05/08/2003 - 10:00
Um laptop plugado na internet, junto ao sofá, e uma quantidade maciça de livros, revistas e jornais espalhados pelo chão e pelas paredes do apartamento de Juca de Oliveira de cara denunciam a voracidade com que o ator paulista, de 68 anos, devora informações. Nem mesmo a esteira ergométrica postada no meio da sala – e muito provavelmente sem uso – é capaz de distrair o visitante daquele aparente caos cultural. Calçando tênis e vestindo um confortável moleton, Juca de Oliveira recebeu ISTOÉ para uma animada conversa. Ele falou de vários temas, mas basicamente desdobrou-se em comentários sobre sua peça A flor do meu bem querer, em cartaz em São Paulo, cujo texto de fina ironia e de tiros no poder tem causado saudável polêmica, principalmente nos meios políticos.
Juca não deixa passar em branco a derrota de José Serra, muito menos histórias pessoais do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ou estocadas no governo Lula. Também é de piada em piada que o senador Zé Otávio, personagem do ator, expõe os mais recentes escândalos da vida política brasileira. Dois deles denunciados por ISTOÉ, como a máfia dos fiscais do Rio de Janeiro e o caso Banestado, envolvendo políticos, assessores-laranja e empresários na evasão de uma bolada de mais de US$ 30 bilhões para paraísos fiscais. Apoiado por um elenco afinadíssimo, o espetáculo é diversão garantida.
Absolutamente. Não tem uma notícia ou informação que esteja na peça que não esteja nos jornais, nas revistas. Seria realmente o cúmulo se através de uma notícia publicada eu sofresse represália. A censura acabou faz tempo. Nosso teatro foi fechado, a gente se exilou, foi uma calamidade. Isso já passou.
Dou o nome que sai na mídia. Em todas as minhas peças, desde Baixa sociedade, há sempre citações. Como se trata de uma comédia de costumes, a realidade está sempre retratada. A comédia tem essa faculdade de apelar para a reflexão, para a inteligência das pessoas. Quando você retrata uma realidade, faz citações que são pontos de referência para que as pessoas se situem no espetáculo com uma interação maior. E sempre citei, aliás não eu. Aristófanes citava, Plauto citava, Molière citava.
Não há uma notícia que tenha sido colocada na peça que não tivesse sido amplamente discutida.
Não tenho a menor idéia. Aliás, não senti nenhuma frieza em momento algum. Eu não sabia que tipo de público estava presente. Só sabia que era uma estréia beneficente. A platéia riu exatamente nos mesmos momentos. A frieza foi por conta de pessoas que escreveram que havia uma frieza. Por um problema de tensão, não quero saber, por exemplo, se a Fernanda Montenegro ou amigos próximos estão na platéia. A Marília Pêra, que faz parte do espetáculo na voz da Tati (a secretária do senador Zé Otávio), outro dia estava lá e eu não sabia. É bom ter uma platéia anônima. A gente fica mais relaxado.
Não. Isso também é uma surpresa. Por que é que, de repente, algumas notas nos jornais disseram que a Regina Duarte foi escalada para me procurar, que a Ruth Escobar foi escalada para pedir que eu tirasse referências da peça? Pelo contrário. Regina esteve no camarim, teve uma manifestação extremamente efusiva, até me agradeceu pela excelência do espetáculo. Ruth Escobar teceu loas através do Amaury Jr. Disse que tinha se curado porque o efeito da comédia é muito bom para a saúde.
Não, quem pensa é o Zé Otávio. O Zé Otávio é um senador que tem dinheiro na Suíça e, como é candidato a presidente da República, ele acha muito difícil fazer campanha sem dinheiro na Suíça. Ou seja, sem muito dinheiro.
O senador Zé Otávio é uma pessoa extremamente honesta, porque o dinheiro pertence a ele. Como ele mesmo diz “não roubei, não desviei”. É o dinheiro da campanha que foi dado a ele para gastar na campanha e então ele vai gastar na campanha. Ele é isento, um homem de moral ilibada, ou sei lá.
Eu acho que sim, tanto é que é citado. Se não fosse crime não seria citado, né?
Zé Otávio é um somatório de políticos, mas não me inspirei especificamente em ninguém. Na peça Caixa 2, por exemplo, era um banqueiro da comunidade financeira, mas não exatamente um deles. O personagem representava um amálgama.
Claro, eu tenho 68 anos. Fiz política no Partido Comunista durante muitos anos, militei, fiz uma grande campanha pró-diretas, fiz campanha para a maioria dos políticos que nós conhecemos, que estão aí, sou amigo da maioria. Fui um grande amigo do Ulisses Guimarães. Convivo com os políticos e sou um leitor voraz, leio todas as revistas e todos os jornais diariamente. Estou conectado na internet. Sei tudo o que se passa. Leio tudo porque escrevo e tenho que estar sabendo de tudo o que está se passando.
Sim. Por exemplo, o episódio do Silveirinha. Na cabeça da população ainda é maior do que o episódio do Banestado. Se progredir, é claro que o escândalo do Banestado tomará lugar de maior destaque que o Silveirinha. Senão o espetáculo fica desequilibrado.
A ISTOÉ levantou alguns problemas muito graves ultimamente. O problema do Banestado foi levantado pela ISTOÉ e eu fico muito antenado naquilo que estou lendo. O do Silveirinha também. Eu estava acompanhando pela revista, então tenho que citar. A revista foi de onde eu colhi as informações mais escandalosas ultimamente. Seria até uma injustiça não citá-la.
Não fui eu que expus. Eu li isso no jornal, em revista. O Jornal de Brasília tem publicado várias notas a respeito. Eu só sei que o jornal disse que ele tem um filho. O que compete a mim é registrar a minha época. E eu registrei. A minha parte está lá, não é?
Não. O curioso é que a minha informação vem muito do cavoucar, do blog, das colunas. Eu leio todas. Às vezes ouvimos num bate-papo, numa entrevista. As informações estão nas entrelinhas. Mas eu não tenho um informante. Gostaria muito de ter (risos). A única coisa curiosa que eu recebi, e isso é interessante contar, é que deixaram uma carta no teatro dizendo “que ótimo, maravilhoso, você é fantástico, não tire nada. Vou passar informações para você…” E passou muitas informações sobre casos de políticos com mulheres.
É uma carta anônima. Não tenho nada a ver se as pessoas comem as outras. Que façam um bom proveito. Quando eu tinha disposição e idade fazia a mesma coisa.
Quando se está muito ligado no poder e no prestígio ou então
na ascensão ao poder, como é o caso do político ou dos que atuam na política, provavelmente o outro lado fica um pouco desprestigiado. E aí pode ser uma tragédia. Sob certo aspecto, eu concordo com esta tese. Imagine você manejar Maquiavel, os conceitos de O príncipe para subir ao poder. São conceitos extremamente tensos. Acho que a senadora tem um pouco de razão porque acaba estilhaçando a fragilidade da alma, do espírito da pessoa. É impossível fazer política sem a aplicação do conceito maquiavélico.
Existem algumas diferenças fundamentais. Estou sempre discutindo um problema em todas as minhas peças: de um lado, o letrado, aquele que pertence à classe dominante, e do outro lado aquilo que se chamava vulgarmente de despossuído. O iletrado, o caipira, é o lado oposto, quase o selvagem, comparado ao homem civilizado. Nós fomos perdendo algumas características muito interessantes, como solidariedade, afeto, sociabilidade, altruísmo, compaixão. Mas elas ainda estão muito presentes no caipira. Claro, ele é astuto, inteligentíssimo. Tem uma vivacidade por razões óbvias. Primeiro, porque vê o sol nascer e se pôr. Segundo, porque vive numa mútua dependência entre ele e a natureza, os animais. É uma simbiose perfeita. A civilização é nefasta para algumas coisas. Quanto mais você avança, na verdade regride.
Perdemos características genéticas que eram importantes e estavam presentes em nosso ancestral selvagem. Nós somos capazes de matar e o nosso ancestral selvagem não era. Quando nós interferimos na seleção natural, nós nos tornamos uma nuvem de gafanhotos. Basta pensarmos no que está acontecendo no Oriente Médio. O que aconteceu com o fotógrafo La Costa no acampamento dos sem-teto. Havia um amálgama da sociedade brasileira naquele local onde ele foi morto. Tinha o acampamento, a periferia, o ladrão, tudo junto. É a própria sociedade que está naquele bolo.
Imagine! Nem a filosofia, nem a religião conseguiram regredir esse quadro de destrutividade. O Konrad Lorenz (zoólogo austríaco) dizia que a única forma de se reverter este quadro, que provavelmente já tenha chegado ao ponto sem retorno, seria a possibilidade de que as crianças outra vez voltassem a ter contato com a natureza, para ver como é que se poliniza as flores, como é que se dá a concepção e o nascimento dos animais e das plantas.
O problema da distribuição de renda é um pressuposto para que nós atingíssemos uma situação melhor. Não acredito muito que se consiga. Estamos discutindo a reforma, e os lobbies que se fazem são tão alucinantemente corporativistas. É um escândalo ver pessoas que ganham, digamos, R$ 80 mil por mês discutindo ferozmente direito adquirido. A própria maneira de se conceber esse raciocínio é uma coisa que te deixa muito pessimista em relação à solução de qualquer outro problema. Agora eu pergunto: não tiraram os escravos e não feriram o direito adquirido? É de uma imbecilidade total esse raciocínio e, no entanto, é feito por pessoas inteligentes, pessoas até da esquerda mais feroz. Eu, aliás, sou aposentado. Sou marajá. Ganho R$ 900 por mês, trabalhei 35 anos. Sou um dos que mais ganham. E o outro? Ganha R$ 90 mil, R$ 50 mil? De bom grado, eu abdicaria de uma parte dos R$ 900 se fosse para nivelar todo mundo para R$ 400, por exemplo. Poderíamos andar na rua e cumprimentar as pessoas, dar mais dignidade a elas.
Diz-se por aí que os humoristas, aqueles que escrevem comédia, têm uma esperança muito menor. A tragédia é a história do grande, daquele que é um repositório de virtudes. A comédia é o oposto. É o homem defeituoso, que prefere viver sem honra desde que não perca seus privilégios. Então quem escreve comédia, tragicomédia, não tem muita razão para ficar otimista. O Brasil vive um momento muito tenso. Essas coisas que têm acontecido com os sem-terra, com os sem-teto, invasão de prédios públicos, fazendas.
A reforma agrária é absolutamente importante, necessária
e deve ser feita. Nos meus tempos de militância, aprendi diferente. Queríamos uma sociedade que beneficiasse nosso irmão, tínhamos
em vista a felicidade do outro. É inconcebível para mim ver uma luta política no nível do corporativismo, como hoje é feito. Parece que os grupos estão pouco se lixando para os outros. Quando vejo integrantes do MST invadirem determinadas fazendas produtivas, eles se tornam pura e simplesmente predadores. Talvez não sejam as pessoas, mas aqueles que orientam o movimento.
Enquanto a tragédia e o drama nascem do coração, do sentimento, a comédia nasce da cabeça, do cérebro, da inteligência, tem a faculdade de conduzir as pessoas a refletir. Sempre que vemos uma comédia, rimos muito. E, dependendo da comédia, estamos rindo de coisas trágicas, das quais se é até cúmplice. É bom que as pessoas riam, porque, quanto mais elas rirem, mais refletem.
Nessa idade que estou não tenho mais tempo para fazer essa experiência. Se fosse mais jovem, com o maior prazer. Eu gosto muito de teatro experimental, assisto muito.
Não. É que, com a minha experiência em teatro, eu já fiz o Gerald Thomas, eu já fiz o Zé Celso, eu já fui o Zé Celso, porque nós fomos o Arena. O Zé Celso saiu do Arena. Primeiro éramos nós: Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Flávio Império, Paulo José, eu. Do teatro de Arena saiu o Oficina. As experiências nós já fizemos, já passamos por elas, e as experiências que o Zé Celso faz, evidentemente, passam pela nossa experiência. Quer dizer, todas as experiências, Grotowski, Julian Beck, Judith Malina, Bob Wilson.
Sim, acompanho. Gosto muito. Adoro vanguarda, adoro teatro experimental. Tanto é que os maiores espetáculos que eu vi na vida foram experimentais. Wielopoloe, wielopoloe, do Tadeusz Kantor, a Orestíada, de Peter Stein, as peças do Bob Wilson. Esses são os maiores espetáculos que vi e amo. Mas eu tenho uma missão pessoal.
O fato de eu deixar a televisão em 1977 e voltar para o teatro foi uma missão que eu me atribuí, cessadas as razões pelas quais nós tínhamos ido para a tevê depois que a censura fechou o teatro, inviabilizando nosso trabalho. Então, voltei a ocupar este espaço que tinha ficado vazio. Sou um ator, a minha pátria é o teatro. É o meu espaço e é aí que eu milito. Sou muito religioso e o teatro para mim é uma religião. A Talia e a Melpômene, as máscaras rindo e chorando, são as musas da comédia e da tragédia. Sou fiel e acho que os deuses são rancorosos. Eles cumulam de benesses aqueles que os cultuam, mas aqueles que os traem são castigados com muita severidade. Acredito que a Talia e a Melpômene estiveram presentes em cada momento da criação desta peça. É sempre a função das musas, elas é que elegeram o elenco, elas é que determinaram os cortes.
No momento em que eu era um grande ator e tinha um grande salário. Mas não foi uma ação só minha. Foi alguma coisa espiritual que me empurrou. É muito difícil um ator fazer vários sucessos. Não sou um gênio, não sou um luminar da inteligência humana, sou um contador de causos, um caipira simples, com uma cultura até bastante deficiente, não sei falar um monte de línguas nem nada, mas faço sucesso. Então alguma coisa está me guiando.
Ah, sim, substitui. Não sou muito ligado em dinheiro, nunca quis ter carro importado. Acho um absurdo num país como este ter um carro importado. Eu gosto de coisas bonitas.
A minha fazenda é deficitária.
Gado. É uma fazenda que dá muito prejuízo. Mas a fazenda é um nexo entre uma realidade muito dura e uma fantasia. Eu sou de São Roque, vivi uma parte da minha infância na fazenda do meu tio Juca. Era uma fazenda muito bonita. Como eu era muito pobre e tinha muita dificuldade, os melhores momentos da minha vida foram passados nessa fazenda. Todos nós temos uma certa tendência a reconstruir a nossa infância ou voltar para o lugar onde nós fomos felizes. Existe um caráter predador na sociedade contemporânea que é a destruição de tudo. A peça Meno male tratava muito disso, da destruição dos bairros. Somos como os bichos, que, quando tirados do seu território, se tornam aberrações. Pessoas tiradas de São Roque como eu e jogadas numa cidade como São Paulo se tornam uma aberração.