30/07/2003 - 10:00
A principal diferença entre os personagens de Carlos Heitor Cony e os de Nelson Rodrigues é o pudor social. Sem os arroubos que caracterizaram os textos do falecido escritor maldito, Cony mostra uma família de raízes profundamente rodriguianas em A tarde de sua ausência (Companhia das Letras, 168 págs., R$ 29). No desenrolar da sua saga, o autor faz questão de ser elegante, de manejar com a delicadeza dos socialmente corretos as vergonhas dos dramas familiares, sem escancará-las. Não se espere da obra de Cony, portanto, que seja gritado aos quatro ventos o drama desenrolado entre as paredes vetustas do solar familiar comprometido pela reurbanização da cidade. Ao contrário, todos tentam levar a vida como se nada houvesse, como se essas paredes fossem para sempre.
A tarde da sua ausência conta a história dos Machado Alves, iniciada a partir de um esforçado comerciante português que, com trabalho pesado e disciplina tão férrea quanto obtusa, gera um clã no qual todos dependem do dinheiro e da proteção patriarcais. Os relacionamentos entre eles são tão promíscuos como os da obra rodriguiana. Mas, pela mão delicada de Cony, tentam manter um mínimo de compostura. Homens e mulheres se perdem na bebida ou na contravenção, na preguiça ou na total incompetência. Ninguém, no entanto, por ali perde a pose.
Avançando e crescendo, a cidade engole os personagens mais desavisados, que saem de cena sem fazer mossa. Para os que ficam, resta o destino de tentar entender o movimento da roda da vida,
através das lembranças revisitadas e remoídas. Nada neste romance
é dispensável. Cada momento vivido ajuda a construir um mundo que,
ao ruir, se faz cada vez mais imprescindível. Mas tudo acaba sendo
em vão, por nada e para nada. E aí reside o segredo que faz de Carlos Heitor Cony o último grande cronista da movimentação social de um
Rio que não existe mais.