Uma pequena praça com jardins bem cuidados, um busto, um crucifixo e placas de bronze nas laterais chama a atenção de quem transita pela altura do número 900 da movimentada rua Tenente Virgílio Molas, em Assunção, capital do Paraguai. Via de mão dupla com um asfalto de conservação razoável e algumas lombadas, a Diagonal, como é conhecida a rua, ficou famosa há quatro anos e cinco meses. O lugar onde hoje está a aprazível pracinha foi o cenário da página mais trágica e polêmica da história recente do Paraguai: um atentado que teria vitimado o vice-presidente Luis María Argaña. Nos últimos dois meses, a reportagem de ISTOÉ ouviu testemunhas, peritos e legistas e encontrou diversas evidências de que aquela emboscada contra Argaña não passou de uma armação grotesca para encobrir a verdadeira forma de como foi perpetrado o assassinato de um dos últimos caudilhos paraguaios. O atentado de fato aconteceu, mas Argaña já estava morto – vítima de uma bala que transfixou seu coração – quando seu carro foi atacado por pistoleiros na Diagonal.

Na manhã do dia 23 de março de 1999, a caminhonete Nissan Patrol que transportava Argaña subia a Diagonal rumo ao gabinete do vice-presidente. Nela estavam o motorista Víctor Barrios, o segurança Francisco Barrios González e, no banco de trás, à direita, o vice-presidente. Às 8h45, quando se aproximava da esquina com a avenida Venezuela, a caminhonete foi interceptada por um Fiat Tempra verde. Dois
homens trajando fardas camufladas saltaram do Tempra e rapidamente dispararam com escopetas e pistolas contra a caminhonete bordô. O motorista tentou escapar ao cerco. Engatou a marcha a ré mas acabou batendo a traseira do carro contra um muro onde hoje está a praça. Atingido por estilhaços no rosto, ele abandonou a caminhonete e se refugiou na casa número 925. O segurança estava no assento do carona e nem sequer teve tempo de sacar sua arma. Levou dois tiros na cabeça, entrou em estado de coma e morreu 24 horas depois. Toda a ação não durou mais do que dois minutos. No banco traseiro, o corpo de Argaña estava tombado para a direita, crivado com cinco balas. Apenas um detalhe impediu que a emboscada se tornasse a versão definitiva do assassinato do vice-presidente. O roteiro original da farsa previa que
os pistoleiros deveriam eliminar qualquer possibilidade de investigação posterior. Para tanto, antes de fugir eles lançaram uma granada sob
a Nissan Patrol de Argaña. A idéia era a de que nada ou ninguém sobrasse para contar a história. O artefato, porém, não explodiu. O resultado é que, diante de qualquer investigação isenta, essa versão desaba como um castelo de cartas.

“O doutor Argaña já estava morto quando houve o atentado”, disse
Sisley Pintos a ISTOÉ na tarde da sexta-feira 8. Secretária executiva
da Indústria Nacional de Cimento (INC), ela mora na Diagonal 925, na mesma casa onde se refugiou o motorista Barrios. “Ele entrou correndo com o rosto cheio de sangue e eu saí para ver o que estava acontecendo. Os atiradores já tinham fugido e eu pude entrar na caminhonete pela porta do motorista, a única que estava aberta. Peguei o rádio para o motorista Barrios chamar socorro e até desliguei o motor do carro. Percebi que o segurança estava vivo, mas o vice-presidente já estava morto. Sua pele não tinha cor e o corpo estava gelado. Além disso, não havia nenhuma marca de sangue em suas roupas. Com certeza, ele não morreu naquela hora”, afirmou.

Comprovação científica – Sisley foi a primeira pessoa a tocar no corpo de Argaña depois do atentado e a impressão que ela teve é confirmada cientificamente. Durante três semanas, os renomados legistas brasileiros Nelson Massini, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, e José Eduardo Reis, do Instituto Médico Legal de Brasília, analisaram mais
de 25 fotografias e um vídeo contendo a íntegra da autópsia de Argaña, realizada no Hospital Americano, em Assunção. “É evidente que o tiro fatal foi o que transfixou o coração. O vice-presidente teve morte quase instantânea, entre três e cinco minutos depois de ter recebido o tiro,
mas o sangue já coagulado e a nítida rigidez cadavérica nos membros superiores indicam que ele morreu em um período que pode variar de
seis a oito horas antes da realização do exame”, garantem Massini e
Reis. “Como a autópsia foi concluída às 12h15, Argaña foi morto,
com certeza, entre 4h e 6h e jamais às 8h45, horário do suposto atentado”, completa Massini.

Os legistas brasileiros descobriram ainda outros indícios que tornam a versão oficial mais grotesca. Segundo eles, os tiros disparados contra Argaña foram dados a curta distância e pelo menos três deles o atingiram quando o político já estava morto. “Nos ferimentos de entrada dos projéteis, em pelo menos três casos, fica claro que não há infiltração hemorrágica”, explica Reis. “Isso caracteriza que, quando foi produzido o ferimento, o corpo já não tinha reações vitais”, completa Massini. “Há, ainda”, continua o legista, “um enorme hematoma no olho direito do vice-presidente que nem sequer foi considerado no exame oficial.” Questionado pela reportagem de ISTOÉ, o médico patologista paraguaio José Bellasai, um dos responsáveis pela autópsia, se limitou a dizer que o tiro mortal
foi o que atingiu o coração de Argaña. “Só posso garantir que um tiro transfixou o coração e foi mortal”, disse. “Quanto ao resto, eu não sei.
Não quero entrar em polêmicas.”

Trajetórias impossíveis – Uma análise um pouco mais detalhada da cena do crime mostra com clareza toda a farsa. O vice-presidente recebeu cinco tiros. No entanto, a perícia realizada na caminhonete Nissan Patrol constatou que na parte traseira do carro, onde viajava Argaña, há o registro de apenas três entradas de balas. De onde vieram os outros dois tiros? “Isso não é problema meu. É com a balística”, alega Bellasai. O policial responsável pela balística, Victorio Martínez, se recusou a dar explicações. “Não posso dar declarações, pois sofri um acidente e estou em recuperação”, afirmou ele a ISTOÉ quando soube do que se tratava.

As evidências da farsa se tornam mais visíveis ainda quando se analisam
as trajetórias dos disparos. Os tiros que acertaram o corpo de Argaña têm um percurso muito definido. Com exceção de um disparo que atingiu o braço direito do vice-presidente, os demais acertaram a região lombar. Todos os tiros descrevem uma trajetória de baixo para cima, da direita para a esquerda. Isso é fato comprovado tanto pela autópsia realizada
no Paraguai como pelos legistas brasileiros. No carro, os três disparos feitos em direção ao corpo de Argaña atingiram o vidro da porta traseira direita. Não há nenhum sinal de tiros na lataria da porta. Assim, para
que a versão oficial tenha sentido, só há duas hipóteses: na primeira,
a vítima estaria flutuando como um boneco inflável entre os bancos do carro, com a barriga encostada no teto. Na outra, o atirador teria aberto
a porta do carro, se ajoelhado no chão, inclinando-se para trás e, assim, disparado contra o vice-presidente. O motorista Víctor Barrios declarou
à polícia que a porta do carro não foi aberta e nem poderia ter sido, “porque esse veículo, ante qualquer impacto, bloqueia automaticamente todas as portas e não se pode abri-las por fora”. A informação foi confirmada pela perícia. Hoje, o sobrevivente Barrios trabalha na
Itaipu Binacional e não fala sobre o caso.

O juiz que presidiu a investigação, Jorge Bogarin, depois de insistentemente procurado por ISTOÉ, declarou que o que tinha a dizer estava na sentença que condenou, em primeira instância, três pessoas como responsáveis pela execução do atentado. “Proferi minha sentença e não quero alimentar controvérsias”, afirmou. No volumoso processo, o juiz Bogarin nada diz sobre as trajetórias dos tiros que atingiram o vice-presidente paraguaio. Para elaborar sua cuidadosa sentença, Bogarin se baseou, em grande parte, no testemunho de Ricardo Arguelo, proprietário de uma marcenaria situada no número 915 da Diagonal. O problema é que Arguelo é tão confiável quanto um relógio comprado de um camelô no centro de Assunção. No diálogo que manteve com a reportagem de ISTOÉ, ele contou coisas tão absurdas como ter ouvido, mesmo no meio de toda a confusão, os gemidos de um homem agonizando. Disse ainda que tinha certeza de que os gemidos eram emitidos por Argaña, embora tenha tomado conhecimento de que se tratava do vice-presidente somente depois de o corpo ter sido removido. Tudo para justificar a afirmação de que o político de fato teria morrido no atentado. O depoimento da secretária Sisley Pintos, que chegou a entrar no carro e a tocar no corpo de Argaña, não foi considerado pelo juiz Bogarin. Já o de Arguelo tem papel destacado no processo. “Eu sei que ele foi muito pressionado para manter a versão de que o vice-presidente estava vivo”, disse Sisley a ISTOÉ.

Investigação dirigida – Quem ler todo o processo constatará que as investigações a respeito do atentado foram conduzidas em uma só direção: a de relacionar e incriminar o general Lino César Oviedo, ex-comandante do Exército, ex-candidato à Presidência da República e inimigo político de Argaña. Os defensores dessa hipótese sustentam que o general, impedido de disputar a Presidência em 1998, concorreria a vice depois da morte de Argaña – a legislação prevê a eleição do vice em caso de falecimento – e, ato contínuo, o então presidente Raúl Cubas Grau, fantoche oviedista, renunciaria, dando lugar ao chefe. Até agora, cinco pessoas foram responsabilizadas pelo atentado. Pablo Vera Esteche “confessou” ao juiz que, junto com seus amigos Luis Alberto Rojas e Fidencio Vegas, executou o crime depois de ter recebido uma proposta de US$ 300 mil para eliminar Argaña. A proposta teria sido feita pelo major Reinaldo Servín, ligado a Oviedo, e por Constantino Rodas, vulgo Condorito, que comprou o Tempra usado pelos pistoleiros. O major Servín e Constantino Rodas foram condenados a 25 anos de prisão e Pablo Vera, por ter colaborado, pegou 20 anos. Luis Alberto Rojas aguarda julgamento e Fidencio Vegas está foragido.

Descaso – No Paraguai existem outras hipóteses sobre a autoria do atentado. Argaña era um político de destaque e sua morte interessava a muita gente. Um bom suspeito poderia ser o senador vitalício e ex-presidente Juan Carlos Wasmosy (1993-1997): o crime tirou do caminho seus dois inimigos figadais: o próprio Argaña e, de quebra, seu desafeto Lino Oviedo, acusado de ser o mandante. Outra hipótese assegurava que tudo não passava de uma sórdida conspiração urdida por políticos colorados (o partido de Argaña) que se opunham ao governo Raúl Cubas (também colorado), aliados a congressistas da oposição – justamente o grupo que subiria ao poder com Luiz González Macchi depois da queda de Cubas. Como os parlamentares estavam a ponto de decretar o impeachment de Cubas, Argaña seria o sucessor legal. Com o vice eliminado, abriu-se o caminho para esse grupo chegar ao poder. Essa hipótese poderia ser reforçada pelo fato de José Alberto Planás, amigo e aliado de Argaña, ter sido a primeira pessoa a chegar na Diagonal, minutos depois dos disparos. Em vez de socorrer as vítimas, Planás preocupou-se em dar declarações à imprensa, já responsabilizando Oviedo pelo atentado. No governo Macchi, Planás virou ministro de Obras Públicas e Telecomunicações. Apesar do barulho que causaram na pacata Assunção, nenhuma dessas hipóteses foi seriamente investigada até agora.