20/08/2003 - 10:00
Num canto do restaurante, um casal discute a relação. Ele se levanta e deixa a mulher chorando. O garçom traz a refeição e coloca na mesa, agora semi-solitária. A mulher chora mais um pouco, enxuga as lágrimas, puxa o prato para si e começa a comer. Para um homem alto, de barba e olhar astuto, a cena deflagra uma curiosidade incrível. Não vê a hora de chegar em casa e escrever sobre o que presenciou. Ele é Marçal Aquino, 45 anos, paulista de Amparo, conhecido como roteirista e autor das histórias levadas às telas pelo amigo Beto Brant, diretor de Os matadores (1997), Ação entre amigos (1998) e O invasor (2001). Histórias, na sua maioria, inspiradas em cenas prosaicas testemunhadas por quem não tem vergonha de ser chamado de voyeur. Um exemplo é o conto Matadores – sem o artigo –, que surgiu de conversas tidas com assassinos profissionais, ouvidos nos tempos em que o autor viajava como jornalista. Mesmo hoje em dia Aquino não se envergonha de seguir pessoas só para escutar a conversa delas até o fim, assim como bisbilhotou a intimidade do casal no restaurante.
Casado, pai de Alice, uma garota de dez anos, consumidora voraz de livros de Sherlock Holmes e filmes de 007 – “com Sean Connery”, ela avisa –, Aquino vive mais longe da família do que do seu apartamento-escritório, instalado num prédio comum de uma das mais movimentadas ruas da Vila Mariana, zona sul de São Paulo. Quando não está na sala, sitiado num dos sofás entre a estante de livros – ordenados caoticamente em torno dos preferidos Graciliano Ramos e Raymond Chandler – e a enorme televisão, cercada de vídeos de filmes de Quentin Tarantino e David Lynch, o autor se aboleta no quarto para responder e-mails no computador que mal sabe manejar. Seu maior prazer é escrever à mão, em cadernos de colégio. Seguindo este ritual jurássico, mas de intensidade lúdica, ele escreveu Cabeça a prêmio (Cosac & Naify, 192 págs., R$ 29), mais uma história de matadores que esta semana chega às livrarias, juntamente com a coletânea Famílias terrivelmente felizes (Cosac & Naify, 232 págs., R$ 32), reunindo 16 contos de seus dois primeiros livros, As fomes de setembro (1991) e Miss Danúbio (1994), além de cinco inéditos. Ambas as edições são ilustradas pelo artista gráfico Ulisses Bôscolo de Paiva.
Amizade – Sua relação profissional com o cinema começou com Beto Brant, que o conheceu através da leitura de Miss Danúbio. O cineasta até roteirizou um dos contos do livro. Com o estreitamento da amizade veio o pedido de uma história inédita. Incluído em Miss Danúbio e na coletânea recém-lançada, o conto Matadores não passava do esboço de um enredo maior, que finalmente pôde ser concluído sob a forma de roteiro escrito a quatro mãos pelo diretor e pelo próprio autor, que assim descobria a nova ocupação de roteirista. Ação entre amigos – um livro sobre relações pessoais que se deterioram ao sabor amargo da ditadura militar e segundo filme de Brant – nasceu apenas como roteiro. O invasor transformou-se em livro só depois do filme pronto. Aquino e Brant já terminaram os roteiros de O amor e outros objetos pontiagudos, conto do autor, e de Um crime delicado, baseado em obra premiada do carioca Sérgio Sant’Anna. Em breve, Aquino inaugura uma parceria com Heitor Dhalia, diretor do filme Nina, ainda sem data de lançamento. Ambos fizeram uma adaptação livre de Crime e castigo, de Fiódor Dostoievski.
Satisfeito, Aquino atualmente trabalha em seu primeiro romance, já que O invasor e Cabeça a prêmio ele considera novelas. Trata-se de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, no qual outra vez se sente tão surpreendido quanto o leitor. É que, enquanto escreve, na sua cabeça as situações se desenvolvem como se tivessem vida própria. Aquino nunca sabe se um enredo terá final feliz ou não até ser atingido por ele. É um jeito objetivo do autor, modestamente, falar do seu método de trabalho. “Não há nada melhor para acabar com a vaidade de um escritor do que visitar um sebo e constatar quantos colegas consagrados jazem nas prateleiras empoeiradas”, diz. Para acalmar os egos, aconselha Marçal Aquino, também é bom sentar-se diante da tela em branco do computador e cavoucar idéias para compor uma história. “Escritor alimenta mais polêmica do que escreve. Parece óbvio, mas em literatura é preciso escrever mais e dar menos opinião nos jornais.” Nem que para conseguir uma boa idéia o autor precise seguir pessoas na rua.