Para os brasileiros, o Chimborazo – vulcão no Equador – é tão estranho quanto o Pão de Açúcar para os povos andinos. A afirmação do curador alemão Alfons Hug reflete o consenso de que o Brasil não conhece a América Latina e, nem mesmo, o Brasil. Criada há oito anos, a Bienal de Artes Visuais do Mercosul surgiu em Porto Alegre para tentar restabelecer o elo entre os países do Mercosul, como endossa Nelson Aguilar, curador-geral da 4ª edição do evento inaugurado no sábado 4, que permanece em cartaz até 7 de dezembro. “Minha experiência de bienais ensina que só sobrevivem as que têm uma especificidade que, por razões pragmáticas, circunscrevem sua região, como as de Istambul, Kwangyu, Havana, Cuenca.” A defesa de uma autonomia da região explica o porquê da escolha do tema Arqueologia contemporânea, que direta ou indiretamente permeia as exposições das obras de 76 artistas de 13 países, distribuídas em 15 mil metros quadrados de espaços museológicos e armazéns do cais do porto da capital rio-grandense.

Este ano, o artista homenageado é o gaúcho Saint Clair Cemin, residente em Nova York. O país convidado é o México, que traz uma exposição de 60 pinturas do grande muralista José Clemente Orozco e uma representação de nomes contemporâneos, exposta no cais ao lado de artistas da Argentina, do Chile, do Uruguai, do Paraguai, da Bolívia e do Brasil. Outras presenças, como Cuba, Colômbia, Peru e Estados Unidos, estão na mostra transversal O delírio do Chimborazo, com curadoria de Alfons Hug. O título refere-se a um poema do libertador Simon Bolívar sobre experiência de vertigem e delírio durante escalada do vulcão Chimborazo. “Penso que o artista não precisa ser latino-americano para poder refletir sobre o destino do continente”, afirma Hug. “Basta ver o trabalho da americana Rachel Berwick, que investiga de maneira exemplar a questão do desaparecimento dos idiomas indígenas.” Participam também os fotógrafos alemães Frank Thiel e Michael Wesely. “Quando o assunto é paisagem, é difícil abrir mão da fotografia alemã, que possui ótimos recursos estéticos e técnicos para tal tarefa.”

As obras de O delírio do Chimborazo não têm um espaço delimitado. Perpassam todas as mostras, estabelecendo elos de comunicação entre países. Paradoxalmente, funcionam como elementos contaminadores da estrutura tradicional de montagem por representações nacionais. É dentro deste espírito de diluição de fronteiras que o português-brasileiro Artur Barrio intitula sua instalação Situação/trabalho: lugar nenhum. “Aqui, posicionado entre o Uruguai e o Chile, meu lugar é esse: lugar nenhum”, afirma Barrio.

Não são raros casos como o do catarinense Ivens Machado, que reconhece em seu trabalho identidade maior com artistas italianos do que com os locais. “Eu não conheço a arte latino-americana. Talvez aqui seja o contato mais próximo que eu já tenha tido até hoje”, reconhece ele. “Também tenho uma relação bastante insular com a arte brasileira. Minhas referências e inspirações estão todas na arquitetura popular”, completa Machado, que expõe uma escultura monumental, construída com madeira e tijolos.

Se este é um espaço de respeito entre as diferenças, é igualmente
lugar onde se manifestam as relações de amizade. É o caso de María Freire, representante do concretismo uruguaio; de Lygia Pape, que integra a representação brasileira; e de Lívio Abramo, que ganhou
uma mostra icônica de seu trabalho no Paraguai. Os três foram
grandes amigos na década de 1950, anos de investigação em
torno da abstração geométrica.
 

As questões contemporâneas
também se entrecruzam. O idioma comum internacional é cada vez mais falado, tanto nas bienais quanto nas grandes mostras coletivas, como o Panorama da arte brasileira 2003, em cartaz no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) a partir de 16 de outubro. Em sua 28ª edição, o já tradicional panorama da produção brasileira admite este ano um artista belga, um chinês e um argentino – Jorge Macchi –, que também está na bienal.

Durante a montagem da Bienal do Mercosul, o uruguaio Carlos Capelán, que investiga as relações entre o “eu” e o “outro” a partir da perspectiva de seu Auto-retrato, encontrou no paranaense Laércio Redondo algumas afinidades – além do fato de ambos serem residentes na Suécia. Há na instalação Hotel solidão, de Redondo, um ambiente de espelhos e transparências que sugere não apenas a duplicidade do eu, mas o anonimato e os territórios de passagem. Redondo é um dos nove artistas selecionados por Franklin Pedroso para a representação brasileira. “Cada curador interpretou de uma forma o tema proposto pelo curador-geral. Procurei a arqueologia do ser humano. Todos os trabalhos dos brasileiros estão ligados à questão do DNA”, diz Pedroso. A idéia da mutação genética está na brasileira nascida na Alemanha Janaína Tschäpe, que cria seres “meio monstro, meio mulher”. Nos vídeos da série After rain, Janaína modifica corpos de mulheres reais – geralmente amigas suas – com próteses. Produz seres que são aberrações surrealistas, moradores de uma natureza com atmosfera de fábula.

Metamorfose é igualmente a questão da paulistana Rosana Paulino,
que produziu uma colônia de mulheres-lagartas subindo pelas paredes.
A instalação Tecelãs é inspirada na lenda de Aracne, deusa grega
que é transformada em aranha e passa a produzir fios. “Há uma
relação arquetípica entre mulheres e insetos. Pensando nas mulheres costureiras, criei esses seres geneticamente modificados, com fios internalizados”, explica a artista, que cultivou o fascínio por insetos
ao cursar anos de biologia. “Como não posso fazer manipulação
genética no laboratório, faço no ateliê.”

Arte e ciência também se sobrepõem no trabalho da mexicana Teresa Margolles, que fez medicina para poder trabalhar com dejetos humanos. Em Porto Alegre, a artista produziu uma mesa e uma cadeira com cimento fabricado com água da lavagem de corpos de gente assassinada. Enquanto ela preparava sua obra, não havia uma pessoa à volta que não fosse obrigada a usar máscara devido ao mau cheiro. A obra ganhará instalação permanente em praça pública.

Não faltam nesta Bienal do Mercosul reflexões consistentes e de impacto sobre a identidade ou a genética humana. A diversidade dos pontos de vista certamente garantiria por si só o interesse pelo evento. Não se entende, portanto, que relevância pode ter dentro do contexto das artes visuais no Mercosul ou no mundo a instalação Arqueologia genética, que apresenta o resultado de uma pesquisa de ancestralidade de 50 integrantes da bienal. Entende-se, porém, que essa iniciativa possa eventualmente fazer diferença para os números do evento, conforme indica o empresário Renato Malcom, atual presidente da Fundação Bienal do Mercosul. “Prevemos a visitação de um milhão de pessoas. Com o ineditismo da pesquisa que o Aguilar criou, a intenção é popularizar esse público, que ainda é especializado.”

Na mesma mira de ampliação de visitantes, a mostra Arqueologia das terras altas e baixas traz 100 peças pré-colombianas dos Andes, da Amazônia e do litoral atlântico. O crescimento do evento, seja em investimentos – que este ano chegam a R$ 8 milhões –, seja em espaço útil, seja em número de visitantes (as edições anteriores tiveram sucessivamente 295 mil e 604 mil), é um indicador de que a popularização já é uma vocação da Bienal do Mercosul.