Autora de livros de conteúdo mais denso, como Orlando e As ondas, a escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941) sempre lamentou que seu enredo mais reconhecido pelo grande público fosse este Flush, memórias de um cão (L&PM, 152 págs.,
R$ 26), publicado em 1931, que agora sai em edição inédita no Brasil. Não por acreditar que se tratasse de uma obra ruim. Mas por ter sido inicialmente inspirado numa brincadeira entre amigas, uma homenagem despretensiosa ao doce cão da escritora Elizabeth Barrett. De qualquer maneira, Flush
foi seu livro mais vendido e o mais difundido pelos salões de bem da sociedade inglesa da virada do século XIX. Até hoje é uma leitura comovente, mesmo para quem nunca se aventurou nos difíceis e intrincados meandros da complexa obra de Virginia Woolf.

Flush é um cocker spaniel de pura linhagem e beleza irretocável, ciente
o tempo todo de sua nobre origem e seu diferencial aristocrático. Suas memórias começam no momento em que ele, filhote paparicado numa casa de campo, é dado de presente a Elizabeth Barrett. Praticamente presa a uma cama por causa da saúde fraca, a escritora estabelece
uma relação simbiótica com o cãozinho, que se submete à disciplina de uma vida reclusa, como sua dona. Nesta fase, o relacionamento com o mundo se dá através dos sons e cheiros de uma casa vitoriana onde o silêncio oprime e o mundo lá fora é uma permanente ameaça dos miseráveis aos bem-nascidos. Mas, aos poucos, o amor intervém até levar a escritora – com Flush ao colo – a fugir para casar-se com o já célebre poeta inglês Robert Browning.

A partir daí, a vida muda para Flush, como muda para os demais personagens em torno da pequena família estabelecida. Antes sufocante, a rotina se transforma em puro hino à liberdade, que Virginia Woolf traduz como um verdadeiro grito de alegria – motivo mais provável do enorme sucesso alcançado pelo livro. É uma história deliciosa que impele o leitor a acariciar o cãozinho mais próximo da sua poltrona.