08/10/2003 - 10:00
Passava pouco das dez horas da manhã da terça-feira 30 quando o delegado José Góes Filho chegou ao prédio do antigo Ministério da Fazenda, no centro do Rio de Janeiro, onde funciona a Receita Federal. Responsável pela Delegacia de Arrecadação Tributária (Derat) por três anos, ele exercia a fiscalização de empresas em débito com o Leão e estava vivendo um dia especial: planejava se aposentar naquela terça-feira e um bolo serviria para marcar a data. Avisado de uma operação da Corregedoria da Receita Federal contra fraudes em seu departamento, teve que mudar seus planos. O homem que tinha a função de caçar sonegadores escapou por um elevador privativo e saiu de carro pela rua Debret, já na qualidade de caça. O delegado é acusado de ser um dos principais implicados no esquema criminoso de perdão de dívidas e liberação de restituições de empresas com a Receita e com o INSS, que teria lesado o Erário em pelo menos R$ 250 milhões, avalia o corregedor-geral da Receita, Moacir Leão, que viajou de Brasília ao Rio para investigar a maior fraude da história da instituição. Especula-se na Polícia Federal e na Justiça Federal que as fraudes possam chegar a R$ 1 bilhão. “Estamos apurando se houve vazamento de informação que possibilitou a fuga do delegado”, afirmou Leão. A PF conseguiu prender 16 pessoas, entre as quais Edmundo Santos Silva, ex-presidente do Flamengo e consultor de empresas. O cartola é acusado de fazer intermediação entre as empresas e a quadrilha de funcionários do Fisco, e sua prisão foi saudada por uma multidão à porta de sua empresa, que interrompeu o trânsito aos gritos de “Algema! Algema!”.
A investigação, que resultou na decretação da prisão temporária de 27 pessoas – 14 funcionários públicos, cinco advogados, oito despachantes –, começou há oito meses, com o recurso da escuta telefônica autorizada. Pelo esquema, empresas que tinham débito na Receita eram procuradas por intermediários – denominados consultores –, oferecendo anulação de dívidas e aquisição irregular de crédito. A ousadia foi tanta que, em alguns casos, o débito se transformava em restituição. Auditores recebiam entre 10% e 20% do valor anulado e a quadrilha fazia reuniões no prédio da Receita. “A promiscuidade dessa prática é tamanha que várias quadrilhas atuam no mesmo momento, participando de uma competição para verificar quem consegue realizar a fraude primeiro. Essa bizarra competição é conhecida entre despachantes como leilão”, diz a representação assinada pelo delegado da Polícia Federal, Maurício Mannarino Lopes, e apresentada ao juiz da 3ª Vara Federal, Lafredo Lisbôa, pedindo a prisão dos 27 suspeitos.
Como o delegado Góes, outros auditores e funcionários que estavam no prédio fugiram assim que os agentes da PF chegaram, depois de serem alertados pelo telefonema de um dos colegas. Apesar de ganhar um salário que não passa de R$ 12 mil, o delegado Góes Filho é sócio de sua mulher em uma empresa de táxi aéreo. Tem um apartamento e uma casa na zona sul e outros quatro imóveis na Baixada Fluminense. Ainda foragido, o titular da Derat negou, em entrevista ao Globo, a participação no esquema. “Não sei quais são essas empresas”, afirmou. Mas admitiu conhecer um dos principais acusados de intermediação entre auditores e empresários, o despachante Alberto Corrêa Neto.
O personagem mais famoso a ir para a cadeia foi mesmo Edmundo Santos Silva. Ele negou que sua consultoria, a Benefit Ltda., tenha propiciado o cancelamento de débitos de qualquer empresa, mas admitiu que Corrêa Neto o procurou com esse objetivo. “Um escritório de advocacia prometeu verificar alguns créditos pendentes e quis saber se eu conhecia algum daqueles clientes. Nenhuma das cinco empresas que eu conhecia teve crédito compensado, não aceitei o negócio.” Representantes de duas empresas citadas por Edmundo negaram a ISTOÉ, no entanto, que tivessem solicitado seus serviços. “Nunca fui cliente dele, ele é que era nosso cliente”, desmentiu Gilberto Ururahy, proprietário da clínica MedRio Check UP. O dono da empresa Abolição Veículos, Paulo Simões, mostrou-se revoltado. “Eu nem sequer o conheço socialmente”, afirmou. Simões recorda apenas que sua empresa recebeu, no ano passado, o telefonema de um advogado que se oferecia para agilizar o recebimento da restituição de imposto à qual a Abolição tem direito. “A proposta foi recusada imediatamente”, diz. O advogado que o procurou não está entre os relacionados pela Corregedoria. Pelo menos 21 empresas de grande porte podem ter sido beneficiadas pelas fraudes.
Na quinta-feira 2, Leão anunciou uma devassa em todos os processos da Receita nos últimos cinco anos. Uma força-tarefa com dez especialistas será formada, com apoio do Ministério Público Federal e da PF. Em um mês, a equipe deverá concluir o relatório das investigações. O corregedor, que tem a proteção de agentes federais, mostrou-se especialmente preocupado com processos de quatro empresas baixados indevidamente para o arquivo morto da Receita. Num dos escritórios de advogados, policiais federais encontraram documentos privativos da Receita Federal em que foram rasgados os cabeçalhos com a senha do funcionário que os imprimiu.