Nenhum outro colaborador do presidente Luiz Inácio Lula da Silva apanhou mais do que o ministro da Segurança Alimentar e Combate à Fome, José Graziano da Silva, nesses oito meses de governo. Pertencente à turma da maçaneta, unha e carne de Lula, Graziano já teve a sua cabeça a prêmio várias vezes, segundo as especulações da imprensa. Responsável pelo programa que é a menina dos olhos do governo petista, Graziano sempre esteve na berlinda. A guerra à fome foi anunciada com pompa antes mesmo de Lula assumir o Planalto, e talvez esse tenha sido um dos erros do governo: gerou muito cedo expectativas gigantescas em torno de um programa complexo, que envolve vários ministérios e a sociedade civil. Logo de cara, vários aspectos do programa foram atacados por especialistas e um intenso debate tomou conta do País, que queria vê-lo aplicado rapidamente. E as cobranças se avolumaram nas costas de Graziano, de perfil pouco político e muito técnico: formado em agronomia, fez mestrado em ciências sociais, doutorado em economia e ainda dois pós-doutorados: um sobre estudos latino-americanos, na Universidade de Londres, e outro sobre desenvolvimento regional, na Universidade da Califórnia. Passada a tormenta, depois de oito meses, Graziano começa a respirar. Anunciou que o Fome Zero está acabando com a indústria da seca e que o projeto mais visível do programa, o Cartão Alimentação (ajuda mensal de R$ 50), que já contempla 300 mil famílias, atingirá um milhão em outubro, dois meses antes da meta inicialmente prevista

ISTOÉ – Por que o sr. é demitido uma vez a cada semana?
José Graziano

Não chega a tanto, é uma vez a cada 15 dias (risos). Há uma grande incompreensão sobre o que é o Fome Zero. A tradição era fazer uma gincana de arrecadação de alimentos e muita gente achava que nós íamos reproduzir isso. Se há uma coisa que não acaba com a fome é fazer exclusivamente doações de alimentos. É preciso criar espaços de geração de emprego, renda, aumento de produção e de consumo. Uma outra razão para a incompreensão é que o Fome Zero foi um programa que os brasileiros tomaram conhecimento pelas polêmicas que gerou. Desde o seu lançamento ele é objeto de debate. Parte das críticas internas surgiram das expectativas exacerbadas que o programa gerou. Ele atravessou uma campanha eleitoral. O outro lado, que perdeu, negava a fome como um fenômeno social, e nós dizíamos que a fome existia. Como as pessoas hoje não conseguem mais atacar o programa dizendo que o governo não tem a intenção de acabar com a fome, atacam por outras razões: porque ele não chegou ainda às suas cidades, porque está lento, porque ainda não tirou as pessoas da fome, daquela mesma fome que se negava que existisse.

ISTOÉ – Como impedir a intermediação dos políticos na concessão dos benefícios?
José Graziano

Estamos fazendo o dinheiro chegar diretamente aos beneficiados. Já criamos 570 comitês gestores, formados por voluntários da sociedade civil, escolhidos em assembléias locais, que fazem a lista das pessoas que serão beneficiadas. É para não haver intermediação política, religiosa, partidária. O auge da seca, em setembro, outubro, é exatamente o período das eleições, e isso não é mera coincidência.
 

ISTOÉ – Como está sendo a reação desses prefeitos ao acabar com essa moeda valiosa nas eleições?
José Graziano

Alguns prefeitos reagiram duramente ao programa, tentando colocar obstáculos. Depois se revelaram os verdadeiros interesses. Guaribas (PI), cidade piloto do programa, é um bom exemplo. O prefeito local (Reginaldo Correia da Silva, do PL) divulgou todo o tipo de informações que desabonavam o Fome Zero. Isso porque até então ele intermediava os recursos transferidos. Hoje ele está afastado do cargo, está sendo processado.
 

ISTOÉ – O governo divulgou desde o início a importância da mobilização da sociedade em torno do Fome Zero. Isso está acontecendo, mesmo depois de tantas polêmicas?
José Graziano

Ele chama a atenção internacional, e foi mencionado
no relatório do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) de 2003 como iniciativa positiva porque conseguiu
criar uma grande mobilização popular. É isso que me permite dizer que vamos vencer esse desafio.

ISTOÉ – Mas o interesse das pessoas não diminuiu com relação ao início do programa?
José Graziano

Não, pelo contrário. Eu tenho tido cada vez mais sinais dessa mobilização voluntária. Alguns são até muito emotivos. Outro
dia fui a Campinas visitar minha mãe e uma menina me abordou no sinal, entregando um papel. Era um convite para um show. Ela me
disse: “Moço, isso aqui é para o Fome Zero” (chora). Eu fico muito emocionado quando me refiro a isso. As pessoas querem fazer alguma coisa, esse trabalho voluntário, mesmo nos municípios mais pobres. O Fome Zero tem também esse lado de resgatar essa auto-estima, esse tecido social que estava se esgarçando em muitos lugares pelas diferenças de renda e por preconceito.
 

ISTOÉ – E as elites, estão participando?
José Graziano

No relacionamento com as empresas, no começo, tinha muito mais pessoas que queriam entrar no Fome Zero com um gesto de ação extemporânea, com uma doação. Hoje, a maioria das empresas que nos procura propõe colaborar com ações de longo prazo. Temos 55 empresas certificadas como parceiras do Fome Zero e já há mais uma centena delas aprovadas para receber esse certificado. A sociedade leva um tempo para responder aos estímulos do governo. Agora as pessoas já começam a acreditar que o Fome Zero não é um marketing.
 

ISTOÉ – O Fome Zero foi acusado de ser muito lento. Em Guaribas, por exemplo, já houve resultados?
José Graziano

Guaribas é um símbolo. Já há resultados visíveis. Destaco dois exemplos marcantes. Um é que a cor da cidade está mudando. Era cor de barro. Hoje Guaribas tem casas pintadas, o arco-íris está presente na cidade. O outro exemplo interessante é que a cidade já tem até um cabeleireiro. A pessoa pode fazer barba, cabelo, bigode, unha por R$ 1. E o que isso representa? A criação do setor terciário numa cidade onde não existia nada. As pessoas em Guaribas sempre lutaram pela sobrevivência. De repente nós levamos água e comida. Cisternas (para captação da água da chuva) estão sendo construídas. As mulheres, que gastavam de seis a oito horas por dia no transporte de água, passaram a ter uma parte do tempo ocioso e resolveram investir esse tempo no cabeleireiro. Guaribas produziu este ano a maior safra de feijão da sua história. Isso porque o produtor teve a garantia de que sua produção seria comprada. Em anos normais, em agosto, a indústria da seca já estava em movimento. O País pela primeira vez não tem uma indústria da seca em atividade. Se há uma indústria em recessão hoje no País, é a da seca.
 

ISTOÉ – E os indicadores na área da saúde já melhoraram?
José Graziano

No começo do ano mais de 200 crianças por mês eram internadas por causa de diarréia em Guaribas, que tem cinco mil habitantes. Hoje esse número despencou para 15. E não há mais
registro de mortalidade infantil. Acabou.
 

ISTOÉ – Esse efeito acontecerá em outras cidades?
José Graziano

Esse modelo só não funcionará nas grandes cidades. Em Guaribas, as células básicas da sociedade, as famílias, ainda estão intactas. Nenhum habitante quer sair de Guaribas, ele é empurrado da cidade pela miséria. Depois que injetamos recursos, soubemos que pessoas que haviam migrado para São Paulo estão voltando para Guaribas para montar pequenos negócios. E esse sinal já começa a surgir em outras regiões, como no Vale do Jequitinhonha (MG). Só a expectativa da chegada do Fome Zero lá provocou a redução da migração para os grandes centros urbanos.
 

ISTOÉ – Como o sr. responde às críticas sobre o aspecto assistencialista do Fome Zero?
José Graziano

Isso acontece porque as pessoas não param para ler o programa na sua complexidade. A marca do Fome Zero é que ele dá assistência, sem ser assistencialista. Acudimos as pessoas emergencialmente porque a fome não pode esperar. Distribuímos 174 mil cestas básicas para acampados que estão aguardando a reforma agrária, indígenas e quilombolas. Mas não paramos aí. A nossa expectativa é que as pessoas possam comer o que produzem localmente e acabar com essa dependência da transferência de renda. A África – que nos anos 70 passou a receber dos países desenvolvidos leite em pó e trigo como ajuda humanitária – depende ainda mais dessas doações. O Fome Zero é um leque de ações estruturais que incluem construção de casas, eletrificação rural, construção de cisternas, de estradas, orientação de saúde, implantação da agricultura familiar, investimento na educação.
 

ISTOÉ – A idéia seria acabar com essa distribuição de dinheiro? Isso pode acontecer a curto prazo?
José Graziano

A curto prazo não. A médio prazo sim porque criaria renda suficiente para aquelas pessoas se manterem. Isso, evidentemente, depende de uma série de fatores macroeconômicos. Esse é um embrião de um novo modelo, em que as pequenas cidades vão ter a oportunidade de se desenvolver a partir de suas próprias forças. O meu sucesso seria conseguir acabar com o Ministério de Combate à Fome e ficar apenas com o de Segurança Alimentar.

ISTOÉ – Quantas pessoas recebem ajuda através do Cartão Alimentação?
José Graziano

No mês de julho pagamos exatamente 298.589 famílias no programa do Cartão Alimentação, em 378 municípios. Até outubro atingiremos um milhão de famílias, meta que inicialmente era prevista para dezembro.
 

ISTOÉ – O Fome Zero não ficou muito enroscado com burocracia?
José Graziano

Temos tido dificuldade de responder rapidamente porque no setor público tudo o que não está escrito não é possível fazer. Não havia no Brasil uma política de segurança alimentar. As instituições não existiam, estão sendo criadas e isso demora tempo.
 

ISTOÉ – É possível acabar com a fome em quatro anos? Afinal , quantos miseráveis temos no País?
José Graziano

Trabalhamos com 44 a 46 milhões de pessoas em insegurança alimentar. Não eliminaremos a pobreza nem com a miséria em quatro anos, mas nós pretendemos criar uma rede de cobertura que atenda esses miseráveis. Essas pessoas continuariam dependentes dessa transferência de renda porque é muito difícil se libertar disso em quatro anos. A independência dessas pessoas é um processo longo e depende das economias locais e do próprio crescimento macroeconômico. Eu acredito que depois de quatro anos ninguém passará fome, nenhuma criança irá para a escola com fome.

ISTOÉ – Quando o programa vai enfrentar o desafio de atacar a fome nas grandes cidades?
José Graziano

A miséria das grandes cidades está associada à degradação das famílias, à ausência do Estado, que não fornece escola, saúde, habitação e saneamento básico. Muitas vezes o Estado é substituído pelo tráfico. Nós devemos começar a atingir as grandes cidades a partir de outubro. Será um enorme desafio.

ISTOÉ – E nas capitais?
José Graziano

Isso depende do acerto que a gente fizer com os Estados
e municípios. Todas as ações de investimentos, de regularização de córregos, saneamento básico, fechamento de lixões, que deverão acompanhar o programa, não são da alçada exclusiva do governo federal.

ISTOÉ – Os programas da área social vão ser unificados? Que ministério vai ficar encarregado do cadastro geral?
José Graziano

O ponto de partida é a unificação dos programas já existentes, como o bolsa-escola, bolsa-alimentação, vale-gás, erradicação do Trabalho Infantil e Agente Jovem, com os que criamos. Haverá uma secretaria executiva. A racionalidade exige isso: um só pagamento, um só cartão, um só cadastro.
 

ISTOÉ – Qual é a sua avaliação sobre a ação do governo FHC nessa área?
José Graziano

O ponto positivo foi criar a transferência de renda direta, via cartão. O negativo foi que FHC passou sete anos para deslanchar os programas. Ele começou a fazer o cadastro (de beneficiados) em 2001.
O desenho dos programas do governo anterior tem claramente um viés eleitoral. Em 2001, véspera das eleições, o bolsa-renda foi estendido a todos que dissessem que tinham sido atingidos pela seca. O benefício de R$ 30 durava enquanto persistia a seca. Tivemos de continuar pagando até fevereiro porque a seca persistia, mas a partir de março começamos a refazer esse cadastro.
 

ISTOÉ – O sr. não desanimou com essa chuva de críticas que atingiu o seu ministério desde o início do governo?
José Graziano

Eu sou um otimista por natureza, senão não teria ajudado a fundar o PT em 1979, persistindo firme em todas as campanhas do presidente Lula. Vamos conseguir sim. O Fome Zero saiu na frente. Por isso apanhou mais, foi o primeiro a expor sua cara. Mas hoje o caminho do Fome Zero está sendo seguido pelos outros programas, como o de construção de cisternas, de fortalecimento da agricultura familiar, de alfabetização. É a mesma lista de municípios. Estamos entregando o pacote organizado. Nós já estamos um pouco na frente, um pouco com a cara quebrada, mas já estamos lá, e isso serve para ajudar essa ação integrada do governo.
 

ISTOÉ – O programa tem tido apoio externo?
José Graziano

Há uma enorme receptividade lá fora. O presidente Lula vai à Itália no dia 16 de outubro falar sobre o Fome Zero para representantes de 187 países da ONU. Esperamos receber um grande presente do FMI, que é deixar as ações do Fome Zero fora dos limites do cálculo do superávit primário. Mas esse é um processo de negociação. Em julho, a FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação) aprovou um texto mencionando o Fome Zero como um exemplo. É emocionante. Um símbolo de prestígio e de confiança.