20/08/2003 - 10:00
Há quase 60 anos, o grande protagonista da cena política paraguaia tem sido a Associação Nacional Republicana (ANR), mais conhecida como Partido Colorado, uma organização que, embora de direita, montou no Paraguai um modelo político que guardava muita semelhança com o partido-Estado implantado no México pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI). Até o novo presidente paraguaio, Nicanor Duarte Frutos, que tomou posse na sexta-feira 15 prometendo grandes mudanças, pertence à centenária agremiação.
O país vizinho sofreu a mais precoce e a mais longa ditadura militar de direita do Cone Sul: o general Alfredo Stroessner tomou o poder em 1954 e dele não se afastou até 1989, quando foi deposto por um golpe palaciano liderado pelo seu consogro, o general Andrés Rodríguez, então comandante do
I Corpo de Exército. Os colorados, embora divididos, foram a força hegemônica tanto da ditadura quanto da inacabada transição para a democracia paraguaia. E o dirigente colorado Luis María Argaña (1932-1999), líder da facção tradicionalista do partido, foi uma das figuras mais emblemáticas e controvertidas desse período. Quando foi assassinado, em março de 1999, ele estava a um passo de realizar seu grande sonho de se tornar presidente da República.
Típico representante da oligarquia, Argaña jogou um papel fundamental na sustentação de Stroessner, tendo sido, inclusive, presidente da Corte Suprema de Justiça, até se indispor com o setor mais ortodoxo do regime e se tornar uma das lideranças civis do golpe – colorado, claro – que depôs o velho ditador em fevereiro de 1989. Argaña então se transformou no personagem mais importante da transição. Tentou ser o candidato dos colorados à Presidência nas primeiras eleições pós-ditadura, mas o Exército impôs o general Andrés Rodríguez. Nomeado chanceler, acabou afastado do cargo pouco depois de um ano. Extremamente nacionalista, Argaña se encastelou no partido e passou a críticar as políticas neoliberais do governo Rodríguez e, posteriormente, a proposta da entrada do Paraguai no Mercosul.
No final de 1992, Argaña foi vítima de uma das maiores fraudes da fraudulenta história eleitoral paraguaia: ele venceu as internas do
Partido Colorado para as eleições de 1993, batendo o candidato do presidente Rodríguez, o engenheiro Juan Carlos Wasmosy, a quem o líder tradicionalista acusava de ter enriquecido ilicitamente com a construção da usina hidrelétrica de Itaipu. Mas por ordem do presidente Rodríguez
as atas eleitorais foram enviadas para o Regimento de Cavalaria,
onde uma parte delas foi adulterada. Um tribunal eleitoral partidário especialmente criado proclamou a vitória de Wasmosy. Angel Seifart,
vice de Wasmosy, descreveu dessa maneira a situação para correligionários: “Senhores, estamos ante a disjuntiva de tomar veneno ou comer merda. Rodríguez ameaça com um golpe se apoiarmos Argaña: isso é tomar veneno. Se vamos com Wasmosy, as coisas mudam. Teremos que nos preparar para comer merda.”
A facção de Argaña no Partido Colorado fez campanha para um candidato da oposição, Guillermo Caballero Vargas, mas Wasmosy, com o apoio do general Lino César Oviedo, ganhou as eleições. A partir de então, na constelação colorada iriam disputar espaço duas grandes estrelas: Oviedo, nomeado comandante do Exército por Wasmosy, e Argaña, na máquina do partido. Disputas políticas levaram o presidente a afastar Oviedo da chefia do Exército em abril de 1996, ocasião em que o militar teria tentado resistir, criando uma séria crise institucional. Enquanto isso, Argaña conquistava o controle do Partido Colorado, derrotando a máquina governamental. Mas a necessidade de baixar o tom de críticas ao governo Wasmosy enfraqueceu Argaña ao mesmo tempo que fortaleceu Oviedo. Nas internas de setembro daquele ano, o militar, concorrendo pela facção União Nacional dos Colorados Éticos (Unace), derrotou Argaña como candidato dos colorados a presidente.
Em março de 1998 teve início o primeiro ato da tragédia: uma corte marcial extraordinária criada por Wasmosy condenou Oviedo a dez anos de cadeia por tentativa de golpe; a sentença foi confirmada um mês depois pela Corte Suprema de Justiça, inviabilizando a candidatura do general. Assim, por causa de um perverso mecanismo eleitoral, o candidato a vice de Oviedo, Raúl Cubas, e o segundo colocado na disputa, Argaña, adversários ferrenhos, seriam, respectivamente, os candidatos colorados a presidente e vice-presidente. Cubas foi eleito e, logo que assumiu, libertou Oviedo por decreto, comutando sua pena, decisão declarada inconstitucional pela Corte Suprema. Com escasso tempo no cargo, Cubas já se via ameaçado pela oposição com um julgamento político no Congresso. Terminava o segundo ato. Nesse clima tenso, Argaña foi assassinado em 23 de março e a dupla Cubas/Oviedo foi imediatamente acusada pelo homicídio. Manifestações acabaram em mortes de estudantes pela polícia. Cubas caiu no dia 28 do mesmo mês. Um governo de união nacional liderado por um colorado – claro –, Luiz Angel González Macchi, presidente do Senado, assumiu o poder. Passará à história como um dos mais corruptos do Paraguai.
O novo presidente colorado, Nicanor Duarte Frutos, tem pela frente o desafio de tirar o país de uma recessão sem precedentes, viabilizar a democracia – o que significa, entre outras coisas, alternância de poder – e se livrar dos esqueletos do armário, entre os quais o de Argaña, certamente o mais incômodo deles.