01/10/2003 - 10:00
A fome e a raiva, como diz a música de João Bosco e Aldir Blanc, “é coisa dos homens”. Mas é também “coisa dos homens” o diálogo, a diplomacia e a autoridade, não só a do cargo que envergam, mas da realidade em que nasceram. Foi com este espírito que o presidente Lula abriu a 58ª Assembléia Geral da ONU, dando mais um passo para tornar-se um líder mundial em prol de uma nova ordem econômico-social mais justa e ainda mostrar que a política externa sob seu comando se desenvolve – conforme disse o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, para os formandos do Instituto Rio Branco, há uma semana – “como se o relógio da nossa história se tivesse adiantado”.
Lula assumiu a defesa intransigente da diminuição do fosso entre países ricos e pobres, criticou o protecionismo. Não recuou diante da predominância dos mais poderosos ao criticar os EUA e a política de Bush. Defendeu uma nova ONU, que não seja jogada, como se viu durante as discussões sobre a guerra do Iraque, ao descrédito e ao enfraquecimento da sua autoridade política. Ele fez coro ao discurso do secretário-geral da entidade, Kofi Annan, o mais duro já proferido por um alto funcionário da instituição contra a política externa americana. “A ONU não foi concebida para remover os escombros dos conflitos que ela não pôde evitar, por mais valioso que seja seu trabalho humanitário”, disparou Lula. No entanto, ao falar durante 23 minutos para chefes de Estado, de governo e representantes de 191 países, ressaltou que sua experiência de vida e trajetória política ensinaram-lhe a acreditar “na força do diálogo” e, para alfinetar Bush, citou Gandhi, que pregava a não-violência na luta contra o domínio britânico. “A violência quando parece produzir o bem, é um bem temporário, enquanto o mal que faz é permanente.”
A determinação em mobilizar as grandes potências para o combate à fome e a miséria no planeta fez brilhar ainda mais a estrela do presidente brasileiro. Lula foi o mais requisitado no almoço de terça-feira 23. Esteve com os presidentes da França, Jacques Chirac, dos EUA, Bush, e com o chanceler alemão, Gerhard Schröder. No dia seguinte, aparou arestas com o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, encontrou-se com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e com o presidente da África do Sul, Thabo Mbeki, e com o premiê da Índia, Atal Bihari Vajpayee. Na conversa com Bush, a quem convidou para conhecer o Brasil, disse que o País quer ser tratado de igual para igual. “Estamos prontos para conversar com os EUA (sobre divergências comerciais existentes), mas não queremos ser tratados como cidadãos de segunda classe.”
Na quinta-feira 25, antes de viajar para o México, onde se encontrou com o presidente Vicente Fox, esteve com Kofi Annan. Cotado para receber o Nobel da Paz, o brasileiro recebeu mais um “título”. Ao doar o cheque de US$ 55 mil que recebeu pelo prêmio Príncipe das Astúrias para o fundo global contra a fome, ouviu do secretário-geral “que está surgindo uma liderança mundial que nunca antes se viu para combater a fome no mundo”. Lula propôs ainda a criação de um conselho de líderes, nos moldes do Conselho de Segurança Alimentar do Fome Zero, para dirigir o fundo. Lula entregou ainda uma lista de 14 empresas multinacionais que estão no Brasil que se comprometeram, através de suas sedes, a contribuir com US$ 1,6 milhão para ativar o fundo.
Segundo analistas de política internacional, o discurso de Lula, que também reafirmou a necessidade de um assento permanente para o
Brasil e de reforma no Conselho de Segurança (CS) da ONU, somados
aos mais recentes posicionamentos do Itamaraty em reuniões como a
da OMC, em Cancún (México), que bateu de frente com os interesses comerciais americanos, revelou a estratégia do Brasil: tornar-se uma forte liderança não só econômica, mas também política a partir da América do Sul. A novidade nas relações exteriores sob a batuta de
s Lula, ressalta Reginaldo Nasser, coordenador do curso de relações internacionais da PUC-SP, se encontra em dois caminhos: o olhar comercial para o Oriente e África e a tentativa de o País se estabelecer como grande pacificador, junto com a ONU, de conflitos internacionais. Ele cita Colômbia, Venezuela, como já foi demonstrado na crise do governo Hugo Chávez no início deste ano, e Cuba.
Nasser ressalta que o Itamaraty está passando por transformações e cita o discurso de Amorin na formatura de uma nova turma do Instituto Rio Branco. Ele ressaltou a necessidade de os novos diplomatas se aprofundarem no conhecimento da língua e da cultura de países como China, Rússia, Índia, do Oriente Médio e da África. “Guardadas as devidas proporções, seria um resgate da política externa do governo Geisel. Lula, com o fim do apartheid, abre o campo de negociação com a África do Sul e expande o leque incluindo a Índia. “Buscamos valorizar a nossa presença nesses lugares. Partimos da América do Sul, mas não estamos restritos a ela e fazemos isso com um papel mais positivo, conectando os aspectos financeiros, comerciais e políticos.”
Ele chama a atenção para o grande vulto que a política externa está tomando no governo Lula. Quanto à possibilidade de sofrer retaliações
por isso, ressaltou que dependerá de “como vamos nos conduzir”. Sobre
a decisão de Lula de ir a Cuba, defendeu que as autoridades brasileiras não podem aceitar imposições dos EUA de como devemos nos relacionar com o país de Fidel. No entanto, adverte: “Precisamos assumir a posição de mediador, como foi feito com a Venezuela, e negociar para que Cuba se integre de fato e cessem os fuzilamentos. É preciso apostar nesta posição porque isso trará um ganho imenso em nível de força internacional. Agora, o que não podemos é mostrar simpatia
por esta ou aquela parte.”
Lula parece ter ouvido o conselho do especialista. No México, adiantou que sua ida a Cuba não se trata de uma visita de amigo, mas sim de chefe de Estado, mas que não dará palpites sobre a política cubana até porque sua posição política em relação ao regime de Havana já foi “dita, falada, escrita e conversada”. Comentou que já deixou claras “as discordâncias demonstradas ao longo da história”. “É só ver a diferença entre o meu partido e o Partido Comunista de Cuba, é só ver a diferença entre as estruturas sindicais.”
Para o ex-assessor da missão brasileira junto a ONU em Genebra, professor Ricardo Seitenfus, hoje coordenador do mestrado em Integração Latino-Americana da Universidade Federal de Santa Maria (RS), o Brasil está muito bem acompanhado nas críticas que vem fazendo aos EUA. Segundo ele, o ponto alto do discurso de Lula na ONU foi a chamada aos países ricos para a necessidade de uma vontade política de injetar recursos financeiros para o combate à fome. “Quando Lula fala sobre este tema a platéia está mais atenta. Ele teve uma trajetória sui generis para se tornar um chefe de Estado. Quando fala das injustiças, isso adquire uma outra dimensão. Ele fala em nome dos excluídos, dos marginais da história da ONU, das vítimas do sistema internacional”, afirmou.
Seitenfus discorda daqueles que defendem que uma cadeira no CS dará ao Brasil mais condições de melhorar o seu desempenho na negociação comercial, econômica. “Os problemas dos países do Cone Sul se dão no sistema econômico internacional.” Segundo o professor, o CS é um terreno minado porque no modelo em que funciona não tem eficácia. “É preciso que os países tenham vontade de cumprir as resoluções. Quantas decisões contra Israel, por exemplo, foram tomadas e não foram cumpridas? De 1945 até hoje, mais de 200 guerras foram registradas onde o CS não pôde intervir e, se alguma decisão foi tomada, não foi eficaz.” Ele criticou a parte do discurso que vincula o terrorismo à miséria. “Esta questão é bem mais complexa. As Farc e o ETA não podem ser comparados a al-Qaeda ou à al-Fatah. Ali estão em jogo questões religiosas, territoriais, de movimento de libertação nacional. Não podemos seguir o caminho dos EUA e pensar que tudo é igual.” A boa luta, segundo ele, é diminuir o abismo entre países ricos e pobres economicamente, tecnologicamente, financeiramente e socialmente. E, pelo que se vê, é a estrada trilhada por Lula e sua política externa.