O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, nunca engoliu o desprezo dos
EUA pela ONU em sua decisão unilateral de ir à guerra contra o Iraque. Mas sua irritação aumentou sensivelmente e ele passou a falar sem
papas na língua sobre o clima de insegurança no Iraque depois do 19
de agosto, quando perdeu um de seus grandes amigos num terrível atentado, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, chefe da missão da ONU
no Iraque e tido por muitos como o preferido de Annan para sucedê-lo. Na quinta-feira 25, dois dias depois de o secretário-geral ter proferido
um duro discurso na Assembléia Geral da ONU e de mais dois ataques terroristas contra a sede da organização em Bagdá, foi anunciada a redução do quadro de funcionários das Nações Unidas para apenas cinco – eram 600 antes do primeiro atentado. A redução do pessoal da ONU
em solo iraquiano acontece em um momento delicado, em que a Casa Branca tenta provar ao mundo que a situação está sob controle. “Precisamos adotar medidas mais adequadas para garantir a segurança
de nosso pessoal”, disse Annan.

No tabuleiro da Assembléia Geral, os principais protagonistas mantiveram suas posições contra o unilateralismo americano e favoráveis à devolução rápida à soberania iraquiana. A Alemanha foi o único peixe grande a abrandar seu discurso com o presidente George W. Bush. “Ainda há análises diferentes, mas os dois lados querem transferir o poder aos iraquianos. O período em que isso ocorrerá deve ser objeto de acordo”, afirmou o chanceler (chefe de governo) Gehard Schröder, depois
de um encontro particular com o presidente americano. Apesar disso,
a Alemanha se alinha com a Rússia, a China e a França, fazendo
coro às palavras de Annan, para quem o unilateralismo americano representa um grave perigo à paz mundial. “Minha preocupação é que, uma vez adotado, esse tipo de atitude possa estabelecer precedentes
e resultar na proliferação do uso unilateral e ilegal da força”, afirmou
o secretário-geral da ONU.

Annan salientou ainda que há uma década discute-se a reforma na ONU com a possível entrada no Conselho de Segurança (CS) de Alemanha e Japão, além de países emergentes da Ásia, América Latina e África (leia-se Índia, Brasil e África do Sul). A ampliação do CS significaria que as cinco poderosas cadeiras (China, Rússia, EUA, Inglaterra e França) dividiriam espaço. O Reino Unido e a França aceitam, conquanto que não percam o direito ao veto. Mas como seriam essas reformas, ninguém sabe. A reestruturação do CS foi reforçada na fala do presidente francês, Jacques Chirac. “É essencial para a legitimidade do Conselho que sua composição reflita o mundo. Impõe-se uma ampliação e com membros permanentes. A França pensa naturalmente na Alemanha, no Japão, mas também em alguns países da Ásia, África e América Latina.”

Interesses – Jacques Chirac também quer quer os iraquianos assumam sua soberania nos próximos meses. Mas os americanos não abrem mão do comando e estabelecem o prazo de um ano, no mínimo, para a devolução do poder aos iraquianos. Apesar dessa divergência, Bush teve que abrandar seu discurso porque é obrigado a passar o chapéu, uma vez que em casa já pediu ao Congresso US$ 87 bilhões. Mas a comunidade internacional não aceita arcar com os prejuízos da reconstrução sem levar o melhor do bolo iraquiano. No mapa econômico dos EUA são grandes corporações americanas que vão fazer a “reconstrução”. O jornal inglês The Guardian levanta as perigosas relações entre a Comissão Internacional do Direito Iraquiano (Cidi), criada pela coalizão anglo-americana, e interesses econômicos americanos. Salem Chalabi, líder da Cidi, é sobrinho de Ahmed Chalabi, nada menos que o líder do Congresso Nacional Iraquiano, o organismo de governo montado pelos americanos. O tio Chalabi recebe apoio do Congresso americano e do Pentágono e ironicamente tem ligações com Douglas Feith, terceiro na hierarquia do Pentágono e amigo do primeiro-ministro israelense Ariel Sharon. Segundo o diário inglês, uma das funções de Salem Chalabi é fazer as conexões entre “o governo americano e os projetos da reconstrução do Iraque”.

Enquanto não ficar claro que haverá uma maior participação internacional na operação “Liberdade para o Iraque”, é bem provável que o chapéu de Bush continue vazio em ano pré-eleitoral. Não é à toa que o número de países dispostos a enviar tropas ao Iraque diminuiu. Índia e Paquistão, candidatos iniciais, já não estão certos se mandarão seus soldados e a Turquia deverá decidir apenas no final de outubro. A presença de forças internacionais, como já dizia Chirac há um ano, é que poderá estabilizar a região e então seria o momento de reconstruir o país, que está em cacos. Até porque, como disse o secretário do Tesouro americano, John Snow, “o capital é covarde. Não vai para os lugares onde se sente inseguro. As empresas não enviarão seus funcionários onde eles se sintam desprotegidos.” As multinacionais, de olho no ouro negro do subsolo iraquiano, permanecem na fila de espera.

Ainda deverá demorar algum tempo para que o Iraque volte a atingir a produção de petróleo que tinha antes da guerra do Golfo, ou seja, 3,14 milhões de barris por dia. Hoje, o país produz apenas 1,5 milhão de barris diários, o que não é pouco levando-se em consideração os ataques contra os oleodutos e a falta de infra-estrutura. Mas a produção está muito aquém do que planejavam os falcões americanos. Os neoconservadores sonhavam derrubar a Opep, o Irã e a Arábia Saudita numa jogada só, retomando a produção em Kirkouk e Basra, além de novas jazidas no Sudoeste do Iraque. Agora, eles estão bufando e reclamam da possibilidade de Bush aceitar a ONU no controle das rédeas iraquianas. Além disso, quando retomarem as rédeas do país, os iraquianos poderão resolver cumprir os antigos contratos de exploração e produção de petróleo que foram assinados com empresas francesas, chinesas, russas e de outros países asiáticos.