Na madrugada da quarta-feira 6, quando a Câmara dos Deputados reformou a Previdência dos funcionários públicos, nascia um novo partido político – o PT. Formalmente, é o mesmo Partido dos Trabalhadores, fundado há 23 anos no ABC paulista por sindicalistas combativos e barbudos – entre eles o presidente Lula –, comunistas desgarrados e intelectuais engajados. Mas agora o novo PT tirou o macacão, optou por bases que transbordam o proletariado, rompeu de vez com a base histórica dos servidores públicos e deixou para a história as teses e ideologias de orientação socialista defendidas no passado. O sonho dos dirigentes é transformar o partido numa organização de massas, admitindo nos seus quadros empresários, também considerados trabalhadores no conceito elástico recém-adotado pela direção do partido da estrela vermelha.

Ao nascer, o PT era um imenso guarda-chuva socialista que aceitava abrigar simpatizantes da social-democracia. Mas o partido se dividiu em grupos conhecidos como tendências que, ao longo do tempo, se subdividiam, se fundiam ou desapareciam. No início deste ano o PT registrava pelo menos 11 tendências definidas. Na semana passada, este leque estava concentrado em cinco grandes tendências – Campo Majoritário, Movimento PT, Articulação de Esquerda, Democracia Socialista e Força Socialista – que representavam 95% do poder de voto na direção do partido. Esta concentração vai se acentuar ainda mais. “Começou o fim do partido das tendências”, prevê o deputado Paulo Delgado (PT-MG), que é da tendência Articulação. “O PT ainda é um partido de tendências, que precisa migrar para um partido de massas”, reforça Paulo Bernardo (PR), membro da tendência Unidade na Luta, fundida na corrente Movimento PT.

A votação das reformas colocou em xeque esse modelo. A DS, da senadora Heloísa Helena (AL), por exemplo, que já está alinhada com o ministro da Reforma Agrária, Miguel Rosseto, permitirá a expulsão de um dos seus membros em favor da unidade do governo ou, ao contrário, vai abrir mão de seu papel de corrente orgânica do Palácio? Um novo PT surgirá ainda este ano após a reunião do Diretório Nacional, em novembro, quando será confirmada a expulsão dos deputados João Babá (PA), Luciana Genro (RS) e João Fontes (SE) e de Heloísa Helena, que fazem campanha aberta contra as reformas. A bancada na Câmara encolherá de 93 para 90 deputados. Mesmo assim, continuará sendo a maior. No Senado, perderá o voto da senadora alagoana, há meses não contabilizado. Mas a cúpula do partido não está preocupada com estas defecções. “Estes parlamentares não se elegem fora do PT. Eles usam a grife do partido para nos atacar e trabalham contra o governo no Parlamento”, reclama Genoíno.

Com temas tão polêmicos e um racha tão profundo entre os petistas, o governo Lula descobriu que não tem votos suficientes no Parlamento para aprovar reformas. Terá que contar com a ajuda do PSDB, do PFL e do PP. Foi o que aconteceu na votação da reforma da Previdência, na semana passada, quando o projeto foi aprovado com 126 votos da oposição. O apoio veio depois da pressão de governadores. Metade dos parlamentares do PFL apoiou o projeto do Planalto depois que o governador Paulo Souto, da Bahia, telefonou defendendo a aprovação. Souto garantiu todos os votos dos pefelistas do Estado. Só não conseguiu demover o líder do PFL, José Carlos Aleluia.

O mesmo aconteceu com a bancada tucana, rachada ao meio. Parte dos tucanos votou a favor depois dos apelos do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, na madrugada de quinta-feira. A bancada do PMDB, que ainda não recebeu cargos depois que aderiu ao governo, criou dificuldades. O presidente do partido, deputado Michel Temer (SP), tentou adiar a votação da reforma. Ele queria forçar o governo a nomear o amigo João Henrique, ex-ministro dos Transportes no governo FHC, para a direção dos Correios. Mas o líder Eunício Guimarães (CE) evitou a manobra e conseguiu apoio de quase 70% da bancada. “Eu avisei ao presidente Lula que o PMDB não fará mais chantagem”, contou Eunício.

No dia seguinte, os deputados passaram a votar as emendas e a taxação de inativos. A pedido do ministro da Casa Civil, José Dirceu, naquela noite a senadora Roseana Sarney (PFL-MA) interrompeu um jantar com o ministro da Cultura, Gilberto Gil, e foi ao Congresso, já de madrugada, para fechar um acordo que livrasse do desgaste deputados pefelistas favoráveis à reforma. Na noite tensa no Congresso, que incluiu até apitaço de deputados contrários à reforma, Dirceu conseguiu despertar o octogenário deputado Miguel Arraes (PSB-PE), que reapareceu de madrugada e garantiu mais um voto.

A tensão no Congresso aumentou na quarta-feira 6 quando os deputados se preparavam para votar as emendas ao texto principal. Milhares de manifestantes contrários à reforma fizeram passeata na Esplanada dos Ministérios, tentaram invadir o Congresso e quebraram as vidraças da entrada principal. Entre os manifestantes estavam parlamentares do PT contrários à reforma, como Heloísa Helena, que já avisou: vai votar contra quando chegar a vez do Senado. “A aliança foi feita porque a reforma é ruim. O PFL e o PSDB votaram com o PT porque acertaram as mudanças que eles queriam e não conseguiram aprovar antes”, criticou a senadora.

Na quarta-feira, o grupo rebelde dos oito deputados que se absteve
na primeira votação recuou e votou a favor da taxação dos inativos. “Compreendo a necessidade do governo, mas poderia fazer isto sem atrito”, ponderou o deputado Walter Pinheiro (PT-BA), um dos oito dissidentes. A deputada Luciana Genro (RS) avisou: “Votarei contra
o governo toda vez que ele tentar atacar o direito dos trabalhadores.” Com a expulsão decidida, os três rebeldes já começam a pensar em
novo partido. Luciana articula com o pessoal da Consulta Popular,
ligado ao MST, e Babá namora os antigos companheiros da Convergência Socialista agrupados no PSTU. “No futuro poderemos criar uma nova legenda, juntando num só partido a esquerda que não dobrou a
espinha”, sonha Babá.

Melhora o humor – O alívio do governo só veio no raiar da quinta-feira, com a reforma aprovada. Foi a senha para o mercado financeiro melhorar o humor. Depois de dois dias tensos, com elevação na cotação do dólar e queda na movimentação das Bolsas de Valores, viu cair o risco Brasil, o dólar se estabilizar e os índices da Bovespa dispararem 3,42%, a segunda maior alta do ano. Na sexta-feira 8, o Banco Central anunciou a diminuição dos compulsórios dos bancos de 60% para 45%. Isso significa mais R$ 8 bilhões na economia.

A depuração política do PT não acabará com a votação da reforma da Previdência. Será aprofundada quando chegarem ao Congresso outros três projetos de reformas: a tributária, a trabalhista e a da estrutura sindical. Os mesmos deputados e senadores que estão contra a reforma da Previdência já avisaram que não querem a flexibilização dos direitos trabalhistas nem o enfraquecimento dos sindicatos. “Há uma contradição muito forte. Não podemos destruir o que foi conquistado com a nossa militância”, argumenta o deputado Ivan Valente (SP), outro dissidente.

Uma nova crise está na agenda do PT. O partido vai definir em 2004 se entra ou não na Internacional Socialista, organização de 141 partidos de esquerda de vários países. “A adesão à Internacional reforçará a alternativa parlamentarista. Com isso, vamos diminuir a taxa de bobagem batizada de esquerdismo”, cutuca o secretário de Relações Internacionais do PT, deputado Paulo Delgado (MG), que organiza o 22º Congresso da Internacional Socialista em outubro, em São Paulo.

A transformação do PT começou em 1995 com a primeira política de alianças. Nas eleições de 2000 a estratégia se ampliou e afastou ainda mais as correntes esquerdistas da cúpula. Há três anos a direção do partido derrotou a proposta para que o PT liderasse uma campanha pela saída do então presidente – o “Fora FHC”. No ano passado a campanha contra a participação do Brasil na Aliança de Livre Comércio das Américas (Alca), defendida pelos militantes ligados ao MST, também foi rechaçada. Depois de três tentativas para eleger Lula, o PT ampliou ainda mais esta política de alianças e chegou ao Planalto.

O partido já é o segundo maior do País, atrás apenas do PMDB. Tem
300 mil filiados, diretórios organizados em quase cinco mil cidades, elegeu 188 prefeitos e 2.400 vereadores, além de ocupar 14% das cadeiras nas Assembléias Legislativas. Tem quatro governadores. Ocupa a terceira bancada no Senado e tem o maior número de deputados federais. Para um novo partido, já é um bom começo.

 

À francesa

O balbúrdia brasileira em torno das mudanças na Previdência é fichinha perto do que a França assistiu no dia 24 de julho, quando o Parlamento aprovou a reforma de lá, com 393 votos a favor e 152 contra. Os funcionários públicos contrários às modificações pararam o país. As greves atingiram a telefonia, os transportes, os hospitais públicos e até empresas privadas. Cerca de 80% dos vôos foram cancelados dentro do país. A medida apresentada pelo primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin estabelece que o tempo de contribuição do funcionalismo passa de 37,5 para 40 anos, como já vigorava no setor privado. A aposentadoria integral do servidor francês é igual a 75% do salário recebido nos últimos seis meses de trabalho, o que também vale para os juízes. O período de contribuição será aumentado em doses homeopáticas até 2008. “A reforma não representa a vitória de ninguém e espero que não deixe cicatrizes”, disse o premiê Raffarin.

A proposta inicial causou polêmica e sofreu nada menos que dez mil emendas. Diferentemente do Brasil, o governo francês não tem dívidas com a Previdência e reformou o sistema por medida de prevenção.

Os dois principais jornais econômicos do país, La Tribune e Les Echos, repercutiram a reforma brasileira. Na quinta-feira 7, publicaram em primeira página que Lula teve que contar com a oposição para aprovar o texto. O Les Echos afirmou que, por aqui, a medida veio para “limitar o déficit das finanças públicas” e que o Brasil está tentando “melhorar sua imagem diante dos investidores internacionais”.

Kátia Mello

 

A nova previdência

APOSENTADORIA
Fim da aposentadoria integral para os futuros servidores, que
passarão a ganhar, no máximo, R$ 2.400. Se o servidor quiser uma aposentadoria maior, terá que pagar um fundo de pensão público, fechado e de contribuição definida, a ser criado por lei. Os atuais funcionários podem se aposentar com o mesmo salário da ativa, desde que tenham 55 anos de idade e 30 de serviço, para mulheres, e 60 anos de vida e 35 de serviço, para homens, além de permanecer 20 anos na carreira e dez anos no último cargo.

REGRA DE TRANSIÇÃO
Quem quiser se aposentar antes de cumprir todas as novas regras receberá a aposentadoria calculada pela média salarial desde 1994, com redutor de 5% para cada ano antecipado.

PARIDADE Os servidores aposentados terão reajustes salariais no mesmo porcentual e data dos funcionários da ativa.

PENSÕES
Mantida a integralidade das atuais pensões. As futuras serão pagas integralmente até o teto de R$ 2.400. A parte que exceder este valor sofrerá uma redução de 50% .

TAXAÇÃO DOS INATIVOS
Os atuais aposentados passarão a pagar 11% para a Previdência sobre o valor que exceder R$ 1.200 do benefício. Quem ganha até este limite não contribuirá com nada.

LIMITE PARA NOVAS APOSENTADORIAS
Nenhum servidor admitido depois que as mudanças estiverem em vigor receberá aposentadoria acima de R$ 2.400.

TETO SALARIAL DO JUDICIÁRIO
Juízes e desembargadores estaduais da ativa não poderão ganhar mais que 92,5% do que recebe um ministro do Supremo Tribunal Federal, incluindo no cálculo todas as vantagens e gratificações.

TETO SALARIAL NO SERVIÇO PÚBLICO
Nenhum servidor público de qualquer poder, da ativa ou já aposentado, poderá receber mais que R$ 17.170, maior salário de ministro do Supremo Tribunal Federal.

ABONO
O servidor que cumprir todas as exigências para a aposentadoria e quiser continuar trabalhando deixará de pagar os 11% para a Previdência, funcionando como um abono.

EXCLUíDOS DO INSS
Lei ordinária a ser apresentada pelo governo criará sistema especial
de aposentadoria para os trabalhadores de baixa renda que não têm carteira assinada. Quem já tem idade para aposentadoria – 60 anos – terá direito a um salário mínimo mensal, mesmo que nunca tenha contribuído para o INSS.
 

 

O fim do macacão

O presidente do PT, o ex-guerrilheiro José Genoíno, trava uma guerra diária dentro do seu próprio partido defendendo com ardor a política de alianças que elegeu o presidente Lula e as reformas da Previdência e tributária. Tudo o que parlamentares e militantes da esquerda petista não querem. Na nova sede da legenda em Brasília, incrustada num luxuoso prédio ao lado de escritórios de grandes empresas como IBM e Telemig, Genoíno comemorava, na semana passada, a vitória na batalha da reforma da Previdência e anunciava o nascimento de um novo PT.

ISTOÉ – As tendências do PT vão acabar?
José Genoíno –
O papel das tendências tem diminuído. Isso é bom. O direito de crítica e de opinião é salutar, o PT nasceu com este DNA. Mas começamos a assumir a esfera de partido, que é a unidade de ação com pluralidade de opinião, agora com a responsabilidade de governar. O partido que governa tem que ter relações mais amplas, não só de tendências. O PT sempre teve o direito de tendência, que não existe nos partidos de esquerda.

ISTOÉ – Por que o sr. diz que o esquerdismo não tem futuro?
Genoíno –
Para governar uma cidade, um Estado, um país, um partido de visão tem que ultrapassar o esquerdismo. Temos que ter uma esquerda de mudança, que preserve os valores e o espaço político. Esquerdismo é a posição que prega a ruptura, a aventura do tudo ou nada. Estas experiências foram derrotadas.

ISTOÉ – O PT está se reorganizando internamente?
Genoíno –
O PT está buscando uma nova coalizão no quadro partidário, sendo governo e preservando a autonomia, sem virar oposição, enquanto faz o seu aggiornamento, a sua atualização sem exclusões. Para o PT é muito ruim que haja ruptura nas correntes de esquerda e nasça um novo partido com alguma força à esquerda.

ISTOÉ – Isso não pode acontecer com a expulsão dos deputados Babá, Luciana Genro e João Fontes?
Genoíno –
Os três dissidentes não possuem base social ou política, nunca tiveram peso na história do PT. Trabalham numa posição individualista, na base da aventura, na mera agitação. Sem a legenda do PT, eles não se reelegem. As correntes de esquerda têm que ter responsabilidade neste projeto.

ISTOÉ – O servidor, que se sente traído pelo PT, vai para onde?
Genoíno –
Eles vão continuar incrustados nas entidades sindicais.
Eles não têm um projeto de partido. O programa deles é a categoria.
O partido defende interesses, mas não pode ser um partido
de interesses, que defende uma categoria ou um setor. Hoje
eles aplaudem o PFL, porque não têm ideologia. Corporativismo
não tem ideologia.

ISTOÉ – A estrela do PT cresce, mas está ficando
menos vermelha…
Genoíno –
A estrela do PT continua rubra e o vermelho não
pode ser símbolo de dogmatismo ou sectarismo. Ser de esquerda
não é defender o corporativismo.

ISTOÉ – Quais os pensadores que fazem a cabeça dos dirigentes do PT hoje?
Genoíno –
Não temos. O PT, teoricamente, é pluralista pra valer. Tem Marx, tem Gramsci, os marxistas modernos, os pós-marxistas, e há teóricos sem vinculação. Não temos referência teórica e isso é ótimo porque atualmente, com essa crise de paradigmas, é muito ruim ter uma espécie de tutor. Hoje temos que contar com várias teorias, com várias reflexões, para elaborar um projeto próprio para a realidade brasileira. Não há no mundo nada semelhante ao PT. Nenhum partido de esquerda nasceu com a pluralidade do PT. Temos várias matrizes: do trotskismo ao marxismo-leninismo, da Igreja ao movimento social.

ISTOÉ – O PT mudou à medida que ganhou poder?
Genoíno –
O PT nasceu como partido-macacão. Não esqueça
que o slogan de nossa primeira campanha era “um, dois, três,
o resto é burguês”. Hoje saiu o macacão e entrou o cidadão,
somos o partido da cidadania.

ISTOÉ – O PT não trocou o macacão pelo terno e gravata?
Genoíno –
Não temos nenhum preconceito. É até bom que haja militantes do PT que sejam empresários e executivos.

ISTOÉ – Mas o PT pode ser ao mesmo tempo o partido dos trabalhadores e dos empresários?
Genoíno –
Nem é dos empresários nem é só dos trabalhadores. O conceito de trabalhador é amplo, não é classista.

Leonel Rocha e Luiz Cláudio Cunha