O que é possível comprar por R$ 1? Chiclete, uma barra de chocolate ou a promoção de três sacos de amendoim nos camelôs. O governo do Estado do Rio de Janeiro vem promovendo uma espécie de mágica, que permite à população de baixa renda acesso a uma variada gama de serviços por apenas R$ 1. As próximas novidades serão o cinema com equipamento digital, previsto para ser inaugurado até o fim de outubro na Baixada Fluminense, e o Salão Hebe Camargo, na Central do Brasil, para turbinar a beleza feminina pelo preço de um saco de pipoca. O salão deve ser aberto em setembro e vai ter todos os serviços básicos de um cabeleireiro. No fim de julho foi inaugurada a Farmácia Popular, com remédios a R$ 1 para idosos. Funciona inclusive nos fins de semana e feriados, das 8h às 17h, em um prédio dentro do Instituto Vital Brazil, um laboratório do Estado, que fica em Niterói.
“Achei a iniciativa excelente”, elogiou a viúva Maria Guilhermina
Lomardo, pensionista de 84 anos. Ela sofre de hérnia de hiato, enfizema pulmonar e tem um problema de coração. Saiu feliz da vida levando
30 comprimidos de Raniditina para o estômago. O remédio sairia por
R$ 35 nas farmácias da rede privada.

As iniciativas populares, que a governadora Rosinha Matheus (PSB) adotou como marca registrada, começaram no fim de 2000 com a abertura de um restaurante com refeições a R$ 1 na Central do Brasil, ainda na gestão de seu marido, Anthony Garotinho, atual secretário de Segurança Pública do Estado. Hoje são sete unidades e um total de 19.300 refeições diárias. No da Central do Brasil, são servidos 3.300 pratos, das 10h às 15h. A fila começa pouco depois das 9h e às vezes é tão grande que faz alguns desistirem. Não foi o caso de Waldivino André da Luz, 52 anos. Mãos calejadas, desempregado da construção civil, ele tem se virado como catador de papéis. Waldivino cita com orgulho os vários prédios públicos que já construiu, mas sua carteira não é assinada há dez anos. Mora em Santa Cruz, zona oeste, o bairro mais longínquo do centro, e frequenta o restaurante quase diariamente. “A comida é ótima, mas o que eu mais precisava era de serviço”, lamenta Waldivino, traçando um prato com arroz, feijão, frango assado, quibe, salada, sopa, tangerina e doce de banana.

É justamente essa a maior crítica que o cientista social Gláucio Gil, PhD em sociologia pela Universidade de Washington, faz ao governo do Estado. “Os projetos de R$ 1 são assistencialistas e não mexem nas causas da pobreza. A situação social da pessoa não se altera quando ela sai do restaurante”, analisa Gil. O professor inclui o Fome Zero do governo Lula no mesmo patamar do assistencialismo.
“Há várias simulações sobre o que mudaria a distribuição de renda.
Todas apontam para a melhoria da educação”, observa. Rosinha
Matheus rebate as críticas: “O Rio é o Estado que concentra o maior conjunto de ações no combate às desigualdades. Mais de um milhão
de pessoas são beneficiadas por mês com nossos programas sociais.
” Cita ainda o Cheque Cidadão, que distribui cheques de R$ 100 para
62 mil famílias: “É um programa que ajuda muito as famílias a manterem suas crianças na escola.”

Outra iniciativa recente é o café da manhã a R$ 0,35, que funciona
desde o início de julho em Saracuruna, Duque de Caxias, também na Baixada Fluminense. Nos últimos dias foram inaugurados outros em Bangu (zona oeste), Santa Cruz e Belfort Roxo (Baixada). Quem bate ponto
no café da manhã em Santa Cruz é o calista maranhense Reinaldo Mota da Silva, 44 anos. Ele mora em Sepetiba, no município vizinho de Itaguaí, e pega o trem até a Central. Já se acostumou à rotina de chegar à estação de Duque de Caxias um pouco antes das 7h para entrar na fila em volta do quiosque. Quatro funcionários se alternam na distribuição de uma caixinha de papelão contendo um pão com manteiga, uma fruta da época e um pedaço de bolo. Outro funcionário tira da máquina o café com leite quente, condicionado em copo térmico. A maioria pega o pacote e come no trem ou quando chega ao trabalho. No local existem apenas os bancos de cimento da própria estação. “Gosto bastante. É bem organizado, a fila é rápida e fico alimentado até a hora do almoço”, festeja Reinaldo. Ele abre seu kit às 9h, ao chegar ao Salão de Beleza Luiz Sá, no centro, onde trabalha.
 

Subsídio – Como é possível cobrar tão pouco por um serviço que deveria custar muitas vezes mais? Segundo o secretário de Ação Social e Cidadania, Fernando William, a secretaria funciona como um “laboratório de idéias” para melhorar a qualidade de vida da população de baixa renda. É feito um levantamento de custos e, no caso do desjejum, o Estado dá um subsídio de R$ 0,70 por kit. São distribuídas 15 mil unidades por dia. Nos restaurantes, o subsídio é de
R$ 2 por prato, totalizando R$ 850 mil mensais. Mas, se o usuário elogia, também há quem critique. “Há uma carência muito grande e qualquer coisa é bem-vinda. São intervenções populistas, tentativas de recuperar a base social perdida”, fuzila o cientista político Luiz Antônio Machado, professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (Ifics).

Fernando William reage, citando experiências como a do Hotel Popular, que funciona com 138 quartos individuais desde março de 2002, das
18h às 9h, e do futuro Salão Hebe Camargo. Em ambos, há capacitação profissional de estudantes da Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec). “Eles fazem estágio no curso de hotelaria e também farão
no curso de estética. Mulher ficar bonita por R$ 1 também é uma
questão de cidadania”, argumenta William.

O pacote inclui a Central de Cartas Fernanda Montenegro, inspirada no premiado filme Central do Brasil, de Walter Salles. Por enquanto, a oferta de “escrivinhadoras” ainda é maior do que a procura por parte dos analfabetos. Para quatro computadores, a média de pessoas que buscam o serviço é de três por dia. Um deles foi o estudante Renato Belizário dos Santos, 20 anos. Embora saiba escrever, procurou a Central para encaminhar uma carta para Pâmela, sua cantora predileta. “Meu sonho é conhecê-la”, suspira. A carta e a postagem são gratuitas. O que mais tem aparecido não são apaixonados em busca da pessoa amada ou pessoas procurando parentes perdidos: “Tenho feito muito currículo”, diz a atendente Gláucia Regina de Souza Braga, 27 anos, que ganha pouco mais de R$ 400 por mês. A carta que mais a emocionou foi a de uma senhora de Realengo (zona oeste) para um parente. Ela tinha problemas de saúde, mas não podia se ausentar do trabalho para não correr o risco de perder o emprego e deixar os quatro filhos sem teto.

A gratificação pessoal dos profissionais que lidam direto com tanta gente desassistida é indiscutível. O sanitarista Oscar Berro, “pai” da Farmácia Popular, não mede elogios à iniciativa. “Nunca tive oportunidade de fazer um projeto com esse impacto e grandeza”, comemora ele, ativo combatente da última epidemia de dengue no Rio. A farmácia, de 250 metros quadrados, foi montada com acompanhamento da Associação Niteroiense do Deficiente Físico e é toda modelada para receber idosos. Custou R$ 450 mil. Fornece 33 medicamentos de laboratórios oficiais, sendo o Captopril, para pressão alta, o mais procurado. A farmácia custa R$ 300 mil mensais aos cofres fluminenses.

Até setembro, Berro também pretende oferecer remédios para osteoporose e glaucoma, adquiridos na iniciativa privada, e ampliar a rede para mais quatro unidades – a maioria na Baixada – até o fim do ano. Talvez o maior problema seja a falta de divulgação. Muita gente em Niterói ainda desconhece a existência da farmácia popular. Na segunda-feira 11, às 10h45, havia dez funcionários (são ao todo 35) e seis clientes. Para os idosos, não poderia ser melhor: “O atendimento é excelente”, faz coro com Maria Guilhermina o aposentado Flávio de Deus Silva, 81 anos, que foi pegar um remédio para a pressão de sua mulher hipertensa, dona Zelda Henrique Silva, 76.