Diplomata, político e professor universitário especializado em relações internacionais, o advogado Juan Pablo Lohlé, novo embaixador da Argentina no Brasil, é um fã de carteirinha do Mercosul há 30 anos, desde o tempo em que Brasil e Argentina se consideravam inimigos potenciais à beira de uma guerra. “Falo em integração desde a faculdade, quando militava na ala esquerda do peronismo”, conta, com orgulho, o embaixador de 53 anos. Hoje, ele cumpre com prazer a missão de acelerar a ampliação do Mercosul, missão para a qual foi designado pelo amigo de 30 anos, o presidente Néstor Kirchner, de quem foi assessor para assuntos internacionais durante a campanha eleitoral. Lohlé, descendente de alsacianos, acha que Brasil e Argentina tiveram um bom teste para sua união ao enfrentar Estados Unidos e União Européia na reunião da Organização Mundial do Comércio em Cancún, há duas semanas. “Muita gente no mundo não gosta de ver Brasil e Argentina unidos. Exatamente porque essa união aumenta nossa força”, afirma. Interlocutor privilegiado de Kirchner, o embaixador Lohlé minimiza o noticiário que cercou o anúncio do calote ao FMI praticado pela Argentina há duas semanas e que informava da contrariedade do presidente argentino com a ausência de solidariedade formal do Brasil. “O Brasil tinha que manter uma postura discreta por causa de suas próprias negociações com o FMI. Mas o governo brasileiro tinha sido avisado muitos dias antes, mostrando que a interação entre Kirchner e Lula continua”, garante. Semana passada, o embaixador recebeu ISTOÉ para uma conversa onde falou o tempo todo em português. “Se estou no Brasil, tenho que falar a língua dos brasileiros”, afirmou.

ISTOÉ – Na reunião da OMC em Cancún, a proposta conjunta dos EUA e da UE foi rejeitada. Como avalia o papel do G-22 (países reunidos sob a liderança do Brasil para exigir o fim dos subsídios agrícolas europeus e americanos)?
Juan Pablo Lohlé

O mais importante foi o posicionamento desses países, Brasil e Argentina incluídos. Foi uma posição diferente que surpreendeu a todos. Os argumentos apresentados pelo G-22 tiveram
o efeito de neutralização das propostas dos países ricos e agora temos que recomeçar as negociações em bases distintas. Ninguém quer o fracasso da OMC e de outros foros internacionais. Mas agora é preciso levar em consideração a posição de dois terços do mundo, que têm necessidades diferentes das dos países mais desenvolvidos. Este é
o fato realmente importante, uma nova posição na cena internacional que foi explicitada pelo G-22.
 

ISTOÉ – Os países do Mercosul, nas negociações com os Estados Unidos, estavam transferindo os temas mais polêmicos para o âmbito da OMC. Com o impasse, como fica a Alca?
Juan Pablo Lohlé

A Alca agora vai ter que significar abertura real de mercado, mas com reciprocidade, e não apenas com jogo de poder. Na democracia internacional, quando não há consenso, tem-se que tentar novamente. O problema da assimetria de poder deve passar pela compreensão de que não se trata apenas de poder. Quando se compreende isso, você pode mudar. Um sistema internacional eficiente tem que integrar as desigualdades, e não apenas fazer uma integração de poder. Hoje, depois do fim da guerra fria, você tem outro panorama no mundo que não se baseia apenas nas relações de poder. No mundo futuro, teremos que juntar os que têm poder e os que não têm. Os que têm poder são poucos, mas os que não têm são muitos. Quem vai ter mais força? O segredo vai ser combinar essas duas coisas.

ISTOÉ – O surgimento do G-22 e do G-3 (Mercosul, África do Sul e Índia) é um sinal dessa nova forma de política internacional?
Juan Pablo Lohlé

Essa é uma tendência real, de integrar as desigualdades, de não se ter apenas grupos de países com poder. Os ricos terão que
ser mais generosos. Os europeus terão que perceber que o mundo não termina na Europa. Seus interesses são válidos, mas não podem se sobrepor às necessidades mundiais. O problema agrícola, por exemplo,
é simples na essência: gente que tem pão e muita gente que não tem.
É preciso equilibrar isso.

ISTOÉ – Durante a guerra fria, as tensões terminaram por levar o Ocidente a fazer concessões, reformas sociais, welfare state, como forma de se proteger da influência do bloco comunista. Agora, por que haveria a potência hegemônica de fazer concessões, sem um contraponto como o da URSS? E a Europa?
Juan Pablo Lohlé

Primeiro, não acho que os EUA e a Europa estejam em uma posição de força. Você tem uma posição de força quando pode convencer os outros países. Quando você só tem o poder, não consegue novos aliados. O verdadeiro poder é a capacidade de somar, de ter mais gente com você, ter mais credibilidade internacional, mais perspectivas.

ISTOÉ – Na decisão da Argentina de dar o calote no FMI, houve especulação sobre um estremecimento entre os dois presidentes pelo fato de Lula não ter ao menos dado um telefonema de solidariedade a seu colega argentino. O que realmente aconteceu?
Juan Pablo Lohlé

A situação do Brasil e da Argentina hoje é diferente. O Brasil estava e está em negociações com o FMI e tinha que ter uma posição prudente. Mas os ministros da Fazenda e das Relações Exteriores dos dois países mantiveram conversas o tempo todo e o Brasil tinha sido avisado, com muitos dias de antecedência, do que a Argentina ia fazer. O que saiu na imprensa deve ser relativizado. A verdade é que tem muita gente que não quer ver Brasil e Argentina juntos, atuando em conjunto, somando forças. Tanto aqui no Brasil quanto lá na Argentina, há setores que não gostam da idéia do Mercosul. Tem o empresário, dos dois lados, que não quer a integração por medo da concorrência, dos interesses internacionais. Não se pode esquecer que, juntos, Brasil e Argentina podem fornecer comida para boa parte do mundo. Veja o caso da China: todo mundo quer entrar no mercado chinês, fornecendo alimentos, grãos, carne, etc. Se Brasil e Argentina forem juntos, como está definido, se tornam um concorrente difícil de ser batido. E muita gente não gosta dessa idéia.
 

ISTOÉ – Depois da crise do real e da crise argentina, muita gente decretou a morte do Mercosul…
Juan Pablo Lohlé

Os economistas, quando os negócios não dão certo, acham que é a morte. Depois acham que podem aparecer outras oportunidades. O problema do Mercosul é histórico e cultural. Depois virão a moeda, o comércio. É uma questão estratégica. Precisamos aumentar o conhecimento recíproco de muitas outras coisas, conhecer as culturas, a história dos dois países. Sabe a diferença entre a cultura portuguesa e a espanhola? O português, se tem que ganhar ou perder, sempre quer negociar. O espanhol, a cultura hispânica, sempre quer ganhar. Só que muitas vezes você perde.
 

ISTOÉ – A intenção do Brasil em liderar a América do Sul atrapalha o Mercosul?
Juan Pablo Lohlé

 O que temos que ter é uma liderança compartilhada. Cada um tem suas coisas boas e, assim, cada um lidera nesse campo.
 

ISTOÉ – Brasil e Argentina, nos últimos anos, têm mantido estreitas relações no campo militar. Isso é um exemplo prático da integração além da esfera comercial?
Juan Pablo Lohlé

O relacionamento entre as Forças Armadas do Brasil e da Argentina é uma das coisas mais interessantes que existem hoje. Não tem nenhuma relação com a colaboração na repressão dos governos militares, que era algo fabricado. Quem faz o controle das instalações nucleares da Argentina é o Brasil. E são técnicos argentinos que fiscalizam o programa nuclear brasileiro. Isso é uma prova de confiança muito interessante. Quais países no mundo fazem a mesma coisa? E ainda falam de rivalidade, que o Mercosul está morto.
 

ISTOÉ – Como é isso, de controle mútuo das instalações nucleares?
Juan Pablo Lohlé

Existe uma agência internacional, a Agência Argentina Brasileira de Contabilidade e Controle (Labac), que tem sua sede no Rio. Lá trabalham técnicos, cientistas brasileiros e argentinos, que fazem o controle das instalações nucleares. Esse modelo está atraindo o interesse dos organismos internacionais para ser testado em outras partes do mundo, como a Índia e o Paquistão, por exemplo. Todos querem conhecer o processo, como Brasil e Argentina chegaram a este grau de entendimento e confiança. Por isso, quando me falam da briga dos têxteis, me lembro que, quando estava na universidade, a maior parte do Exército do Brasil estava na fronteira com a Argentina. E a Argentina não fazia rodovias do Norte ao Sul porque senão vinham os brasileiros. Esse absurdo acabou.

ISTOÉ – O Mercosul deve falar em forças comuns de defesa?
Juan Pablo Lohlé

Sim, acho que se deve falar disso. Temos que reduzir despesas, temos que ter políticas coordenadas de controle de fronteiras, do
espaço aéreo, de segurança comum, de controle oceânico. Muitas
coisas que podem ser feitas juntas. Aliás, já estamos testando consulados conjuntos, para reduzir despesas. E está funcionando
bem. O aspecto psicológico é muito importante. Existem as bandeiras
dos dois países e a idéia é que brasileiros e argentinos sejam bem atendidos, sentindo-se em casa.
 

ISTOÉ – Durante os dez anos do menemismo, o olhar da Argentina não era para o Mercosul, era mais voltado aos Estados Unidos.
Juan Pablo Lohlé

Lohlé – Isso depende, eu fui embaixador e defendia posição diferente. A mídia pública na Argentina é prioritariamente tradicionalista. Mas a aior parte não pensa assim. O Menem pode ser assim, mas muita gente pensa diferente. A metade da academia diz uma coisa, a outra diz outra. Como o Brasil é muito grande, tem que equilibrar com outro país na América do Sul. Os brasileiros têm que compreender que, por serem os maiores, têm que fazer um acordo mais amplo, não exercer somente o poder. O Brasil tem que mudar de atitude, integrar, não pode ter o mesmo comportamento que os Estados Unidos têm em relação à Alca. Integrar não é somar. Alguns têm que ter benefícios e outros, fazer concessões.

ISTOÉ – O ordenamento jurídico dos países membros do Mercosul precisa ser mudado?
Juan Pablo Lohlé

Sim. Os advogados falam em pirâmide jurídica, com a
Constituição em cima e as demais leis embaixo. Para que o processo
de integração tenha simetria jurídica, o tratado de integração tem que estar ao lado da Constituição. A Argentina e o Paraguai já mudaram
suas Constituições, dando prioridade constitucional ao tratado do Mercosul. Se uma lei ordinária diz o contrário do tratado, ela não é válida. Os juízes, no caso de conflito, de reclamações comerciais,
têm que aplicar o tratado e não uma legislação interna para resolver
as pendências. Na Argentina já é assim. Aqui, ainda não. Juristas europeus afirmam que o Mercosul precisa adotar a simetria jurídica
para evitar problemas no futuro. Integração não é instrumento de
poder, repito, é de integração total.
 

ISTOÉ – Como está hoje o apoio à integração na Argentina?
Juan Pablo Lohlé

Existem setores, minoritários, que ainda olham de lado para o Mercosul. Mas, se fizerem uma votação, 80% da população já apóia a integração. Temos muito trabalho a fazer: acordos setoriais em áreas como têxteis, couro, automóveis, frango, suínos e açúcar. E acelerar a integração, envolvendo não apenas os governos, mas a iniciativa privada. É importante criar cadeias de valores entre Brasil e Argentina, estabelecer uma marca Mercosul. Outro aspecto importante é fazer missões internacionais conjuntas, como já foi feito com a África do Sul. As próximas serão na Alemanha e no México. Tenha certeza de que quando falam em disputas, é jogo dos lobistas de setores específicos dos dois países. A cultura da integração é a convivência diária com os problemas. Temos que ter em mente que só há briga com quem você tem mais relações. Nosso futuro é a integração.
 

ISTOÉ – O presidente Kirchner teve 22% dos votos no primeiro turno das eleições. Agora, poucos meses depois, ele exibe índices de popularidade extremamente altos. Como se explica isso?
Juan Pablo Lohlé

Acho que Kirchner, como pessoa, tem convicções muito profundas do que precisa fazer na Argentina. E agora tem o respaldo popular. Ele é uma personalidade muito especial, um homem que vem
do Sul do país, de uma província pequena, onde faz muito frio e venta forte, um lugar inóspito. Uma província com pouca gente, mas rica,
com petróleo, minerais, criação de carneiros e o índice de desemprego mais baixo da Argentina. Não tem os problemas do resto do país. Ele é
de uma geração política de luta. O surgimento de Kirchner mudou o conceito dos argentinos de que os políticos seriam a pior raça. Ele voltou a dar ao povo credibilidade na política, esperança. Ele é um político de uma única palavra. É um homem do interior, que trabalha muito. Veja como mudou a abordagem dos direitos humanos, da corrupção. Você tinha assassinos caminhando pela rua. Isso tinha que mudar. E mudou. Menem também era da província, mas a diferença entre ele e Kirchner
é abissal. Kirchner é descendente de croatas, suíços e alemães, um homem de fortes valores morais.