Márcio Amaro de Oliveira gastou boa parte de seus 33 anos tentando transformar-se em um personagem. Nascido pobre no morro Dona Marta, espetado na zona sul do Rio de Janeiro, desde cedo entrou para a quadrilha de traficantes do local e adotou o codinome Marcinho VP – iniciais de dois palavrões (viado e puto) que costumava repetir. A partir daí, buscou mudar o roteiro normalmente destinado aos bandidos do morro. Em 1995 deu informações importantes e viabilizou a gravação do documentário Notícias de uma guerra particular, do cineasta João Moreira Salles. No ano seguinte, tornou-se nacionalmente conhecido quando garantiu a segurança do pop star Michael Jackson e do cineasta Spike Lee, que gravaram um clipe na favela. Começou a aparecer na imprensa como um “bandido diferente”, que alardeava preocupações sociais. Os ingredientes incomuns chamaram a atenção do jornalista Caco Barcellos, que durante cinco anos se dedicou à tarefa de escrever sua biografia. O livro Abusado – o dono do morro Dona Marta (Editora Record) foi lançado em maio e mostra os bastidores do tráfico. Na segunda-feira 28, dois meses após a obra ter chegado às livrarias, Marcinho VP foi assassinado por estrangulamento
em Bangu III, onde estava preso. Seu corpo foi encontrado na lixeira. Segundo o secretário de Administração Penitenciária, Astério Pereira,
o principal suspeito do crime é o traficante Ronaldo Pinto Lima e
Silva, irritado com revelações feitas no livro pelo adversário. Mesmo tentando mudar seu script, Marcinho não conseguiu escapar do
epílogo comum a outros bandidos.

A investigação do crime apenas começou, e a polícia ainda não
confirmou se o traficante realmente morreu pelas inconfidências. Mas
as autoridades consideram esta a hipótese mais provável. Procurado, Caco Barcellos, correspondente da Rede Globo em Londres, disse que estava muito abalado e não daria entrevista antes da conclusão do inquérito. “Infelizmente ele morreu”, afirmou a ISTOÉ. Caco deu à
história de Marcinho um tratamento romanceado, nos moldes de seu livro anterior, Rota 66, que denunciava de forma brilhante a truculência da polícia paulista. Na obra recém-lançada, Marcinho foi rebatizado
como Juliano VP e vários outros personagens tiveram o nome trocado,
por medida de segurança. O traficante Ronaldo Pinto Lima e Silva, suspeito do crime, é o personagem Claudinho. Na página 275, está reproduzida uma discussão pelo controle de uma das bocas de fumo,
em que Juliano acusa Claudinho de traição e o ameaça: “Tu devia sumi
da minha frente antes que eu te mate, rapá. Tu qué o meu esculacho, rapá. Um dia vamo acertá esta parada.”

Incompetência – A diretora editorial da Record, Luciana Villas-Boas, devolve a responsabilidade para a polícia e define a obra como a crônica de uma morte anunciada. “Se a polícia tivesse lido o livro, não teria colocado dois inimigos figadais no mesmo pavilhão”, reclama. “Se estava tudo tão claro, foi no mínimo incompetência que eles estivessem ali.” Luciana lamenta o que aconteceu, mas constata que, no mundo do tráfico, as pessoas morrem de forma violenta. “Desde que o livro foi lançado, pelo menos seis personagens foram mortos.” A editora vendeu cerca de nove mil exemplares depois do assassinato do traficante. Autor e editora deverão enfrentar outras polêmicas. Muitos moradores da favela reclamam que o jornalista não protegeu com codinomes traficantes mortos e não pediu autorização às famílias para contar suas histórias. Sônia Belo, viúva de Kito, um traficante morto em 2001 e citado no livro, reclama. “É verdade que ele levava uma vida errada. Mas a minha raiva toda é por causa dos meus três filhos, porque ele usou codinomes para várias pessoas, mas colocou o nome e o sobrenome do Kito lá, para todo mundo ver”, reclamou Sônia ao site Viva Favela.

Marcinho teve seu tempo de poder, praticou muitos crimes,
estava condenado a 42 anos de prisão por tráfico de drogas e vários assassinatos, mas havia tempos não tinha status de chefão. Desde que foi preso, há três anos, o tráfico de drogas no morro Dona Marta tem novo líder. Ao enterro, realizado na terça-feira 29, no cemitério São
João Batista, em Botafogo, compareceram cerca de 300 pessoas e
não se viu a movimentação que costuma marcar os sepultamentos dos integrantes da facção Comando Vermelho, em que ônibus são fretados por traficantes para transportar moradores das comunidades. No morro
e nos arredores, o comércio funcionou normalmente e não houve o luto normalmente imposto aos comerciantes. Os diretores da associação de moradores se recusaram a fazer comentários. Marcinho VP não era importante na hierarquia marginal, mas valia pelo que representava: nenhuma outra trajetória poderia ilustrar de forma mais fiel a relação esquizofrênica da classe média alta carioca com os traficantes que dominam as favelas do Rio e aterrorizam a cidade. Pouco antes do enterro, João Moreira Salles esteve no cemitério. “Vim prestar solidariedade a uma família que está sofrendo”, declarou.

Desde que participou do documentário Notícias de uma guerra particular, Marcinho passou a manter contato não só com Moreira Salles, mas com outros cineastas, como Kátia Lund, e alguns intelectuais. Além desses relacionamentos, também foi amigo de jovens da classe média. Teve contato com idéias e livros que não faziam parte do cotidiano da favela. Leu obras como Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre, textos de Malcolm X, Che Guevara e do subcomandante Marcos, líder dos guerrilheiros zapatistas do México.

Favelania – Em 1996, quando foi obrigado a fugir por conta da repercussão do episódio Michael Jackson, juntou esse ideário às suas impressões pessoais e fez uma salada ideológica à qual batizou de “favelania”. Pretendia ser um movimento revolucionário em defesa dos direitos dos favelados. Foi preso em 2000, depois que a polícia descobriu que Moreira Salles dava a ele dinheiro para escrever um livro sobre a sua vida. Ao ser apresentado pela polícia, deu publicidade à favelania em entrevistas, dizendo que esse era seu ideal revolucionário. Ouvido na CPI do Narcotráfico, realizada no Congresso, surpreendeu os deputados ao criticar os políticos e o FMI (Fundo Monetário Internacional) e por defender os movimentos guerrilheiros na América Latina.

“Um jovem do morro entra no tráfico porque a sociedade não lhe oferece outra oportunidade para viver”, teorizou. O verniz social de seu discurso seduziu alguns bem-nascidos. “Eu vi o cara (Marcinho VP) fazendo uma função que nunca imaginei que bandido fizesse”, afirmou Katia Lund a ISTOÉ em outubro de 2002, em uma entrevista sobre a experiência de filmar no Dona Marta. “Ele disse: ‘Eu não quero dinheiro, só quero que a comunidade tenha o máximo de trabalho possível’.” O papel de Robin Hood que Marcinho VP criou para si pode ter convencido alguns, mas, mesmo levando-se em conta a pobreza que o embalou, as vítimas de seus assassinatos não deixam esquecer que ele não passava de um criminoso.

 

Uma tarde com VP

Uma tarde de março de 1997. Eu e a fotógrafa de ISTOÉ subimos o Dona Marta para entrevistar Marcinho VP. Fazíamos uma reportagem sobre crianças no tráfico. Um intermediário garantiu que, apesar do cerco policial, o traficante se encontraria comigo. Escurecia quando veio a orientação para que eu subisse o morro. Pouco depois, cercado por três rapazes fortemente armados, Marcinho apareceu. Com roupas de grife, cabelos curtos e cavanhaque, me cumprimentou educadamente e disse que queria conversar para decidir se daria ou não a entrevista. Começou justificando sua atividade: ‘O meu povo é oprimido e eu quero ajudar a libertá-lo’, disse, referindo-se aos moradores da favela. Contou que, enquanto mudava de esconderijo, lia ideólogos de esquerda.

Me interesso pelos socialistas, pelos textos do subcomandante Marcos e do MST.’ Questionei se o crime, que violentava tantas pessoas, poderia libertar os oprimidos. ‘Se eu não estivesse aqui, outro traficante estaria e seria muito mais violento. Não permito que crianças trabalhem na boca-de-fumo nem que consumam drogas’, disse, apesar de responder a processos justamente por essa acusação. Depois de resumir suas idéias, perguntou minha opinião. Discordei dos meios que ele havia escolhido e ele resolveu se despedir. Afirmou que, se resolvesse dar a entrevista, me telefonaria. ‘Provavelmente vou estar no México, entre os zapatistas’, previu. Nunca mais falei com ele.”

Francisco Alves Filho

 

Falcão fora do ar

Depois de uma grande campanha publicitária, a direção da Rede Globo anunciou na quinta-feira 31 que, por decisão dos autores, cancelaria a apresentação do documentário Falcão – meninos do tráfico, que iria ao ar no Fantástico. O filme, do rapper carioca MV Bill e seu empresário, Celso Athayde, criador da Central Única de Favelas (Cufa), retrata o tráfico em várias cidades. Segundo nota da emissora, eles “mantiveram a
decisão de não revelar os motivos”, apesar de saberem
dos prejuízos que causariam.

A dupla não esclareceu se sofreu ameaça ou se a desistência foi influenciada pela morte de Marcinho VP. “Os motivos pelos quais vetamos a exibição são de caráter pessoal”, declararam, também em nota. A Globo ainda quer exibir o filme. Em texto lido no Jornal Nacional, sustentou que os autores “sempre tiveram preocupação com os problemas sociais”. Muitas vezes essa preocupação foi expressa de forma estranha. Em 2001, Athayde, ao criar a Cufa, defendeu o bloqueio da peculiar de caminhões de cerveja e de cigarros nas favelas se as empresas não pagassem 10% de “imposto” à comunidade.