Dois anos depois de ter sido capturado pelas tropas americanas num buraco de Tikrit (sua região de origem), um Saddam Hussein desafiante e nem um pouco arrependido sentou-se, na quarta-feira 19, no banco dos réus no Tribunal Especial Iraquiano, em Bagdá, para ser julgado, junto com sete ex-colaboradores, pelo massacre de 143 xiitas no vilarejo de Dujail (norte do Iraque) em 1982, em represália a um atentado que ele sofrera no ano anterior. Saddam não só se recusou a confirmar sua identidade como questionou a legitimidade da corte para julgá-lo. “Em primeiro lugar, quem é você? O que está fazendo aqui?”, perguntou ele ao juiz Rizgar Mohammed Amin “Você é iraquiano e sabe muito bem quem eu sou. Em respeito ao grande povo iraquiano, que me escolheu, não vou responder a essa corte. Me reservo o direito constitucional, como presidente do Iraque, de não prosseguir… Eu não reconheço nem a entidade que os autoriza nem a invasão, porque elas são ilegítimas”, pontificou o ex-ditador, dando “lições” de respeito à lei, o que seu regime sempre negou aos adversários.

Mas o circo durou pouco. Três horas depois, o juiz Amin suspendeu o julgamento
até 28 de novembro, alegando que dezenas de testemunhas do massacre de
Dujail – algumas com parentesco com as vítimas – não compareceram ao tribunal porque ainda se sentiam intimidadas. Sinal das profundas cicatrizes deixadas pela tirania de Saddam. De qualquer maneira, o julgamento, antes mesmo de ter sido iniciado, foi alvo de duras críticas de juristas e de organizações de defesa dos direitos humanos. A Human Rights Watch, por exemplo, criticou a composição do tribunal, formado por opositores de Saddam, o que lhe retiraria qualquer presunção de imparcialidade. Outras entidades criticaram o fato de o tribunal ter sido estabelecido pelo ex-administrador dos EUA no Iraque, Paul Bremer, em dezembro de 2003. Muitas entidades dizem que o julgamento deveria ser feito por uma corte internacional, nos moldes do tribunal da ONU que está processando o ex-dirigente da Sérvia, Slobodan Milosevic.

Se for condenado pelo massacre de Dujail, Saddam vai ser pendurado num poste apenas 30 dias depois de proferida a sentença. Caso isso não ocorra, ele deverá
ser julgado pelas outras atrocidades cometidas ao longo de sua tirania, num processo que pode levar anos, tal a magnitude das acusações. Nos EUA, o julgamento está sendo visto pela administração George W. Bush, às voltas com impopularidade crescente, como uma prova de que a invasão, no fim das contas, livrou o Iraque de um regime facínora. Segundo a revista alemã Der Spiegel, isso pode ofuscar “a justificativa que os EUA e aliados usaram originalmente para a invasão – a existência de armas de destruição em massa, que se revelou mentirosa –, os erros do planejamento pós-guerra e o abismo no qual o Iraque mergulhou”. Mas existe o temor de que, se Saddam não for condenado agora, transforme os outros julgamentos que estão por vir em peças de acusação contra os países ocidentais, que no passado lhe venderam armas e fecharam os olhos para suas atrocidades, porque ele era visto como um elemento fundamental para a contenção do Irã dos aiatolás.

Como gado – Em seu magistral Republic of fear (República do medo), a melhor radiografia do regime de Saddam, o dissidente iraquiano Kanan Makiya conta
que em agosto de 1994, o Conselho do Comando Revolucionário – órgão dirigente presidido por Saddam Hussein – promulgou uma lei, de número 109, que previa
que “os criminosos que reincidissem no crime pelo qual sua mão fora amputada teriam a testa tangida com uma marca em forma de X”. “Os crimes ‘pelos quais
suas mãos foram amputadas’ eram o roubo e a deserção. A prática de marcar a testa a ferro quente foi introduzida por Saddam depois da Guerra do Golfo como
uma nova forma de punição para esses crimes”, diz Makiya. O autor explica que
esse castigo, baseado na interpretação rígida da shari’a (lei islâmica) e nos costumes tribais de Tikrit, visava humilhar os acusados e privá-los do sentimento
de honra, caro aos iraquianos.

Esse episódio é um microcosmo que revela a natureza perversa do regime do Partido Baath no Iraque, no poder desde 1968 e com Saddam à sua testa desde 1979. Foram décadas de terror macabro e sistemático, cujo objetivo era manietar os cidadãos e transformá-los em informantes do Estado. Certo, a invasão americana do Iraque foi um ato unilateral da potência hegemônica, mas isso não deve obscurecer o fato de que o mundo ficou um pouco melhor depois que Saddam foi deposto. Assim como ficou melhor depois que psicopatas assassinos como Jorge Videla, Augusto Pinochet e Slobodan Milosevic deixaram de ser senhores da vida e da morte de milhares de pessoas e passaram à condição de réus. Mesmo que com uma mãozinha estrangeira.

Mais crimes – Atrocidades na guerra Irã-Iraque (1980-88); limpeza étnica contra os curdos, no final dos anos 1980, inclusive com armas químicas, que fez mais de 180 mil mortos; invasão do Kuait em 1990; massacre de xiitas em 1991