Não foram apenas as torres gêmeas do World Trade Center que desabaram após os atentados de 11 de setembro de 2001. Com elas ruiu um dos pilares da democracia, a privacidade. As armas tecnológicas que antes faziam parte do corolário de agentes secretos se voltaram contra a liberdade individual. Um projeto que tramita desde o início do ano passado no Congresso americano promete ampliar a rede de espionagem eletrônica. Chamado Sistema de Informações contra o Terrorismo (TIA, na sigla em inglês), ele permitiria o acesso à base de dados de empresas sempre que houvesse necessidade de saber mais sobre turistas, estudantes ou imigrantes. As fronteiras da vida privada parecem encolher a cada dia com a invasão dos computadores, telefones celulares e câmeras de vigilância. Em troca de facilidades de pagamento pelo cartão bancário em restaurantes, hotéis, supermercados ou pedágios, o cidadão deixa gravados seus rastros e preferências pelos hábitos de consumo. Como essas companhias operam em escala mundial, sua capacidade de perscrutar chega a um nível de detalhe que inclui a frequência com que as pessoas viajam, se gostam de chocolates ou de uísque, e até se levam uma vida sexual apimentada. Além, é claro, de dados banais como endereço, telefone, estado civil e saldo bancário.

Pesquisadores do governo americano já trabalham em câmeras inteligentes capazes de identificar rostos e, pasme, avaliar se as
pessoas estão alegres, tristes ou nervosas. O sistema funcionaria
como o das cancelas de pedágio que liberam o acesso ao reconhecer veículos com permissão de avançar. Turistas também seriam identificados. O presidente George W. Bush determinou que até 2006 todos os passaportes sejam digitais, trazendo embutido um chip com informações como foto e impressão digital. Quando o viajante passar pela imigração, seus dados ficarão armazenados para que seu rosto
seja reconhecido pelas lentes das milhares de câmeras espalhadas
pelo país. A Comunidade Européia já iniciou a substituição dos passaportes antigos e outros 28 países vão seguir o exemplo.
Para fechar o cerco ainda mais, os Estados Unidos exigem
vistos até para quem está de passagem pelo país.

A atual rede de monitoramento deixaria boquiaberto o inglês George Orwell, que em seu livro 1984 profetizou o poder de repressão numa sociedade vigiada. A frase “sorria, você está sendo filmado” soaria como aberração em 1949, quando foi escrito o romance sobre o Big Brother, o personagem que tudo vê. Hoje, ela foi incorporada ao cotidiano das pessoas. Entre os descontentes, a gritaria maior veio da Europa, que criou um grupo de proteção de dados pessoais para acompanhar as idas e vindas do novo projeto do governo americano para ampliar a vigília eletrônica. Mais da metade dos americanos o consideram uma ameaça à intimidade e o Senado dos EUA bloqueou a verba de US$ 54 milhões para o TIA. No centro da polêmica, está o autor da idéia, o ex-almirante John Poindexter, que nos anos 80 foi pivô do esquema de financiamento de armas aos guerrilheiros anti-sandinistas da Nicarágua, no escândalo conhecido como Irã-Contras. Nos bastidores, já corre a notícia de que ele será exonerado do cargo.

Na prática, esse projeto nem sequer precisa de aprovação. Hoje já se vasculha a vida de turistas antes de eles colocarem os pés na terra do Tio Sam. Pelas regras do Ministério da Segurança dos Transportes, as companhias aéreas têm de enviar um relatório completo dos passageiros a cada vôo que decola dos aeroportos brasileiros. Segundo a Associação Internacional de Educadores, nem mesmo estudantes de intercâmbio escapam da devassa. O governo Bush costuma ainda comprar informações de empresas como a ChoicePoint, que consegue dados de pessoas e empresas de qualquer país do mundo.

Saddam e chiclete – A forma de se obter informações sigilosas e estratégicas melhorou muito nas últimas três décadas. Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia fazem questão de negar a existência de uma complexa rede de computadores, satélites, radares e antenas parabólicas capazes de interceptar qualquer chamada telefônica, sinais de rádio, fax e tevê do mundo. Apelidado de Echelon, o sistema funciona como um site de busca que procura palavras-chave como Saddam Hussein ou Jihad. Um outro espião eletrônico já funciona a todo vapor e tem o singelo nome de Carnívoro. Sua função é vasculhar a internet à procura de e-mails suspeitos.

Digna de filmes policiais, essa parafernália ganha força em muitos países. Em Cingapura, existe uma câmera a cada 100 metros para flagrar quem joga bituca de cigarro ou chicletes na rua. As autoridades proíbem mascar a goma por ela ser difícil de remover do asfalto. Na Venezuela, o presidente Hugo Chávez contratou os serviços de uma empresa de segurança de internet para interceptar e-mails trocados por seus rivais. Na Argentina, o governo passou a usar imagens de satélite para evitar a evasão fiscal dos agricultores. Descobriu que os produtores de grãos e sementes deixavam de pagar US$ 400 milhões ao ano em impostos.

No Brasil, há patrulhamento em todas as esferas. O principal exemplo é o do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que usa imagens de satélite para conferir se a área declarada nas escrituras das propriedades está de acordo com o imposto pago. “Vários fazendeiros incorporaram terras vizinhas abandonadas a suas posses e não recolheram um centavo”, diz Petrus Emile, diretor-executivo do Incra. Isso nem de longe se compara ao raio X que os satélites fazem das terras improdutivas que poderiam, em tese, ser desapropriadas para a reforma agrária. Só no Paraná, diz Emile, haveria terra suficiente para assentar todas as famílias sem terra em conflito na região. Alguns satélites também enxergam o uso da terra, se as famílias assentadas exageram no desmatamento ou nas queimadas.

Contrabando – Para melhorar a fiscalização da Amazônia, entrou em operação no ano passado o sistema de vigilância Sivam, uma rede de radares e unidades de monitoramento que cobre uma área de cinco milhões de quilômetros quadrados. Suas informações servem para garantir o controle das fronteiras secas e do litoral, conter o tráfico e o contrabando, assim como localizar focos de tensão
e de guerrilheiros. “A outra alternativa
seria dispor de uma logística monumental
e contar com um número impensável
de homens”, defende Ricardo Chilelli, da RCI First Consultoria
de Segurança Internacional.

Governadores e prefeitos também se valem dos satélites para recalcular o imposto predial com base na expansão da área construída. Algumas cidades usam sistemas de vigilância por câmeras para diminuir casos de roubos de veículos e cargas. As vendas de câmeras – R$ 2 bilhões em 2002 – são um termômetro dessa efervescência. Cerca de 200 mil residências brasileiras têm alguma forma de vigília a distância. Incentivos não faltam. As seguradoras oferecem até um terço de desconto nas apólices para quem instalar rastreadores por satélite em seus veículos. E o ministro das Cidades, Olívio Dutra, chegou a defender que todos os veículos do País deveriam ter esses localizadores.

O transporte de carga sofreu uma mudança radical. Pelo menos 60 mil caminhões cruzam as rodovias nacionais acompanhados em tempo real por satélites. Esse sistema protege cargas como as de mogno, uma das jóias do comércio ilegal. Para ter o controle de sua procedência, o governo federal obrigou as transportadoras a instalar localizadores por satélite nos caminhões que carregam as
toras da mais valiosa madeira nacional. Um desvio de rota ou uma parada fora do plano
é reportada imediatamente.

Duas mil locomotivas e centenas de barcos também estão ligados a centrais de controle que registram cada passo de condutores. A América Latina Logística (ALL), uma das maiores transportadoras de carga do País, monitora a viagem de todos os seus comboios via satélite a partir de Curitiba, no Paraná. As locomotivas têm chips rastreadores e computadores que gravam as manobras do condutor. A cada 20 segundos ele tem de acionar comandos dando sinal de que não dormiu nem parou sem autorização. “Eles sabem de tudo, não podemos ultrapassar a velocidade nem parar em qualquer estação”, diz o maquinista Rodrigo Nogueira.

Demissão – Para as empresas, essa profusão de informações serve
de ferramenta para evitar riscos. Recentemente o banco ABN-Amro encomendou à empresa Imagem fotos de satélites associadas a dados estratégicos, como o tamanho das casas e o poder aquisitivo dos moradores. Queria ainda saber a renda das famílias e sua capacidade
de compra, dados levantados pela velha equipe de pesquisadores de campo. Um dos três maiores bancos privados do País usou a mesma estratégia para redefinir a rota de seus carros-fortes e baixar custos. Sem as imagens do espaço, o banco não podia questionar a transportadora de valores que escolhia o trajeto longo alegando
que o caminho mais curto era perigoso.

Bisbilhotar a vida alheia virou brincadeira: basta ter em mãos um cartão de crédito. Imagens de satélites antes consideradas segredo de Estado hoje são vendidas como livros pela internet e sua qualidade melhora a cada dia. Os brasileiros começam a perceber os efeitos colaterais do Big Brother. Os juristas ainda discutem de quem é a responsabilidade pelos roubos, assaltos e sequestros que acontecem em estacionamentos e shopping centers monitorados por câmeras. Mas é na internet que se percebe com clareza até onde vão os tentáculos da espionagem. Em abril de 2000, o portal Cidade Internet demitiu quatro funcionários que criticaram seu chefe pelo icq, um tipo de correio eletrônico que transmite mensagens em tempo real. “Eles violaram nossas mensagens e as usaram contra nós”, diz Fábio Paulino, um dos demitidos. A empresa de planos de saúde Unimed também vasculhou o e-mail de seu funcionário Augusto Cezar Novaes, que estava às vésperas de uma promoção. Ele foi demitido por justa causa porque repassou aos colegas de departamento uma notícia de jornal sobre investimentos de um portal eletrônico. “Em nenhum momento me alertaram que isso era proibido”, diz Novaes, até hoje desempregado. Não havia em seu contrato nenhuma referência de que ele poderia estar sob vigilância. Por isso, conseguiu na Justiça reaver seus direitos, mas não teve o emprego de volta. Um funcionário da seguradora do HSBC também tentou reaver o antigo posto, apesar de saber que em seu contrato havia uma cláusula que permitia aos seus chefes o monitoramento de seu acesso à internet. Ainda que a legislação brasileira defenda a privacidade, as corporações alegam que o e-mail é de sua propriedade. “Neste caso, desaparece o caráter privado de qualquer mensagem e todo mundo está desprotegido”, diz o advogado Renato Opice Blum. Justamente por essa lacuna legal, a fragilidade dos direitos do cidadão vira regra na sociedade policialesca instaurada pelas lentes do Big Brother, que tudo vê, sem nada poupar.

 

Reflexos do cotidiano

As malhas da grife italiana Benetton já começam a sair de fábrica com microchips que enviam sinais com sua exata localização. Em vez de códigos de barras, as etiquetas inteligentes armazenam informações para rastrear a peça durante toda a sua vida útil. Num futuro próximo, ela vai passar as instruções de lavagem para o chip da máquina de lavar. Muitos alegam que a etiqueta seria uma forma de invadir a privacidade, já que ela facilita a
localização do cliente através de sua roupa.

A nova tecnologia está em teste na Alemanha, onde um supermercado poupa seus clientes da enfadonha tarefa de passar produto a produto pela caixa registradora. Isso porque o chip, do tamanho de uma moeda de R$ 1, carrega uma minúscula antena que transmite os dados sobre determinado produto, por radiofrequência, a detectores distantes até seis metros. A conta chega no final do mês na fatura do cartão de crédito.

A engenhoca pode alertar o computador central da loja quando as prateleiras precisarem de reposição. Grandes telas de vídeo divulgam as liquidações e direcionam os consumidores aos itens em promoção. Por enquanto, o empecilho é o alto custo da tecnologia. Enquanto a etiqueta eletrônica custa US$ 1, o código de barras não passa de uma aplicação de tinta na embalagem. A previsão é que em breve elas terão invadido todos os lugares.

Em Cambridge, na Inglaterra, a etiqueta inteligente provocou alvoroço no supermercado Tesco. Quem pegasse uma lâmina de barbear da Gillette era fotografado por uma câmera do sistema antifurto. Os críticos alegam que os produtos podem ser usados como dispositivos de vigilância, já que eles funcionam fora das lojas. A empresa de transportes urbanos londrina também usa microchips inseridos nos bilhetes para guardar dados dos passageiros e registrar todas as suas viagens. Com isso não é preciso tirar o bilhete da bolsa para passar pela catraca. Em compensação, pode-se localizar um passageiro em qualquer ponto do metrô.

Lia Vasconcelos