O presidente George W. Bush não desgrudou do telefone às vésperas da 5ª Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), que se encerra neste domingo14, em Cancún, o balneário mexicano que invade o mar do Caribe, um dos vizinhos mais próximos de Cuba. Bush ligou para o presidente Lula, ligou também para lideranças da Índia, do Paquistão e da África do Sul. Como se fosse um estadista bem-intencionado, o presidente americano ligou para pedir um consenso – obviamente em torno das políticas comerciais americanas, com as quais os quatro países discordam abertamente. Lula foi enfático: sem avanços significativos na negociação agrícola não seria possível avançar nas demais arenas.

Sob uma temperatura que variou de 25º a 34º, o encontro que acontece a cada dois anos – o último foi em Doha, capital do Qatar, país do Oriente Médio rico em petróleo entre o Golfo Pérsico e a Arábia Saudita – teve muita discussão, protestos naturalistas (como os silenciosos nudistas que escreveram com seus corpos “Não à OMC”) e ultra-radicais (como o harakiri do agricultor sul-coreano Lee Kyung-Hae, militante que morreu num hospital de Cancún quarta-feira 10), alguns acordos e uma grande conquista liderada pelo Brasil: a criação do Grupo dos 21 que, na verdade, já reúne mais de 21, 22 países tidos como “periféricos” que representam 65% da população rural e cerca da metade da população mundial, reunindo, além do Brasil, África do Sul (que tem peso econômico relevante em seu continente e é parte de uma aliança que vem sendo montada com o Brasil e a China), Argentina, Chile, China, Colômbia, México e Tailândia. Sozinhos, Estados Unidos e União Européia somam quase 40% do comércio mundial e é contra essas duas fortalezas que o G-21 defende maior abertura dos mercados agrícolas e redução mais veloz e ampla dos subsídios à agricultura.

Os Estados Unidos jogam dos dois lados. “O presidente (Bush) ressaltou que um resultado ambicioso e bem-sucedido em Cancún, especialmente na agricultura, beneficiará a todos os países”, disse o porta-voz da Casa Branca, Scott McClellan. O que ele não falou é que tem que ser bem-sucedido para eles. Ao mesmo tempo que divulgam essas teóricas intenções de acordo, os Estados Unidos costuram pesadas pressões contra o grupo recém-formado, ao qual aderiu também a Turquia. A organização não-governamental Action Aid foi a primeira a denunciar o aumento da pressão dos Estados Unidos para esvaziar o G-21. Segundo o coordenador da campanha internacional de comércio da organização, Adriano Campolina, os Estados Unidos estão pressionando a Costa Rica, Guatemala e El Salvador para abandonar o G-21, em troca de cotas comerciais. O objetivo é um só: esvaziar o grupo. No comando dessa máquina devastadora está o também devastador Robert Zoellick, representante de comércio americano. Pequeno currículo de Zoellick: 50 anos, braço direito do presidente Bush nessa área, ideólogo da Alca, grande defensor do livre comércio (à moda americana, é claro), servidor dos republicanos há mais de 20 anos.

Ameaças – A portas fechadas, Zoellick, que tem orgulho em se definir como o “czar estado-unidense da globalização”, conversou com representantes de alguns países do grupo das pequenas economias para demovê-los dessa “idéia tola” de se constituir em Grupo (para o qual também estariam sendo encaminhados os países africanos). As pressões, aparentemente, não surtiram efeito, mas persistiram ao longo da conferência. Mais ainda quando os países em desenvolvimento receberam o apoio de outro “G”, o G-9, constituído por Japão, Coréia do Sul, Taiwan, Israel, Bulgária, Islândia, Noruega, Liechtetenstein e Suíça, grandes importadores de produtos agrícolas. “As ameaças e tentativas de suborno praticadas pelo Estados Unidos demonstram antes de tudo seu temor frente ao novo equilíbrio de forças na Organização Mundial de Comércio, com o surgimento e fortalecimento do G-21”, disse Campolina.

Não dá para não protestar contra tamanha prepotência. Mesmo que seja à distância, do outro lado do Atlântico, como fez um grupo de ativistas liderados pelo militante francês Jose Bové, preso há alguns meses por destruir plantações de produtos transgênicos e proibido pela Justiça francesa de deixar o país para participar das manifestações no México. Por causa da semelhança entre os nomes, eles escolheram o vilarejo Cancon, 1,3 mil habitantes, no Sudoeste da França, para debater e hastear suas bandeiras contra o blablablá globalizante. Cancon – ao contrário de Cancún, sobrevive ignorando todas essas siglas recorrentes no mundo a seu redor, coisas como FMI, OMC, Banco Mundial… Produz nozes, todas as casas têm balcões floridos e ainda proporciona a seus habitantes o prazer do piquenique no exuberante lago Général Fouchet. Enquanto isso, em Cancún, outros manifestantes discursavam contra a globalização ao lado de uma pintura de Emiliano Zapata, líder camponês da revolução mexicana de 1910-1917, e de uma enorme foto do revolucionário latino-americano Ernesto Che Guevara. “Nós, os pobres do mundo, não ganhamos nada com OMC, FMI, Banco Mundial. Eles trabalham pelo interesse de grandes empresas”, disse Mangaliso Kubheka, ativista do Movimento dos Povos Sem Terra da África do Sul.

Protestos – Nessas conferências geralmente os protestos sempre são mais relevantes do que as cartas de intenções que encerram o teatro do diálogo entre pobres e ricos (do encontro participam 146 países-membros). Aconteceu em Doha, relembrou o ex- presidente do México, Ernesto Zedillo. “A carta de Doha foi lançada em novembro de 2001 como uma resposta às preocupações em relação ao engajamento do comércio exterior ao desenvolvimento dos países menos favorecidos, mas não saiu do papel”, disse Zedillo. Os 146 membros da OMC perderam quase todos os prazos estabelecidos para o avanço das negociações. “É pouco provável que os impedimentos significativos que ainda existem no comércio internacional venham a desaparecer por si só, sem um esforço multilateral.” Até o presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn, não apostou todas as suas fichas no sucesso da conferência. Ele disse em Washington: “Seria arriscado para qualquer um prever que Cancún significará uma grande mudança. Nossa esperança é que haja algum progresso.” Parece que não será desta vez, quando os ricos, que habitualmente não aceitam imposições, encontraram países pobres exatamente com a mesma posição.

 

Argentina 1, FMI 0

O presidente argentino Néstor Kirchner bateu o pé e não mexeu nas reservas do país para pagar uma dívida de US$ 2,9 bilhões ao FMI que venceria às 17 horas de terça-feira 9. Os telefones da Casa Rosada não pararam de tocar. “Kirchner enlouqueceu?” era a pergunta que todos faziam em silêncio. Não, ele nunca esteve com os pés tão colados ao chão e com o raciocínio tão sóbrio. Se mexesse nas reservas internacionais (US$ 13,6 bilhões) para cumprir o vencimento, o pequeno fôlego econômico que o país retomou nos últimos meses estaria liquidado. A Argentina registra uma leve recuperação econômica, após uma queda recorde de 10,9% em 2002. Mais da metade da população vive na pobreza e 17,8% da força de trabalho está desempregada. O presidente conseguiu tudo o que queria e saiu do enfrentamento – apresentado como acordo – como herói. Argentinos adoram gestos grandiosos, seja na política, seja no futebol. O presidente ganhou esse jogo antecipadamente perdido a partir do calote – o primeiro na história do país, o maior da história do FMI, e conseguiu, poucas horas depois, que o FMI aceitasse suas exigências. No final da noite de quarta-feira, o Kirchner apareceu para contar que:

• A meta de superávit fiscal primário foi mantida em 3% do PIB em 2003, e não 4%, como queria o FMI; n A exigência do reajuste das tarifas congeladas de serviços públicos não foi incluída na negociação, assim como o governo se desobrigou de compensar os bancos pelo efeito da desvalorização do peso.

A linguagem emplumada dos técnicos do FMI disfarça o estrago que o pequeno reajuste na meta do superávit implicaria com o corte nos gastos. A Argentina não quer isso – e mostrou em protestos nas ruas, onde acusou a instituição de causar a pior crise econômica de sua história. “Que no nos vengan a asustar con el caos” (que não venham nos assustar com o caos), ameaçou o presidente. Oficialmente, o governo argentino informou que o novo acordo refinancia em três anos uma dívida de US$ 17,9 bilhões, em troca do pagamento – feito assim que o FMI aceitou a contraproposta – de uma parcela de US$ 3 bilhões que venceu na terça-feira e do aumento da meta de superávit fiscal de 2,5% para 3% em 2004. Kirchner não teve como dividir os louros da ousadia com o ministro da Economia, Roberto Lavagna, que era contra o calote e se aborreceu com a decisão. Houve boatos de demissão do ministro, imediatamente negados.