Quando a ciência descobriu com mais precisão o poder das células-
tronco – capazes de adquirir características de células de diversos tipos de tecidos –, há poucos anos, muita gente comemorou o avanço. Abria-se uma enorme janela de possibilidades de tratamento. Como peças novas em folha, elas poderiam substituir células danificadas e, assim, restituir a função de órgãos doentes. Hoje se sabe que elas vieram para mudar muita coisa na forma de cuidar do corpo. No mundo, há pesquisas para tratar de males cardíacos a acidentes vasculares cerebrais (AVC) usando essas células.

E o mais impressionante é a rapidez com que os estudos progridem.
No Brasil, as primeiras pesquisas em animais foram feitas em 2000.
De lá para cá, já existem, inclusive, pacientes beneficiados. Outro dado ilustra bem a importância que a área está ganhando. A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, órgão do Conselho Nacional de Saúde que avalia
e aprova pesquisas em humanos, recebeu até agora 20 pedidos de autorização para estudo com células-tronco. Desses, 12 estão em andamento. “As células-tronco trouxeram uma nova forma de pensar.
Elas não são uma solução mágica, mas representam uma ótima ferramenta terapêutica”, garante José Eduardo Kriger, do Instituto
do Coração (InCor), em São Paulo.

A célula-tronco é uma espécie de curinga. Sua principal característica
é não ser especializada. Ou seja, é como se fosse uma peça virgem,
sem uso, que, colocada no órgão a ser restaurado, passa a funcionar como uma de suas células. Elas são encontradas em três fontes: no embrião, na medula óssea e no cordão umbilical. Por enquanto, porém, imagina-se que somente as células embrionárias possuam maior versatilidade. As outras teriam capacidade de adaptação mais limitada. As retiradas da medula óssea, por exemplo, não são capazes de se especializar em qualquer célula, ao contrário das embrionárias. Mas
elas conseguem se transformar em células musculares, nervosas e
nas que compõem os vasos sanguíneos.

Uma das mais promissoras aplicações das células extraídas da medula óssea é no tratamento das doenças auto-imunes, caracterizadas pelo ataque do sistema de defesa do corpo contra o próprio organismo.
Elas têm mostrado capacidade de renovar as atividades do sistema imunológico. “É como se ele fosse reprogramado”, explica Júlio Voltareli, do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (SP). O serviço tem 17 pacientes transplantados com a nova técnica. Entre eles, estão doentes tratados de lúpus e esclerose múltipla. O Hospital Albert Einstein, em São Paulo, também obteve sucesso em cirurgias desse tipo.

O processo é delicado. O paciente recebe drogas que estimulam a produção de células-tronco e sua migração para a corrente sanguínea. Uma dose de sangue é retirada e filtrada para que elas sejam separadas das demais. Em seguida, o doente é submetido a uma estratégia para baixar as atividades do sistema imunológico a zero. As células-tronco são injetadas, se alojam na medula e assumem a função do órgão, entre elas a de fabricar as células de defesa. O resultado é que a medula passa a produzir “soldados” novos e, desta vez, competentes. “Em 70% dos pacientes não há retorno dos sintomas”, comenta Voltareli.

Na área cardíaca, as pesquisas também estão avançadas. O Hospital Pró-Cardíaco, no Rio de Janeiro, é um dos pioneiros no mundo em testes para tratamento da insuficiência cardíaca. Já são 14 pacientes tratados
e a instituição prepara um protocolo para ampliar o estudo. “A primeira fase provou que as células não oferecem risco. A segunda mostrará em grande escala que a técnica funciona”, diz Hans Dohmann, diretor científico dos estudos. O trabalho está sendo feito em parceria com Emerson Perin, médico brasileiro do Texas Heart Institute (EUA), e com
a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Retiramos sangue da medula e separamos as células-tronco para injetá-las nas regiões doentes do coração”, diz Perin.

Os pesquisadores têm evidências de que a técnica é eficiente. “Antes do implante, a capacidade física dos pacientes era menor e eles sentiam muita dor. Depois, o quadro foi revertido”, conta Dohmann. Os voluntários estavam na fila para o transplante de coração e com curta expectativa de vida. Muitos levam uma vida normal. O que se sabe até agora é que as células servem de matéria-prima para a criação de vasos sanguíneos e fortalecem o músculo cardíaco. Em Salvador, a Fiocruz e o Hospital Santa Izabel investigam a possibilidade de as células-tronco amenizarem os efeitos devastadores da doença de Chagas, uma das causas da insuficiência cardíaca. No InCor, as células foram usadas como complemento de implantação de ponte de safena. Os doentes fizeram a cirurgia convencional e receberam aplicação de células-tronco nas áreas lesadas. “Nosso objetivo é avaliar se elas fazem mal. Até agora, um ano depois da cirurgia, não notamos efeitos adversos”, diz Kriger.

As pesquisas para tratamento de AVC com células-tronco também apontam caminhos animadores. Um estudo da professora Rosália Otero, da UFRJ, feito em ratos, mostrou que elas podem ajudar a diminuir as sequelas causadas pelos acidentes. “Elas contribuem para a criação de vasos sanguíneos que irrigam as regiões atingidas. Sem isso, essas áreas não receberiam sangue, deixando de funcionar”, explica. “A meta é aplicarmos as células nas regiões afetadas assim que o doente chegue ao hospital”, completa. No Instituto de Química da Universidade de São Paulo, o foco das experiências é a diabete. “Nosso desafio é saber se as células são capazes de se transformar em células das ilhotas pancreáticas, que produzem a insulina. Dessa forma, seria possível ao indivíduo produzir o hormônio”, diz Maricleide Sogatar, coordenadora do trabalho, que conta com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

 

Perto da cura

Há dois anos, a bióloga paulista Carmem Guerra, 38 anos, se submeteu a um implante de célula-tronco contra a esclerose múltipla. “Tinha crises recorrentes e estava cada vez mais comprometida pela doença. Topei na hora a proposta de fazer o transplante. Minha recuperação foi ótima. Os médicos não falam em cura, mas me sinto curada. Estou sem andar, porém, perto do que poderia ter acontecido, isso é o de menos.”

 

Vitalidade de volta

O aposentado carioca José Carlos Rosa, 55 anos, fez um implante de célula-tronco há um ano para tratar a insuficiência cardíaca. “Antes eu não conseguia caminhar nem tomar banho direito. Estava na fila do transplante e os médicos diziam que era minha única chance. Com as células-tronco, em uma semana já me sentia melhor e hoje estou novo.”

 

Obstáculos no caminho

As pesquisas com células-tronco no Brasil esbarram em dois obstáculos. O primeiro é a proibição do uso de células de embriões. O segundo é que não há um banco público de cordão umbilical. Muitos pesquisadores têm lutado para que as autoridades aprovem o uso de embriões descartados pelas clínicas de medicina reprodutiva. A cientista Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, lidera o Movimento em Prol da Vida e pela liberação das células embrionárias para fins terapêuticos. “Usar esses embriões não significa interromper uma vida. Estamos falando de células que serão jogadas fora”, afirma. O banco público de cordão umbilical não tem dilema ético. O problema é financeiro. Muitos hospitais têm estrutura para integrar uma rede, mas falta quem a financie. “Se o banco de cordão atendesse apenas as pessoas com leucemia, já seria maravilhoso”, garante Nelson Hamerschlak, superintendente do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Albert Einstein. A instituição procura financiadores para um projeto nacional.