05/08/2003 - 10:00
Ansiedade, nervosismo, tensão. E uma vontade incontrolável de saciar o desejo, sem medir consequências. É essa a sensação que atormenta 34 milhões de brasileiros (um terço da população acima de 18 anos) com dificuldades de controlar os seus impulsos. Eles convivem com uma doença chamada compulsão. “O compulsivo tem uma necessidade de repetir a ação que escapa de seu controle”, explica a psiquiatra Sueli Guimarães, da Universidade de Brasília. Saciar desejos, para eles, é a forma encontrada de aliviar angústias e ter mais prazer de viver. O resultado é que o indivíduo começa a dedicar cada vez mais tempo aos atos compulsivos e perde a noção dos danos que a atitude causa à sua vida e à de quem está por perto. Depois de algum tempo, a necessidade de se entregar ao impulso volta.
E o ciclo recomeça.
Uma das compulsões mais conhecidas tem o sexo como objeto do desejo. As atrações da vida moderna, porém, têm feito surgir novas modalidades da doença. Os especialistas estão preocupados com o aparecimento da compulsão por compras, exercícios físicos, internet e sexo virtual. Um shopping center e um cartão de crédito na mão, por exemplo, formam uma combinação explosiva para um comprador compulsivo. “O impulso de torrar até o último centavo é estimulado pelas facilidades oferecidas por cartões de crédito, financiamentos e empréstimos”, explica a psiquiatra Daniela Lobo, do Hospital das Clínicas de São Paulo (HC/SP). A malhação desenfreada, por sua vez, encontra campo fértil para se desenvolver muito em parte por causa da cultura da boa forma, comum nos dias atuais. Este tipo de compulsão atinge principalmente pessoas insatisfeitas com a sua aparência. Em geral, elas têm pavor de ganhar um grama que seja e se sentem na obrigação de malhar pelo menos duas a três horas por dia. “A maioria tem visão distorcida da imagem corporal e tendência a sofrer de problemas como a anorexia, distúrbio alimentar caracterizado pela resistência em comer”, diz a psicóloga Mônica Di Pietro, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
A internet também criou condições para uma variedade recente de compulsão. No mundo todo, médicos deparam com o crescimento do número de pessoas que navegam pela rede virtual horas a fio. É um modo de ficar na internet diferente de quem acessa a rede por algumas horas ou precisa, eventualmente, virar a noite no computador para concluir um trabalho. Os dependentes não conseguem desligar o aparelho para cumprir compromissos ou mesmo procurar outras formas de distração. Essa situação é o retrato do que aconteceu com o analista de sistemas José Ricardo*, 34 anos. Ele é um típico internauta compulsivo. Tudo começou há quatro anos, quando Ricardo usava a internet para vender equipamentos de informática e consertar computadores de clientes. Aos poucos, ficou seduzido pelo meio. Há dois anos, na fase mais crítica, pagava contas de telefone astronômicas por causa da quantidade de horas na rede. “Chegava em casa cansado, mas não jantava nem tomava banho. Ia direto para o computador. Minha esposa dormia sozinha”, diz Ricardo. De tanto a mulher reclamar, ele decidiu viver sem telefone em casa para não se conectar mais. “Enquanto eu não aprender a me controlar, vai ter de ser assim”, diz.
Muita gente que se perde diante do computador tem chances de associar mais de uma modalidade compulsiva. A rede virtual abriga desde pessoas que migram de site em site até as que usam o equipamento como trampolim para o desejo de jogar, comprar ou fazer sexo virtual, por exemplo. Na verdade, a relação entre as compulsões e a internet é um novo campo de estudo, especialmente no que diz respeito ao sexo. “O cibersexo cria um espaço inédito para os indivíduos explorarem anonimamente fantasias e papéis sexuais diferentes, muitas vezes guardados em segredo”, explica o psiquiatra Aderbal Vieira Júnior, do Ambulatório de Sexo Patológico da Unifesp. Esse é o segredo e o tormento da vida da nutricionista Rafaela*, de Santa Catarina, 31 anos, que substituiu o consumo de drogas (cocaína e ecstasy) pelo sexo virtual. “Entro em transe, como se estivesse tomando uma droga. Meu namorado sabe que há algo errado porque evito sexo com ele, mas não tenho coragem de contar”, diz.
A origem dos comportamentos compulsivos ainda não está totalmente esclarecida. Mas os cientistas já encontraram algumas pistas. Uma das teorias mais aceitas defende que a compulsão é resultado da combinação de vários fatores. “A doença pode envolver alterações nos níveis da serotonina (mensageiro químico do cérebro ligado à sensação de bem-estar e satisfação), dificuldades de lidar com a frustração e de se proporcionar prazer”, enumera o psiquiatra Vieira, da Unifesp.
A compulsão seria a busca de satisfação para essa angústia.
Também se discute o papel da família na vida dos compulsivos. Na opinião do psiquiatra Marcelo Fernandes, coordenador do Ambulatório de Jogo Patológico da Unifesp, há uma forte influência tanto do ambiente como de traços hereditários. “Um estudo feito entre os nossos pacientes mostrou que filhos de pais jogadores têm cinco a sete vezes mais chances de desenvolver a doença”, diz o psiquiatra. E parece não ser apenas parentesco de primeiro grau que conta. A psiquiatra Daniela Sabbatini, do HC/SP, está fazendo uma tese sobre o assunto. “O interesse surgiu porque muitos pacientes relatam que têm avós e tios viciados em jogo”, diz. Os especialistas querem saber mais sobre o tema também porque, com a proliferação dos bingos, o jogo tornou-se outra compulsão importante da vida moderna. No Ambulatório do Jogo Patológico do HC/SP, por exemplo, um levantamento feito pela psiquiatra Silvia Sabóia Martins mostrou que, em 1998, foram atendidos cerca de 40 dependentes do jogo. No ano passado, o número de pacientes em tratamento dobrou.
A boa notícia é que o maior conhecimento da doença garimpado
até agora eleva as chances de controlar o problema e de melhorar
a qualidade de vida dos compulsivos. Hoje as perspectivas de recuperação são mais otimistas do que há algumas décadas. “Isso se deve ao desenvolvimento de técnicas psicológicas e de remédios mais adequados”, diz a psicóloga Sueli. Nas clínicas especializadas, a maioria dos pacientes é tratada com terapia psicológica comportamental. O método ensina a criar defesas para driblar as tentações e evitar as situações de risco que deflagram a compulsão. Os compradores aprendem, por exemplo, a levar no bolso apenas a quantia de dinheiro necessária para o dia, deixando em casa o cartão de crédito ou cheques. Além disso, dependendo das características do paciente e da intensidade do problema, os psiquiatras utilizam remédios antidepressivos (com
ação sobre a serotonina) combinados ou não a medicamentos para diminuir a ansiedade. Em geral, o tratamento leva no mínimo seis
meses para surtir efeito. E sempre pode haver recaídas. Quando isso acontece, os terapeutas reforçam a necessidade de erguer a cabeça
e continuar a batalha. “Cerca de 30% dos pacientes tratados mantêm
um bom nível de controle sobre a doença”, informa o psiquiatra Dartiu Xavier, coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad/Unifesp).
As vítimas da compulsão também procuram alívio para suas angústia
nos grupos de ajuda mútua. Um dos mais conhecidos são os Alcoólicos Anônimos. Mas há reuniões para pessoas com outros comportamentos compulsivos (compradores e jogadores, por exemplo). Nesses locais,
os indivíduos desabafam seu drama e ouvem conselhos. Ao partilhar
o sofrimento, sentem-se mais fortalecidos para lutar contra a doença.
* Os nomes dos pacientes são fictícios
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