No dia 23 de junho passado, a conservadora Suprema Corte dos Estados Unidos anunciou uma decisão histórica a favor da chamada ação afirmativa – conjunto de políticas públicas e privadas de combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional. Surpreendentemente, numa votação apertada de 5 x 4, a mais elevada instância da Justiça americana decidiu a favor da Universidade de Michigan, que adota a política de admissões nas universidades que favorece as minorias de negros, hispânicos e indígenas. Os advogados que participaram diretamente deste processo, John Payton e Theodore Shaw, do International Human Rights Law Group, fizeram na semana passada uma turnê pelo Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo para compartilhar com os brasileiros as experiências desse processo. A visita acontece exatamente no momento em que o Supremo Tribunal Federal (STF) analisa a constitucionalidade das leis estaduais que estabelecem o sistema de cotas adotado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), que recebeu 300 processos contra o critério racial e de egressos da escola pública na admissão dessa universidade. Com o início da implementação do projeto de lei do senador José Sarney (PMDB-AP), que institui cotas nas universidades e nos concursos públicos, o Brasil vive agora o seu mais caloroso debate sobre seus princípios de justiça, igualdade, méritos educacionais e de trabalho. Os americanos, por sua vez, carregam nas costas quase 40 anos da experiência em ação afirmativa, mas em uma realidade muito diferente da brasileira. Para trocar figurinhas, advogados e educadores americanos reuniram-se com políticos e educadores brasileiros, entre eles o senador Paulo Paim (PT-RS), autor do Estatuto da Igualdade Racial, o líder do governo na Câmara, Nelson Pellegrino (PT-BA), a ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial para a Promoção da Igualdade Racial, e os reitores das universidades do Rio de Janeiro e Brasília (que, juntamente com as universidades da Bahia e de Mato Grosso do Sul, iniciaram a implementação do sistema de cotas).

O caso Michigan foi o mais polêmico nos últimos 25 anos nos EUA e chacoalhou a sociedade americana porque fez a Corte rever sua decisão de 1978 no famoso caso Bakke, que reafirmou a constitucionalidade da ação afirmativa. Nas universidades americanas, o sistema de cotas não
é obrigatório e sim recomendável. Desta vez, o tribunal julgou conjuntamente dois casos. Em 1997, a estudante branca Barbara Grutter alegou não ter sido admitida na Faculdade de Direito porque a banca levou em consideração o critério da raça. A conclusão final do tribunal
foi a de que a entrada de diferentes etnias nas universidades favorece
a sociedade. No outro julgamento do mesmo processo, o tribunal se
opôs a um sistema em que os estudantes de minorias recebiam pontos extras para ser admitidos na mesma universidade. Os defensores da ação afirmativa consideram-se vitoriosos porque se criou uma jurisprudência
e as universidades contrárias à adoção dessas políticas de admissão, como a da Califórnia e a de Washington, terão que rever suas diretrizes. “Há cinco anos, nos diziam que iríamos perder. Foi uma luta não apenas nos tribunais, mas junto à opinião pública”, afirmou a ISTOÉ o advogado Theodore Shaw. “A decisão da Suprema Corte terá aplicabilidade
em todas as universidades públicas e privadas até para decisões anteriores que tentavam eliminar a política de ações afirmativas”, completou John Payton.

Os avanços – Antes de anunciada a decisão final – válida para os próximos 25 anos –, a polêmica chegou à Casa Branca. O presidente George W. Bush manifestou-se contrário ao sistema de preferências étnicas da Universidade de Michigan. Já o secretário de Estado, Colin Powell, um declarado beneficiário da ação afirmativa, foi a favor. Os resultados da ação afirmativa na sociedade americana são visíveis. Desde o final dos anos 60, quando começou a ser implementada, até 1995, a porcentagem dos afro-americanos entre 25 e 29 anos que se graduaram nas universidades aumentou de 5,4% para 15,4%, ou seja, triplicou, formando uma classe média negra. Na área de medicina, por exemplo, o ingresso das minorias passou de 2,2% em 1964 para 8,1% em 1995. Apesar dos avanços, o debate continua intenso: existem aqueles que consideram que os programas de ação afirmativa violam a 14ª Emenda da Constituição dos EUA, que proíbe a discriminação racial.

Tanto Payton quanto Shaw afirmaram que o veredicto da Justiça em favor da ação afirmativa aconteceu por conta de uma forte mobilização da sociedade civil, realizada através da organização Amici Curie (“Amigos da Corte”, pessoas e entidades que não faziam parte do litígio, mas que apoiaram um lado). “Tivemos o apoio de um número sem precedentes na história da Suprema Corte: 150 entidades, empresas públicas e privadas, organizações de direitos civis, incluindo as Forças Armadas. O tribunal entendeu que esses casos não tinham interesse individual, mas nacional, porque trazem melhoras para o país. E no final foi essa a visão que prevaleceu. Talvez seja essa nossa contribuição à sociedade brasileira”, disse Payton.

Mito racial – No Brasil, foram precisos muitos anos para que o mito da democracia racial fosse derrubado pelas estatísticas. “Aqui, com a miscigenação, houve uma ilusão de haver democracia racial. Por isso, a dificuldade de reconhecer seu sistema racista”, analisa um especialista no assunto, o professor Edward Telles, da Universidade da Califórnia. “O Brasil pertence à cultura ibérica e suas duas principais características são de dissimulação e manutenção de privilégios”, completa o doutor em administração Hélio Santos, autor do livro A busca de um caminho para o Brasil. Nos EUA, os negros são apenas cerca de 13%, enquanto no Brasil são 45%, ou seja, 76,5 milhões de negros e pardos. O abismo entre negros e brancos no Brasil é vergonhoso. Segundo dados do IBGE divulgados no mês passado, do 1% dos mais ricos no País, 88% são brancos, e dos 10% mais pobres, 70% são negros ou pardos. Os dados revelam que, com o mesmo nível de escolaridade e com trabalho na mesma profissão, os negros recebem 57% do salário dos brancos.

O debate sobre as vagas nas universidades públicas abriga apenas um patamar da questão racial. O que a sociedade brasileira deve se perguntar é como sanar essa doença instalada na coluna vertebral do País. O Brasil, o último país a abolir a escravidão no mundo e o segundo maior em população negra (depois da Nigéria), começa a colocar em prática suas políticas de inclusão, e a sociedade discute essa implementação. Em novembro de 2001, o STF defendeu a legalidade dessas políticas, afirmando que o Estado promove as ações para garantir a igualdade socioeconômica. “Nas últimas três gerações, apesar do desenvolvimento econômico do País, não conseguimos aproximar as linhas paralelas entre brancos e negros na educação e no mercado de trabalho. Todas as estatísticas do IBGE e do Ipea mostram que, principalmente no campo educacional, não foi possível alterar o padrão de desigualdade. E por isso a necessidade de uma política pública para a educação, de cotas. Mas ela é uma das iniciativas para este país dividido. A ação afirmativa não deve ser apenas do governo federal, mas de toda a sociedade”, afirma Sueli Carneiro, diretora da Organização Não-Governamental Geledés – Instituto da Mulher Negra.

No entanto, existem vários argumentos contrários à aplicação das ações no Brasil. Entre eles, o de que elas provocariam um racismo ao contrário. “No fundo as cotas reintroduzem, pela porta dos fundos, a crença racista segundo a qual existe alguma relação entre a capacidade intelectual e a cor da pele”, afirmou o doutor em geografia Demétrio Magnoli, em artigo na Folha de S. Paulo. “(Nos EUA) as cotas para negros nas universidades convivem harmoniosamente com as ‘cotas’ que os tribunais reservam para os negros pobres nas prisões e no corredor da morte”, continua Magnoli. O professor
Hélio Santos responde a isso dizendo que, “no Brasil, os negros só
estão presentes nas cotas das prisões”. Para Santos, “as políticas universalistas (de inclusão social de pobres, tanto negros como
não-negros) não funcionam num país de exclusão e racista”. Ele
diz que um sistema público de qualidade ajudaria muito a promover
uma sociedade igualitária, mas não o suficiente para integrar os
setores discriminados como os negros. “Qual é a matriz do caos
social brasileiro?”, pergunta Santos.

“Amigos da Corte” – Apesar de tudo, as coisas começam a se mover no Brasil. Um grupo de Amigos da Corte no País começa a ser formado para apoiar a ação afirmativa no sistema educacional. Setores da sociedade civil e do empresariado também discutem alternativas para a inclusão no mercado de trabalho. Segundo Hélio Santos, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) requisitou ao Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade uma lista de negros capacitados, mas desempregados, que estariam prontos para serem inseridos no mercado de trabalho. Nos EUA, são inúmeros os exemplos de transformações da sociedade. “Metas de contratação de trabalhadores qualificados negros foram estabelecidas para cada fábrica da Kaiser, em percentual equivalente ao da porcentagem de negros da respectiva força de trabalho local. Para que as fábricas pudessem atingir essas metas (de contratação) estabeleceram-se programas de treinamento no local de trabalho para trabalhadores não qualificados no setor de produção – negros e brancos”, trecho do livro Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade, de Joaquim B. Barbosa Gomes, o primeiro negro brasileiro empossado no Supremo Tribunal Federal (STF).

A realização de políticas de inclusão deve ser decidida exclusivamente pelos brasileiros, mas elas não são novidade no País. Em 1818, os dois mil suíços que chegaram para fundar Nova Friburgo receberam alguns benefícios da monarquia. “Agora queremos que isso aconteça com os negros. Estamos atrasados em um século”, disse Santos. O caminho é longo e a sociedade é que determinará seu destino.