Todo governante em regime democrático tem a sua panela de pressão para administrar. Luiz Inácio Lula da Silva está cumprindo o seu script. Na sua ampla mesa de negociação têm lugar garantido os atores da sociedade que lutam por interesses opostos: de sem-terra a fazendeiros, de operários a empresários. Quando a conversa não surte efeito e um dos lados radicaliza, o governo fala alto, como fez com o MST, avisando que não vai tolerar o atropelo da lei, como aconteceu no dia 18 de julho na Fazenda Nova Jerusalém, em Unaí (MG), onde os invasores depredaram a propriedade e mataram os animais. Nas cidades, os movimentos dos sem-teto são a expressão de uma chaga social tão grave quanto a questão agrária, a falta de moradias. Agem de forma atabalhoada, arregimentando todo o tipo de gente para seu exército de invasores de terrenos, como o da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, contando às vezes com apoio oportunista de políticos. Mas os protestos dos movimentos populares, exacerbados ou não, vêm de longa data. Não são uma exclusividade do governo petista. Os antecessores de Lula também tiveram suas panelas de pressão para controlar: são cinco séculos de desigualdades sociais e injustiças. A demanda no campo atinge quatro milhões de pessoas. Nas cidades, o déficit de moradias ultrapassa a casa dos seis milhões de unidades.

Há exatamente 24 anos, em pleno governo do general João Baptista Figueiredo, houve a primeira invasão de terras por agricultores gaúchos em Ronda Alta, que em 1984 fundariam oficialmente o MST. O polêmico movimento foi crescendo, promovendo ocupações de terras, órgãos públicos, realizando protestos, organizando acampamentos. A maior parte dos assentamentos de agricultores existentes no País é fruto dessas pressões, que atravessaram os governos José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso. Agindo cada um a seu modo, todos amargaram crises, com assassinatos em conflitos por terra e moradia. Os sem-teto também não nasceram hoje, mas não são organizados como os sem-terra: estão na cena brasileira desde o início da década de 90. O Planalto está mais preocupado com suas ações pela forma desorganizada com que atuam, sem lideranças que possam controlá-los. “Os problemas não serão resolvidos em seis meses. Lula cuida do Brasil e nós cuidamos dos sem-teto. A cada ocupação é uma família vivendo melhor.

Estamos lutando só pelos nossos direitos”, explica a coordenadora do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), Lisete Gomes, que liderou ocupação de um prédio no centro de São Paulo. As invasões urbanas são problemas que afligem as “melhores famílias”. Na civilizada Inglaterra, por exemplo, ocupar prédio abandonado é um ato legal e hoje há 18 mil pessoas vivendo assim: são os chamados squatters. A versão brasileira desses squatters certamente vive em condições bem mais difíceis, como as desempregadas Daniele de Oliveira, 18 anos, Edinilza Damaceno, 20, e a camelô Francisca Suely Silva, 19, que no desespero participaram da invasão, por 246 famílias, de um prédio na rua Brigadeiro Tobias, centro de São Paulo, em novembro de 2002.

Em todo o mundo é assim: quando há liberdade, os atores sociais entram em cena com toda a força. Nas ditaduras somem ou vão para a resistência armada.

É a chamada teoria da estrutura de oportunidades políticas, que explicou nos EUA a formação de movimentos sociais de defesa dos negros e das mulheres, na era democrata de John Kennedy. “Em governos de esquerda a sinalização é mais favorável ainda às suas ações. É a oportunidade que eles têm para crescer. Assim, esses movimentos tendem a agir de forma mais intensa”, explicou Valeriano Costa, da Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Campinas (Unicamp). De fato, as ocupações de terra nos primeiros seis meses deste ano (117) já superaram o total de 2002 (103), segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário.

Contra-ataque – Os tucanos partiram para o ataque, acusando o governo de ser fraco. O líder do PSDB no Senado, Artur Virgílio (AM), comparou Lula a João Goulart, que assumiu em 1961 e foi deposto em 1964. “São as mesmas contradições internas, a mesma falta de comando e a mesma infelicidade na escolha de aliados, como o MST”, disparou. Na quarta-feira 30, o líder do MST no Pontal do Paranapanema, José Rainha Jr., foi condenado a dois anos e oito meses de prisão por porte ilegal de arma. Mas o cientista político Valeriano Costa acredita que o governo Lula vem respondendo de forma adequada. “Um governo como o de Lula, que tem apoio da esquerda, tem que legitimar os direitos dos movimentos sem descuidar da legalidade, e é isso que vem fazendo. Reprimiu os abusos do MST de forma verbal, avisando que não vai permitir a ilegalidade, mas ao mesmo tempo procura atender às reivindicações. Lula tem condições bem mais favoráveis do que Jango. Ele tem uma base de apoio sólida. O PT é o maior partido do Congresso”, analisou.

O Planalto já deixou claro que não pretende ser surpreendido com ações radicais: agentes da Polícia Federal foram infiltrados entre os movimentos sociais e entre os fazendeiros que organizam milícias armadas. Ao mesmo tempo, o governo prepara medidas para diminuir as tensões sociais. Vai aumentar o crédito imobiliário para famílias de baixa renda. Na questão agrária, vai intensificar o ritmo dos trabalhos para identificar as terras públicas para a reforma agrária e investir na qualidade dos assentamentos. Assim, Lula adota a tática guevarista: endurecer sem perder a ternura. O ex-deputado Plínio de Arruda Sampaio, do PT, uma espécie de consultor informal do governo para as questões agrárias, explica que os movimentos estão cumprindo o seu papel, mobilizando-se. “Mas isso não significa que eles estejam fazendo oposição ao governo Lula”, afirmou. Durante debate com o presidente do PT, José Genoíno, em janeiro, o líder do MST Gilmar Mauro avisou que as invasões continuariam no governo Lula e justificou a tática citando o jurista Rui Barbosa (1849-1923): “Quando há pressão social, os governos não atendem, alegando que não agem sob pressão. Quando não há pressão social, os governos também não atendem porque não há ninguém demandando.”

A primeira ocupação aconteceu em 1979 na gleba Macali, em Ronda Alta (RS). Mas a fundação ocorre em 1984, em Cascavel (PR). Hoje está organizado em 23 Estados e envolve 1,5 milhão de pessoas. Com caráter fortemente ideológico, socialista, o MST é tido como o movimento social mais forte que já houve no Brasil. Mas não se limita a lutar pela reforma agrária. Faz campanhas de protesto contra os transgênicos, contra a formação da Alca, contra os pedágios nas estradas, entre outras. Nos assentamentos, onde vivem 350 mil famílias, cerca de 160 mil crianças estudam em escolas públicas. Um total de 80 mil famílias vivem em acampamentos espalhados pelo País. Possui 96 agroindústrias e lojas que vendem produtos com a marca dos sem-terra, como bolas de futebol, camisetas e os famosos bonés. Seus principais líderes são o economista João Pedro Stédile (SP), Gilmar Mauro (SP), Jaime Amorim (PE) e João Paulo Rodrigues (DF), além de José Rainha Jr., (Pontal do Paranapanema), que está preso.

Os movimentos por moradia começaram nos anos 90. Estão em quase todas as metrópoles do País. São desdobramentos urbanos do MST, com um comando descentralizado. As formas de atuação variam de um movimento para outro. Em geral, as ocupações não têm motivação política, apenas apoio informal de filiados a partidos de esquerda. O objetivo das ocupações é pressionar o poder público a criar programas de moradia e dar à população de baixa renda acesso a financiamentos para a compra de imóveis. Só na Grande São Paulo há pelo menos 15 movimentos, sendo cinco só no centro da capital. O maior grupo da cidade é o Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), que ocupa somente prédios vazios. Eles têm estatutos rígidos. Para participar das ocupações, é preciso ir às reuniões de base e estar cadastrado. O MSTC é diferente do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). Na principal entidade do Brasil, que ocupou o terreno da Volks em São Bernardo, não há controle de entrada das famílias.