MP, porém, o argumento é rechaçado. “É evidente que os plantadores usam a lenha para a sua própria soja, que só após a secagem adquire condições de estocagem e melhor preço. E mesmo esses pequenos produtores muitas vezes compram lenha de terceiros, pois a madeira não serve mais para o aquecimento depois de dois anos de cortada”, afirma o procurador Travanvan da Silva Feitosa. O projeto da Bunge estipula uma parceria com a Mineradora Graúna, que teria a responsabilidade de fornecer a lenha. Para isso, a empresa se comprometeu a fazer o plantio de eucaliptos nas áreas desmatadas, equivalentes a cinco mil hectares. Mais uma vez o MP questiona a aprovação. O eucalipto plantado só está em ponto de corte para a lenha em no mínimo cinco anos. Como então a Bunge iria obter lenha nesse período?, questionam os procuradores.

Por fim, tanto o Ministério Público como a Funáguas observam que o melhor para o meio ambiente e para o desenvolvimento sustentado seria a opção por outra matriz energética. Resta convencer a empresa. Com o uso de gás, a empresa gastaria R$ 38,3 milhões por ano. Com a lenha, o gasto é de R$ 4,7 milhões anuais. É a antiga questão do “capital” versus meio ambiente. Na semana passada, a combativa ministra Marina da Silva sofreu um duro golpe ao ver o capital, mais uma vez, ser atendido na briga com os transgênicos. Recebeu o apoio de inúmeras entidades ambientalistas e já declarou não estar disposta a novas perdas, mesmo que para isso tenha que botar na mesa a afeição que tem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.