30/07/2003 - 10:00
Paciência. A palavra mais usada nos primeiros meses do governo Lula era uma virtude em falta na semana passada em Brasília e em São Paulo, no campo e na cidade, no Planalto e no Congresso. Uma certa impaciência, temperada pela violência, assombrava o cenário político e a economia do País, a partir de episódios que assustaram pelo inusitado e pelo precedente. Na segunda-feira 21, em Brasília, três centenas de juízes pronunciaram uma “sentença”, em causa própria, inédita nos 114 anos de República: bateram de frente com a opinião pública, anunciando a primeira greve da história do Judiciário, em protesto contra a reforma da Previdência.
Os representantes de 17 mil juízes prometem greve de uma semana a partir do dia 5. Na terça-feira 22, os homens da toga ganharam a adesão dos 12.800 membros do Ministério Público. A reação do governo foi fulminante: o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, antecipou para quarta-feira 23 a votação do relatório do deputado José Pimentel (PT-CE) na comissão especial da Previdência. Para prevenir surpresas, o Planalto montou uma tropa de choque à FHC: 12 deputados aliados pouco confiáveis foram substituídos, em questão de minutos, para garantir a vitória. O Planalto acredita que a aprovação das reformas vale o atual desgaste político. As mudanças constitucionais somadas à paciente administração das taxas de juros, segundo o governo, vão preparar o terreno para o crescimento econômico. “Temos consciência de que o País vai crescer. Acredito que com a aprovação das reformas nos próximos 60 dias a situação vai melhorar”, aposta José Dirceu.
Na mesma quarta-feira, o inusitado ficou por conta do Congresso. Para conter os funcionários contrariados com a reforma, o presidente da Câmara, o petista João Paulo Cunha (SP), perdeu a calma e pesou a mão: colocou dentro do Congresso o Batalhão de Choque da PM de Brasília. Homens de preto, armados de escudo e cassetete, se postaram no corredor de costas para a Comissão de Constituição e Justiça e de peito aberto para a Comissão da Previdência. A visão de soldados desfilando no Parlamento foi demais para a paciência dos políticos, que condenaram em coro a atitude. No dia seguinte, Cunha chorou numa cerimônia pública no salão nobre da Câmara: “Estou triste e só”, desabafou. Ele comentou com amigos que a situação saiu do controle após um manifestante ter sido preso e arrastado por seguranças da Casa.
São Paulo também botou a paciência nacional à prova na tensa quarta-feira 23. No terreno da Volkswagen em São Bernardo do Campo, invadido por sem-teto, o sangue correu: um fotógrafo da revista Época, foi morto com um tiro no peito à queima-roupa. A tolerância nacional voltaria a ser testada naquele dia pela frieza do Banco Central, que reduziu em apenas 1,5 ponto porcentual a taxa anual de juros, cravada em 24,5% – muito acima do que esperavam empresários e trabalhadores. Sem paciência, o coração da indústria – o setor automobilístico do ABC – jogou a toalha: num intervalo de poucas horas, Volkswagen e General Motors anunciaram cortes. As negociações, lideradas pelo presidente da CUT, Luiz Marinho, sustaram as demissões.
Zona de tensão – O empurra-empurra no Congresso ameaçava romper a barreira da PM, por volta do meio-dia da quarta-feira, quando passou por ali a deputada e juíza Denise Frossard (PSDB-RJ). Ela procurou o chefe da PM: “Soldado, onde está sua identificação. Ele não me respondeu. Os PMs de Vigário Geral também não tinham tarjeta”, contou ela a ISTOÉ. A assessoria da PM do DF negou ter havido ordem do comando para esconder a identidade. Apesar do apitaço dos servidores, a tropa de choque do governo na comissão foi eficiente. Aguentou a obstrução de quase seis horas da oposição e, no final da noite, aprovou por voto simbólico sem mudanças o parecer do relator. No fundo da sala, cerca de 30 manifestantes, de costas para o plenário, faziam um protesto mudo contra a reforma. Eles só ocuparam as galerias por força de liminar do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Maurício Corrêa.
A ordem soou como uma afronta ao Congresso. O presidente da comissão, Roberto Brant (PFL-MG), disse que o STF estava interferindo no Legislativo. Corrêa, como seus colegas de tribunal, anda injuriado com o subteto de 75% do salário de R$ 17 mil de ministro do STF para os juízes estaduais. Eles exigem que o subteto seja limitado a um mínimo de 90,25% dos salários do Supremo. Dentro ou fora do Congresso, ninguém apóia a greve de juízes – condenada até pelos tribunais superiores, escancarando uma inédita fissura no Judiciário .
Insuflado pelo senador Jorge Bornhausen, presidente do PFL, Corrêa quer a aprovação de uma emenda que eleve de 70 para 75 anos a aposentadoria compulsória no serviço público. Com isso, ele, que vestiria o pijama em abril de 2004 ao completar 70 anos, esticaria seu mandato até 2005. O líder José Carlos Aleluia (PFL) já comunicou ao ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, que o partido apoiará a proposta. A escassa paciência no Legislativo e no Judiciário parece ter contaminado o Executivo. Horas antes do choque no Congresso, o ministro José Dirceu esfriou o café da manhã com senadores, na casa do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), ao espargir pessimismo sobre a reforma: “Do jeito que está, ela não agrada nem ao presidente Lula nem a mim”, admitiu. Contrariando Lula, Dirceu avisou que os primeiros resultados do espetáculo do crescimento, anunciado para julho, deve demorar um ano e meio. “Tenham paciência!”, rogou aos aliados.
No início da tarde, quando a PM já se retirara do Congresso, entrava em cena a repercussão da decisão do BC de baixar a taxa básica de juros (Selic) em metade do que se esperava. “Fiquei decepcionado”, condenou o deputado Delfim Netto (PP-SP). “A economia vai se desacelerar por mais tempo”, lamentou o presidente da Fiesp, Horacio Lafer Piva. “A redução foi insuficiente e conservadora”, ecoou o presidente da CUT, Luiz Marinho, de olho no recorde de desemprego registrado em junho nas seis maiores cidades do País: 2,7 milhões de pessoas.
Enquanto a impaciência imperava no Congresso e no tumulto no ABC, Lula mantinha a calma. Realizou um cordial encontro com 20 grandes fazendeiros. “Não vamos permitir ilegalidade, de um lado ou de outro”, tranquilizou Lula, no salão onde reluzia a ausência do ministro da Reforma Agrária, Miguel Rosseto, ocupado com as ameaças de invasão do MST pelo País. Contrastando com o apelo de paz de Lula, o líder do MST, João Pedro Stédile, pôs lenha na fogueira: “A luta camponesa abriga 23 milhões de pessoas. Do outro lado, há 27 mil fazendeiros. Será que mil perdem para um? É muito difícil. O que nos falta é nos unirmos, para cada mil pegarem um. Não vamos dormir até acabarmos com eles.” O PT pediu serenidade e a UDR ameaçou com processo. “Não violem a lei e a Constituição, não duvidem da autoridade do governo. Hipótese zero de se tolerar qualquer abuso”, reagiu Dirceu.
Cabeça fria – A intolerância foi reforçada com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que invadiu o terreno da Volkswagen. Na segunda-feira 21, no centro de São Paulo, numa ação coordenada, três mil pessoas invadiram quatro prédios particulares – um deles o antigo Hotel Danúbio. O governador Geraldo Alckmin ironizou, provocando: “É o espetáculo da invasão, que agora é por hora.” Naquela madrugada, os sem-teto tentaram quebrar os cadeados de um prédio no centro da capital, invadido duas vezes nos últimos seis meses. No final da manhã, o grupo Silvio Santos, dono do prédio, cobriu os portões de ferro com um muro de tijolo e cimento.
Nesse clima, muita gente estranhava que o PT que confraterniza com o MST é o mesmo PT que chama a tropa de choque da PM para dentro do Congresso. O cientista político Walder de Góes provocava: “De repente, nos perguntamos: quem é o Lula? Ninguém mais sabe direito.” Mas o presidente parece responder às críticas seguindo a cartilha do chinês Confúcio. Além de calma e de alma, entre outras virtudes, o filósofo recomendava: “Deve-se ter sempre a cabeça fria, o coração quente e as mãos estendidas.” Lição que, neste momento, pode ser útil a todos.
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Morte e mistério na invasão |
O vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Edson ISTOÉ – A greve dos juízes é blefe? ISTOÉ – Qual o dano de uma greve do Judiciário? ISTOÉ – O que perde um juiz em greve? ISTOÉ – Quem vai julgar se a greve dos juízes é legal? ISTOÉ – O que está por trás disso é a defesa do próprio bolso? ISTOÉ – Com medo do quê? ISTOÉ – De perder privilégios? ISTOÉ – A reação nos Estados não reflete o medo de ver cortados em 50% salários de até R$ 30 mil? ISTOÉ – O confronto não pode derrubar a reforma? ISTOÉ – Mas ele é o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)… (e votou a favor da greve) Luiz Cláudio Cunha |
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