17/05/2009 - 10:00
ANTICLERICAL Giuseppe Garibaldi associava a decadência da Igreja ao estado doentio do Tibre
Não existe cidade na Itália que não tenha uma rua, avenida ou praça batizada de Giuseppe Garibaldi (1807-1882). E se a vontade desse general, grande herói da Unificação italiana, tivesse sido soberana, seu nome provavelmente também batizaria um dos projetos de engenharia mais polêmicos da história de seu país.
Em 1875, cinco anos após a Itália ter se tornado um Estado nacional, Garibaldi tentou convencer o rei Vittorio Emanuele II a mudar o curso do rio Tibre, desviando seu leito das ruínas de Roma para um caminho mais curto até o Mar Tirreno, a apenas 30 quilômetros da Cidade Eterna.
No projeto de transposição, a recém-proclamada capital ganharia bulevares ao estilo das grandes avenidas parisienses projetadas pelo Barão de Haussmann e se livraria de um de seus maiores problemas desde os tempos da lenda de Rômulo e Remo, irmãos que teriam sido amamentados por uma loba e fundado Roma: as catastróficas enchentes de fim de ano. Essa era a grande obsessão de Garibaldi no final da vida, uma faceta de modernizador que está sendo revelada no livro "Roma ou Morte" (Editora Record), do historiador inglês Daniel Pick.
É claro que Garibalbi não conseguiu levar a cabo o seu mirabolante projeto. Com o seu curso disciplinado pela construção de paredões de contenção, o Tibre continua hoje serpenteando em paz por entre construções da época dos gladiadores e recebe inclusive animados mergulhadores em suas águas geladas durante o Ano-Novo. Mas o sonho do general italiano entrou para a história como um episódio bastante revelador da relação da Igreja com o novo Estado, numa teia que daria inveja ao escritor americano Dan Brown, autor de "Código Da Vinci".
A principal razão de Garibaldi ter aposentado a camisa vermelha de republicano em favor do guarda-pó de engenheiro era um transtorno com que Roma se debatia desde o governo de Júlio César. Passadas as chuvas torrenciais e baixado o nível das águas, a região ribeirinha da chamada Campagna (área rural que se estende da cidade até o Mar Tirreno) virava um pântano e verdadeiro criatório de mosquitos, o mais famoso deles nomeado mais tarde como anofeles, o transmissor da malária.
Cheias o rio Tibre (no alto), garibaldi numa expedição e a célebre Piazza Navona inundada
Essa doença, marcada por febres e vômitos, matava no século XIX entre 10 mil e 20 mil italianos por ano. A própria mulher de Garibaldi, Anita, que ele conheceu no Brasil em 1839 quando lutava pela tentativa de independência do Rio Grande do Sul, morreu desse mal. E seu filho mais velho, Menotti, também foi vítima da febre. Portanto, era natural que Garibaldi se empenhasse em erradicar de vez os surtos, diretamente ligados às enchentes do Tibre.
Nessa época ainda não se sabia que a enfermidade era provocada por um protozoário, o plasmódio, e que se transmitia pela picada de um mosquito. Acreditavase que a malária ("mau ar" em italiano) era fruto de miasmas, gases perniciosos originados da deterioração, poeticamente chamados de "eflúvios nocivos dos pântanos".
É aí que entra o lado Dan Brown da história. Crítico da Igreja, contrária à Unificação italiana, Garibaldi associava a situação doentia do rio – um esgoto a céu aberto – à corrupção e à política parasitária do Vaticano. "A ideia da responsabilidade direta da Igreja por esses problemas, ou mesmo a suspeita de que tivesse uma estratégia maligna secreta para produzir enchentes e febres, ainda era corrente naqueles anos", escreve Daniel Pick.
Uma superstição intensificada por curiosos acontecimentos reais. Em uma das grandes tempestades que inundaram Roma, um raio atingiu a Praça de São Pedro, atravessou a capela do papa Pio IX e destruiu uma pintura em seu altar. Para aumentar o significado sobrenatural, essa tromba d’água aconteceu justamente na semana de festas natalinas de 1870, ano da Unificação.
As elegantes Via Del Corso, Via dei Condotti e Via Giulia tornaram-se verdadeiros canais, só podendo ser atravessadas por gôndolas, e a Piazza Navona, onde fica hoje a Embaixada do Brasil, parecia mais um lago que uma praça. Os jornais, que ficaram um dia sem circular, descreveram a cidade como uma Veneza barroca.
O nível das águas chegou a 17,22 metros. Foi nesse ambiente desesperador que Garibaldi saiu de seu retiro na ilha de Caprera e arregaçou as mangas, bem ao seu estilo nacionalista. Popularíssimo na Inglaterra, ele contou com o apoio de empresas do país para financiar suas excursões preliminares pelo rio.
A grande ironia é que, arquivado o projeto, suas ideias foram adotadas por Benito Mussolini, que aumentou a sua popularidade ao drenar os pântanos de Pontine como medida antimalárica. E a camisa vermelha do Risorgimento deu lugar à camisa negra do fascismo.