30/07/2003 - 10:00
Uma noite de tempestade no Rio de Janeiro, em 1939, marcaria para sempre a música popular brasileira. Indignado com o dilúvio, Ary Barroso (1903-1960) não pôde sair de seu apartamento. Aflito, resmungou com os familiares e, num repente de costumeiro mal humor, afastou-se de todos e sentou-se ao piano. Depois de alguns acordes e anotações acabou compondo Aquarela do Brasil. Empolgado, tomou uma garrafa de vinho e, mais uma vez tendo o piano como companheiro, perpetrou Três lágrimas. A história está registrada
no livro No tempo de Ari Barroso – o aportuguesamento do nome é por conta do autor –, do jornalista Sérgio Cabral, publicado em 1993, quando Barroso completaria 90 anos. Hoje, no ano do centenário de seu nascimento, os dois clássicos da música tupiniquim voltam a ser lembrados em situação completamente diversa. Aquarela do Brasil e
Três lágrimas integram o repertório do espetáculo Marília Pêra canta
Ary Barroso, cuja estréia acontece na sexta-feira 1º, no Teatro
Cultura Artística, em São Paulo.
Além da inegável importância das duas canções – dignas de qualquer citação ou compilação daquele que foi compositor, pianista, apresentador de programa de calouros, locutor esportivo e flamenguista roxo –, Marília Pêra guarda sentimentos especiais em relação a elas. Ainda menina, a atriz-cantora se encantava com a voz da mãe ecoando Três lágrimas pela casa. “Sou louca por esta música, que ao mesmo tempo contém tanta tristeza e beleza”, disse ela a ISTOÉ. A recordação afetiva de Aquarela do Brasil é outra. Marília a interpretava no final majestoso do espetáculo Elas por ela, de 1989. Agora, a canção inicia o novo concerto. Está agrupada com cinco outras trazendo o lado brejeiro do compositor de obra diversificada, que não exercia um estilo. “Na minha cabeça, o Ary era somente samba-exaltação. Mas no meu trabalho de pesquisa comecei a ver o quão romântico ele era.”
Ao todo, são 21 músicas escolhidas sofridamente entre dezenas para compor um espetáculo de alma feminina, como define o diretor Jorge Takla, também responsável pelo cenário feito de “espelhos irizados”, ou seja, com todas as cores do arco-íris. “Quis fazer algo solar, bem brasileiro, de emoção”, conta Takla. As cores do arco-íris estão presentes inclusive nos figurinos, de autoria de Marília, que inventou uma roupa desdobrada em quatro, criando um efeito teatral, colorido, mas cheio de leveza. É assim que Marília Pêra abre a cortina do passado e encena com a galhardia que lhe é peculiar o espetáculo que, depois de São Paulo, estréia no Rio de Janeiro no final de agosto, e segue para Londres, Lisboa e Porto, sempre acompanhada de um piano, cello e percussão, pilotados só por mulheres. Credenciais internacionais certamente o concerto tem. Mesmo porque a matéria-prima do compositor não deixa de ser um cartão de visitas da música brasileira. E é muito bom o público estrangeiro ver no mineiro Ary Barroso um compositor igualmente capaz de produzir belezas como Risque, Folha morta, Camisa amarela ou Pra machucar meu coração.
Aquarela do Brasil é um caso à parte. Está certo que, passadas mais de seis décadas, a canção se transformou numa espécie de hino nacional. Mas vista hoje com olhares mais críticos, muitos reconhecem nela um “sambinha patriótico”, feito em louvor ao Estado Novo, portanto de referências nada coloridas ou de espírito esfuziante, como indicam seus versos. “Não posso acreditar que algum brasileiro pense nisso”, espanta-se Marília. A filha do compositor, Mariúza Barroso – guardiã de um
precioso acervo que está sendo desmembrado por não encontrar apoio para conservá-lo em local de acesso ao público –, diz que a associação é “pura invencionice”. Também lhe desagrada a imagem de mal-humorado do pai, assim descrito pelos que com ele conviveram. Verdade ou não, sabe-se que quando apresentava um famoso programa de calouros ele não tinha o menor pudor em esculhambar os concorrentes com toda irritação e ironia. Elizeth Cardoso escapou por pouco. Após interpretar
No rancho fundo, de autoria de Barroso e Lamartine Babo, e ganhar um elogio chocho, suando em bicas a cantora desmaiou na coxia. Como descobriu-se em carta do compositor para a filha, publicada recentemente, parecia que só Hollywood despertava em Ary Barroso
a sensação de felicidade. Mesmo assim, ele declinou. Dizia que lá
não havia Flamengo.