21/02/2007 - 10:00
Em dois mandatos nas décadas de 70 e 80, o hoje senador pernambucano Jarbas Vasconcelos foi um dos expoentes do chamado MDB (e, depois, PMDB) autêntico. Era o grupo que conduzia a ferro e fogo os princípios do partido, de luta contra o regime militar, a favor da democracia e de uma sociedade mais igualitária. Vinte anos depois do seu último mandato parlamentar, Jarbas volta ao Congresso vivendo uma situação de quase total exclusão do pensamento da maioria do seu partido. Enquanto praticamente todo mundo aderiu ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ele faz oposição ferrenha. Apesar de tudo isso, Jarbas preserva autoridade moral suficiente para, mesmo na sua condição de minoria, fazer com que seu partido, por unanimidade, abrace como prioridade a discussão no Congresso da reforma política. Na semana passada, ele, na prática, já assumiu a primeira tarefa concreta nesse sentido, ao ser escolhido, na Comissão de Constituição e Justiça, o relator da emenda que pretende estabelecer definitivamente a cláusula de barreira (o conjunto de regras que dificulta o funcionamento dos partidos que não atingirem um desempenho eleitoral mínimo). Jarbas faz um diagnóstico duro. Na sua opinião, se as regras da política brasileira não sofrerem uma profunda modificação, o País continuará encerrado no mesmo processo de corrupção e fisiologismo que produziu os escândalos do ano passado e levou o Congresso a uma forte degradação. Para o senador, ela é a “mãe de todas as reformas”. Sem ela, “parte substancial do dinheiro que constrói casas populares, que compra cestas básicas, tapa os buracos das estradas se dissipa no meio do caminho financiando esquemas de corrupção”, alerta o senador nesta entrevista a ISTOÉ.
Jarbas Vasconcelos – Essa é uma constatação geral nos meios formadores da opinião pública. A população percebe a degradação do Parlamento, dos partidos. A verdade é que o Brasil nunca teve uma tradição de partidos políticos fortes. A imagem que nós tínhamos de partido forte, consolidado, com perfil claro, era o PT. Até uns dez anos atrás, o PT era o dono da ética, era o dono da correção, da boa conduta. Eles eram éticos e nós não éramos. Mas, com a chegada ao poder, o PT perdeu essa característica. Dentro desse quadro que se configura agora, ou se parte para uma renovação ampla dos partidos e das formas de conduta da nossa política ou nós vamos ficar marcando posição aí, dentro dessa desmoralização da classe política.
Jarbas – Se o governo e o PT não são os responsáveis totais por essa situação, por esse ciclo de escândalos que se iniciou na legislatura passada, eles permitiram isso. A mudança na conduta do PT facilitou essa sucessão de escândalos. Na proporção em que o PT começou a fazer coisas que não fazia, que antes condenava, os outros aprofundaram os seus maus hábitos.
Jarbas – Estabelecem. Na medida em que eram eles o padrão ético anterior. O que isso gerou? Por passividade da população brasileira, a corrupção e o fisiologismo estão se incorporando à paisagem. Isso já não causa mais indignação. Há alguns anos, Collor caiu porque ganhou um Fiat. Comparado com o que acontece hoje, o caso de Collor seria julgado por um tribunal de pequenas causas. O que ficou realmente provado contra Collor não foi utilização de dinheiro público. Era dinheiro privado. Foi caixa 2. Dinheiro de campanha não devolvido. Sobra de campanha. Exatamente o que se descobriu no caso do mensalão. Só que, agora, isso passou a ser um deslize menor, que todo partido político comete e que se entendeu que não merecia punição.
Jarbas – A única forma de se evitar isso e restabelecer o padrão é com uma reforma política. Ela, hoje, é a mãe de todas as demais reformas.
Jarbas – A reforma tributária é importante. Nós precisamos redistribuir a divisão dos recursos entre União, Estados e municípios – eu, que fui governador, sei bem o prejuízo dessa concentração hoje no governo federal – e, principalmente, diminuir a carga tributária. A complementação da reforma da Previdência. A reforma trabalhista. Agora, se antes nós não dermos prioridade à reforma política, como é que nós vamos ter credibilidade e condições de fazer todas essas outras? Como é que nós vamos mexer em coisas que envolvem direitos, interesses vários na sociedade, com um Congresso desmoralizado?
Jarbas – Hoje, você não tem fidelidade partidária, que defina um padrão de princípios e valores que o político tenha de seguir. Em contrapartida, você tem legendas de aluguel. Você tem coligações proporcionais estabelecidas em um sistema altamente discutível, que permite, por exemplo, que um deputado como Paulo Maluf faça quase um milhão de votos e arraste um monte de deputados desconhecidos e mal votados que, às vezes, nem do seu partido são. Ou se enfrenta essa coisa toda ou você continuará tendo sempre presidentes da República prisioneiros desse mesmo esquema de toma-lá-dá-cá. Pode ser Lula ou qualquer outro.
Jarbas – Também não é assim. Quando o atual governo não se esforçou em estabelecer um padrão diferente é que propiciou isso tudo. Vou dar um exemplo. No começo do primeiro governo, quando o PMDB estava de fato rachado, parte do partido queria aderir ao governo. Na ocasião, eu falei que, por ter me posicionado muito claramente em favor da candidatura de José Serra, do PSDB, não poderia simplesmente aderir ao governo. Mas, se nós propuséssemos uma agenda de reformas importantes para o País, nem eu nem ninguém ficaríamos contra elas. Começou o governo, Lula disse que iria governar junto com os governadores. Discutiria uma agenda de mudanças. No final, fez duas reuniões com eles. Fez uma reforma da Previdência pela metade. A reforma tributária encalhou. E o governo não governou. Começou a ser aparelhado pelo PT. E quem aderiu não aderiu por conta de idéias ou propostas de mudança.
Jarbas – Eu dizer isso seria uma falta de cuidado. Há aqueles que apoiaram Lula porque acreditaram nele desde o início. O senador José Sarney é um exemplo. E existem aqueles que estão aderindo agora apenas em troca de cargos e poder. Esses, eu, sem dúvida, condeno.
Jarbas – Quais os motivos que eu tenho para acreditar neste governo? O governo anuncia um Programa de Aceleração do Crescimento que nada mais é que a reunião de projetos e medidas já existentes. Por que eu não deveria ter dúvidas sobre se esse PAC é real ou mera maquiagem?
Jarbas – Não é uma situação confortável. Mas eu não pretendo sair do partido. A não ser dentro dessa profunda modificação política que eu proponho. Numa discussão maior, que estabeleça a criação de novos partidos com um novo perfil, eu poderia me integrar, então, a uma nova legenda. Mas, apesar desse desconforto, estão me respeitando muito.
Jarbas – Fizemos uma reunião da bancada do PMDB. E vamos ser sinceros. O PMDB é um partido inteiramente pragmático. Hoje, não dá nem mais para falar em PMDB dividido. O partido está praticamente todo agora engajado no governo. Hoje, é uma extravagância dizer que eu integro uma banda do partido. Hoje, eu sou mesmo uma exceção. Mas, mesmo assim, na reunião, eu propus que o partido encampasse a reforma política como prioridade. O PMDB é majoritário na Câmara e no Senado. Se nós resolvermos acelerar essa discussão, ela acontece. E a prioridade à reforma política foi aprovada por unanimidade.
Jarbas – A sociedade acaba mudando isso caso se conscientize mesmo dessa necessidade. É a necessidade de se ter coragem de fazer as discussões necessárias. A questão salarial, por exemplo.
Jarbas – Não é questão de ser a favor. Mas é questão de se discutir se é válido manter o salário baixo e, ao mesmo tempo, criar uma verba indenizatória de R$ 15 mil para compensar esse fato. Como é que eu, com a minha formação, vou inventar uma nota fiscal para aumentar o que eu ganho? Mas cria uma situação em que tem gente que faz.
Jarbas – É uma coisa contraditória. Porque o presidente, na mensagem de abertura do Congresso, apontou a reforma política como prioridade. Aí, 15 dias depois, vem o seu ministro e declara outra coisa.
Jarbas – Reforma política não é iniciativa do governo. Independentemente dele, nós podemos no Congresso definir as nossas prioridades. Agora, sem dúvida, se o governo declara que isso não está incluído entre as suas maiores preocupações, isso é uma desmotivação. Por isso, é importante mobilizar a opinião pública sobre essa necessidade.
Jarbas – O Congresso é o retrato do País. Só que hoje o Congresso é um retrato extravagante. Por causa das distorções que os erros do sistema provocam. Tenho minhas dúvidas se essa Câmara será melhor. Pouco mais de uma semana depois da posse, 17 parlamentares já trocaram de partido. Então, qual é a perspectiva que você tem? Não é boa. Mas por isso nós vamos ficar de braços cruzados? Vamos continuar fingindo que não vemos a total desmoralização? O ministro do Superior Tribunal Eleitoral (Marco Aurélio Mello) hoje emite pareceres e votos como se fosse um político. Por que chegamos a um quadro desses? O Congresso chegou ao fundo do poço.
Jarbas – A cláusula de barreira não extingue os partidos sérios e ideológicos. Eu vi de perto, numa visita que fiz à Alemanha no início da década de 80. Lá existe cláusula de barreira, que dificulta a vida dos partidos pequenos. Mesmo assim, o Partido Verde lá conseguiu crescer e hoje é uma das principais legendas do país. Mas o bom é que isso provocou uma reação do Congresso e eu fui escolhido na Comissão de Constituição e Justiça para relatar uma emenda do senador Marco Maciel corrigindo isso.
Jarbas – Ela coloca a cláusula de barreira na Constituição. Para não haver mais dúvida sobre ela.