Raramente surge nas telas um filme brasileiro tão provocativo como Amarelo manga, que estréia no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Recife na sexta-feira 15, depois de causar polêmica e abocanhar os prêmios mais importantes nos festivais de Brasília e do Ceará. Recheado de imagens fortes e temperado de crueza, poesia e pitadas de vulgaridade udigrudi, o primeiro longa-metragem do pernambucano Cláudio Assis, 43 anos, é daquelas obras que dividem a platéia. De um lado – e espera-se que seja maioria –, haverá gente aplaudindo suas ousadias, como dar voz a um padre desencantado e de humor afiado para quem o “ser humano é estômago e sexo”. De outro, não faltarão os que sentirão desconforto ao ver uma mulher gorda e asmática usar seu inalador para proporcionar fugazes momentos de prazer. “Não quero chocar ninguém, mas nunca vou fazer filminhos para agradar”, fuzila Assis, que concentrou a ação de Amarelo manga, passada num tórrido dia de sol entre um hotel de quinta categoria, um matadouro, um boteco de esquina e algumas ruas sujas do Recife.

Por estes locais sórdidos transitam um açougueiro adúltero, sua mulher evangélica, um cozinheiro homossexual, um traficante necrófilo e um bando de índios emudecidos, entre outros tipos que formigam por qualquer grande cidade brasileira. Dito desta forma, pode parecer que se trata de mais um exemplar da recente safra nacional, na qual a miséria virou pano de fundo. O vibrante Amarelo manga passa ao largo desta tendência. Com roteiro de Hilton Lacerda, o filme entrelaça com inteligência o documentário e a ficção, acompanhando um dia na vida de algumas pessoas da parte mais pobre do Recife. Seus belos planos-sequência e câmeras altas não estão lá para enfeitar. Significam. E, embora suas lentes saltem de um personagem para outro com agilidade, chegam tão perto dos seus sonhos e decepções que se avizinham daquele momento privilegiado no qual o mais secreto se revela. Tudo somado, a sensação é a de que a própria cidade, aos poucos, se mostra na história entrecruzada de seus anônimos habitantes.

Matheus Nachtergaele, num de seus melhores papéis até hoje, encarna o homossexual Dunga, espécie de faz-tudo do decadente Hotel Texas, local por onde passa a maioria dos personagens. Entre eles, Wellington (Chico Diaz), açougueiro que Dunga tenta seduzir com muita malícia e segredos de umbanda. Na parte oposta da cidade, Lígia (Leona Cavalli) cuida do Bar Avenida, reduto de desocupados mais interessados nos seus atributos que na cerveja gelada. Caso de Isaac (Jonas Bloch), traficante habituado a trocar maconha por cadáveres frescos do IML, usados mais tarde num bizarro tiro ao alvo. É da boca de Lígia que sai outro mote da história: “Só se ama errado na vida.” E nesse quesito, todos se dão mal em Amarelo manga, legítima tragicomédia de perdedores na melhor tradição suburbana de Nelson Rodrigues e Plínio Marcos. “Quis fazer um filme sobre o amor”, conta Assis. “Só que o amor é muito cruel.”

Amarelo – diz um poema do ensaísta pernambucano Renato Carneiro Campos, lido no filme – é a cor das verminoses, das hepatites, dos dentes apodrecidos. É também a cor do sexo de Lígia e do velho Mercedes-Benz de Isaac, avançando pelas pontes da cidade esplendidamente enquadradas em cinemascope pelo fotógrafo Walter Carvalho. Mas é, principalmente, a cor do desejo que move todos, de alto a baixo, em busca de algo que complete suas “meias-vidinhas”. Desejo, aliás, é o que não falta a Cláudio Assis, que levou seis anos para realizar a sonhada obra com a milagrosa soma de R$ 550 mil. “Se precisar, fico mais dez anos para realizar o próximo”, afirma o diretor, que durante o governo Fernando Henrique Cardoso teve verbas recusadas por estatais devido ao conteúdo polêmico do roteiro. “Os Correios me mandaram duas cartas prometendo R$ 100 mil, depois ligaram dizendo que não queriam vincular a imagem da empresa a esse tipo de enredo.”

Além de criticar a política oficial de captação de recursos, Assis não poupa os colegas do Rio de Janeiro e São Paulo, que resolvem “fazer turismo” no Nordeste, sempre visto como paradigma da pobreza nacional. “Não faço cinema de culpa. Não uso a câmera para compreender essa ou aquela região do País. Esse pessoal filma a miséria para fazer psicanálise, ficam pintando porcelana para poder ser bonitinho e bacana. Não uso esmalte nas unhas. Meu cinema é olho no olho”, vocifera o cineasta, conhecido por não ter papas na língua. Sua intransigência foi levada ao pé da letra até na confecção do cartaz, que, em vez de estampar o popular Matheus Nachtergaele ou a bela Leona Cavalli, mostra no claro-escuro o primeiro plano de um púbis. “Antes de começar as filmagens, reuni toda a equipe num teatro e disse que não iria fazer concessão alguma nem a nada nem a ninguém. Falei que iríamos fazer o filme com toda a vontade e quem não acreditasse poderia sair fora.” Os que puseram fé não se arrependeram.