01/10/2003 - 10:00
Por mais de 45 anos, Sidarta Gautama peregrinou pelo Norte da Índia para levar seus ensinamentos a milhares de pessoas. Mostrava que todo sofrimento podia ser combatido com meditação, moralidade, sabedoria e compaixão. Conhecido como Buda, “aquele que alcançou a iluminação”, Sidarta atraiu seguidores e fundou a mais significativa religião oriental. No primeiro século após sua morte, por volta de 200 a 400 a.C., suas mensagens e experiências serviram de base para a redação dos sutras. Compilados por seus discípulos, correram o mundo e ganharam milhares de adeptos, inclusive abaixo da linha do Equador. No Brasil, o budismo encontrou o “caminho do meio”. Além de não excluir seguidores de outras religiões e não ser fundamentalista, ele sai do monastério e começa a se “abrasileirar”, sem, no entanto, abrir mão dos seus preceitos.
Majoritário na China, no Japão, no Tibete e no Sri Lanka, o budismo se alastra no país do ecumenismo, quase 2.400 anos após sua formação. O censo realizado em 2000 pelo IBGE aponta que o budismo é a religião de 246 mil brasileiros. Desses, apenas 81 mil se declararam de cor amarela, o que reflete seu poder de conversão. Se o número absoluto cresceu 4% na última década, os budistas que não se identificam como orientais saltaram cerca de 13% no mesmo período. Uma marca invejável se comparada ao aumento de 2% de católicos. Entre os que se dizem sem religião, registrou-se um aumento de 77% , o que também pode indicar um aumento do budismo. “Metade das pessoas que se consideram sem religião se aproxima muito da filosofia budista”, acredita Frank Usarski, professor de pós-graduação em ciências da religião da PUC de São Paulo e organizador do livro O budismo no Brasil (Editora Loroase).
Solidariedade – O resultado desse crescimento, que faz ultrapassar a casa do meio milhão de simpatizantes e adeptos, é a inevitável ocidentalização da doutrina e uma evidente preocupação em transpor as paredes dos templos e assumir práticas cada vez mais engajadas de inserção na comunidade. Historicamente identificado como religião individual e contemplativa – já que assume como princípio a idéia de que cada um é responsável por sua evolução –, o budismo brasileiro ganha força ao lançar projetos grandiosos que atendem às expectativas solidárias. No Espírito Santo, há ações em defesa do meio ambiente e cursos de meditação para policiais militares. Em São Paulo, a primeira pré-escola budista do Brasil completa dois anos. Em Brasília, Angra dos Reis (RJ) e Atibaia (SP), a moda são os spas budistas.
A principal novidade, no entanto, é a inauguração, no dia 5 de outubro, do maior templo budista da América Latina. Em uma chácara na cidade
de Cotia, na Grande São Paulo, foram investidos mais de R$ 6 milhões
na construção do Templo Zu Lai, monastério da tradição Ch’an (zen chinês) com dez mil metros quadrados construídos em estilo palaciano.
O valor da obra seria o dobro se o projeto não contasse com o apoio irrestrito da Associação Internacional Luz de Buda (Blia) – entidade formada por discípulos da ordem budista Fo Guang Shan, à qual
pertence o templo – e de setores da colônia chinesa na capital paulista, principalmente do empresário Chang Shen Kai, doador do terreno. A
partir de 2004, o templo vai sediar ainda a primeira universidade budista da América Latina. “Vamos formar monges e professores de dharma (doutrina de Buda). No futuro, vamos oferecer cursos de filosofia, educação, psicologia e outros. Nossa ordem mantém três universidades
e 16 faculdades em todo o mundo”, adianta monja Sinceridade, superiora no monastério. Entre outras motivações, a inauguração de uma universidade gratuita e acessível à população de baixa renda responde
ao propósito missionário da religiosa. “Desenvolvemos um projeto educativo com crianças e adolescentes carentes e precisamos dar continuidade a esse trabalho”, resume ela.
Quem comparecer à cerimônia de inauguração, dia 5 de outubro, vai conhecer parte do trabalho com crianças a que monja Sinceridade se refere. Os 128 alunos do projeto Filhos de Buda, moradores de comunidades de baixa renda da região, vão receber o venerável mestre Hsing Yün – líder budista chinês – com um espetáculo de ginástica rítmica. Reunidos no pátio do novo templo, os jovens ensaiam três vezes por semana e participam de aulas de ética, moral e comportamento. “Aqui a gente aprende conversando com o professor, e não anotando o conteúdo da aula e fazendo lição de casa”, diz o estudante do ensino médio Thiago Leite dos Santos, 16 anos. “Vou levar essa bagagem na hora de tentar meu ingresso em uma faculdade de direito. É meu sonho”, afirma ele.
Desapego – Se quisesse virar monge ou professor de budismo, Thiago teria de passar pelo menos um ano recluso no monastério de Cotia. É essa a condição colocada por monja Sinceridade aos futuros alunos.
Seu discípulo há quatro anos, o instrutor de ginástica Eduardo Martins Machado, 34 anos, já confirmou sua matrícula. Fã da banda Kiss
e guitarrista de um grupo de rock na adolescência, Eduardo só não decidiu ainda qual curso vai fazer. “Gostaria de virar monge. Mas tenho vontade de ter filhos. Terei de optar entre eles e a vida monástica”, conta. Até lá, Eduardo se despede do topete azul e, aos poucos,
aprende a se desapegar de objetos “supérfluos” como carro, casa e relógio. No sábado 13, o discípulo transformou a academia Reebok de
São Paulo, onde trabalha, em um local de práticas budistas. Criou o
“Dia Zen” e, das nove da manhã às três da tarde, envolveu 30 alunos com aulas de tai-chi-chuan, power yoga e meditação. “Não queremos converter ninguém, mas mostrar o que sabemos para que cada um aproveite o que achar interessante”, ensina.
O caráter não proselitista do budismo é, talvez, o maior responsável por sua propagação no Ocidente. O especialista Frank Usarski considera a falta de compromisso com uma única doutrina a principal característica
do budismo brasileiro. “Muitas vezes, o praticante frequenta um templo durante um ou dois anos, abandona por determinado período e volta a visitá-lo sem constrangimento. Milhares de brasileiros praticam meditação e adoram os livros do Dalai Lama, mas continuam indo a missas ou cultos”, explica. Isso significa, na realidade brasileira, que o compromisso de manter atitude correta e mente serena soma esforços com a fé em Deus e gera frutos generosos de saúde e comportamento. No início do mês, alguns notáveis cientistas americanos reuniram-se em Cambridge com Dalai Lama e confirmaram, mais uma vez, os benefícios da meditação. “Sou um empirista em todos os aspectos da minha vida. Costumo duvidar dos dogmas e testá-los e posso dizer que meu stress e minha irritabilidade foram reduzidos com a meditação”, discursou o biólogo molecular Michael Slater na ocasião.
Tais benefícios à saúde também não podiam ficar restritos aos templos. Com isso em mente, a monja coreana Soon Hee Han e o monge brasileiro Marcos Beltrão Frederico acabam de inaugurar em Atibaia (SP) a terceira unidade do spa Shishindo, de tradição zen-budista (as outras duas são em Brasília e em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro). Os empreendimentos, primeiros a adotar práticas budistas segundo a Associação Brasileira de Spas, oferecem mais de 40 terapias que unem a thalassoterapia francesa (tratamento com água marinha) à medicina oriental. “Partimos do princípio de que não existe divisão entre corpo e mente. Terapias corporais podem alterar o estado mental das pessoas”, explica Soon Hee. Ela utiliza o método criado pelo monge japonês Tokuda Igarashi, que veio ao Brasil em 1968 como missionário. Curiosamente, a monja quer adaptar para o Brasil as técnicas fitoterápicas propostas pela tradição chinesa. No spa de Atibaia, cidade conhecida como a capital do morango, são oferecidos banhos, máscara facial e terapia capilar à base da fruta.
Tradução – Estima-se a existência de 160 grupos budistas no Brasil. Em alguns deles, a preocupação em adaptar os ensinamentos de Buda para a cultura ocidental é tamanha que há quem estude a tradução de orações e mantras para o português, uma vez que são compostos em sânscrito ou em páli, dialetos antigos da região da Índia. O lama brasileiro Segyu Rinpoche, que vive entre o Nepal e a Califórnia, é totalmente favorável à adaptação das práticas para o Ocidente. “Todas as pessoas são Budas em potencial. Mas nós, neste lado do mundo, temos a mente muito imediatista”, diz ele. Traduzir o que for possível para o português ajudará, segundo o lama, a treinar a mente e evitar incompreensões, como, por exemplo, sobre o significado do carma. Para os budistas, não se trata de destino, mas de um conjunto
de ações, positivas ou negativas, que favorecem ou dificultam a iluminação, a chegada ao nirvana. Nessa condição, supostamente atingida por Sidarta Gautama, quebra-se o ciclo de nascimento
e morte e atinge-se o último patamar da evolução. A psicóloga
gaúcha Laura Pedrotti, pesquisadora do Instituto Superior de Estudo
das Religiões (Iser), acredita que essa tomada de consciência de que cada pessoa é responsável por seu próprio futuro contribui para o crescimento do budismo em um mundo marcado pelo cientificismo. “É a maneira mais verdadeira de permitir liberdade ao indivíduo e cobrar dele coerência e responsabilidade”, elogia.
Entendido como desafio individual pelos seguidores da tradição Theravada, também chamada de Hinayana, esse processo assume uma responsabilidade social nas escolas da tradição Mahayana. Os discípulos de monges das escolas Zen, Ch’an e Terra Pura, por exemplo, reverenciam a figura do Bodhisattva, ser que, mesmo após alcançar a iluminação, permanece na esfera terrestre para ajudar seus pares a evoluir. É o caso da Associação Brasil Soka Gakkai Internacional (BSGI), o maior grupo budista do País, com cerca de 120 mil associados. De origem japonesa, a Soka Gakkai (“Sociedade para a Criação de Valores”) concebe a educação como ponto de partida para a evolução espiritual.
Escola – Entre outras ações, a entidade desenvolve cursos gratuitos de alfabetização e promete ensinar a ler e escrever em apenas 40 horas. Há dois anos, inaugurou em São Paulo a primeira pré-escola budista do Brasil, hoje estendida às duas primeiras séries do ensino fundamental. “Temos um compromisso com a paz, a cultura e a educação. Chamamos isso de budismo humanista”, ensina a educadora Dirce Ivamoto, diretora da Escola Soka do Brasil. Dirce foi católica e umbandista antes de conhecer o budismo, em 1965. Hoje, está convencida dos benefícios da filosofia oriental para a educação. “O budismo ensina que não devemos causar sofrimento aos outros. Na escola, colocamos isso em prática ao evitar castigos, comparações ou competições”, diz ela.
Procurada por famílias de quaisquer religiões, a escola concilia aulas de inglês e japonês com experiências tão diversas como tocar um instrumento, navegar na internet e cuidar de uma horta. E não há uma única imagem de Buda em todo o prédio. “Nosso princípio de ação é budista. Transmitimos isso em nossa educação sem falar a palavra Buda”, comenta Dirce Ivamoto. A estratégia é a mesma no Mosteiro Zen Morro da Vargem, em Ibiraçu (distrito de Vitória), no Espírito Santo, onde policiais militares participam constantemente de retiros e recebem aulas de educação ambiental e solidariedade. Ninguém é induzido a se converter ao budismo, mas todos os oficiais recebem com entusiasmo os princípios humanistas e pacificadores do budismo. “A meditação funciona como um fio terra. Tira o stress do corpo e da mente. É um antídoto para a tensão da nossa atividade”, conta o tenente Leonardo Nunes Barreto, 50 anos, que já fez dois cursos no templo e propõe inseri-lo na formação de oficiais. “A parceria com a PM existe desde 1998 e já beneficiou 500 militares. Além dela, realizamos um trabalho de preservação ambiental que recebe a visita de estudantes e atividades educativas com agricultores”, enumera o abade Daiju Bitti, superior no mosteiro. “Temos uma forte integração com a comunidade. Não convertemos ninguém”, comenta.
Única religião que nunca empreendeu uma guerra, o budismo atrai pacifistas em todo o planeta. No dia 7 de setembro, o repúdio à violência foi um dos motivos para a presença de mais de 500 pessoas à Terceira Cerimônia do Fogo Sagrado em prol da paz e da purificação da Grande São Paulo, promovida pela Associação Budista Agon Shu, pequena no Brasil, mas que reúne 600 mil adeptos no Japão. O Fogo Sagrado é uma técnica de purificação milenar, que, segundo seus mestres, permaneceu no anonimato durante quase dois mil anos. Uma fogueira é acesa em frente a um grande altar e os presentes, budistas ou não, se purificam ao lançar pedaços de madeira (gomagui) com pedidos gravados, queimando assim seus carmas pessoais, ancestrais e espirituais. A força do fogo é capaz de queimar os pedaços de madeira, mas, para Buda, viver os seus ensinamentos no dia-a-dia é que definirá o seu samsara (ciclo que rege a inquieta existência humana). Na voz do mestre: “Não importa o que um homem faça, se seus atos servem à virtude ou ao vício, tudo é importante. Toda ação acarreta frutos.”
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