O legado deixado pelo governo Fernando Henrique Cardoso ao sucessor no campo da economia tem se revelado, cada vez mais, uma herança do mal. Pela história oficial, a venda das estatais, o fim dos monopólios e a criação das agências reguladoras garantiriam um futuro mais eficiente e de mais conforto para os brasileiros – e dias bem melhores para os governantes. Na conclusão do inventário do espólio, no entanto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pouco tem a comemorar. Os consumidores, que no fim da história é quem vai pagar a conta, muito menos. O lado mais obscuro da herança, que só agora vem ao conhecimento do grande público, remete àquelas letrinhas miúdas que o desavisado não lê ao assinar um contrato e depois morre de arrependimento. É nessas letrinhas que as concessionárias de serviços públicos de telefonia e energia elétrica agora se baseiam para levar os preços à estratosfera e o consumidor à loucura – ou à Justiça, como sugere o próprio governo.

Na assinatura dos contratos de privatização nos anos 90, o governo e as empresas de energia elétrica e de telefonia escolheram o IGP como índice para reajustar as tarifas. Acontece que o Índice Geral de Preços carrega em sua composição uma forte influência dos preços do atacado e, por isso mesmo, sofre o impacto da variação do dólar. Na época, havia uma paridade entre o dólar e o real. Não é de hoje a desvalorização do real, mas só agora, na hora de reajustar os contratos, é que a conta explode. Na média, o aumento desejado pelas empresas de telefone é de 28,75%, com picos que podem chegar aos 41% reivindicados pela Telefonica em São Paulo. Nesse ritmo, a idéia de privatizar para aumentar a competitividade e derrubar os preços mais parece conto do vigário. Antes que o golpe das empresas de telefonia faça escola, o governo anuncia a intenção de promover uma rápida dança dos índices para reduzir o impacto nas contas de luz. Pretende anunciar ainda este mês a troca do IGP-M, o índice atual de reajuste da energia elétrica, pelo IPC-A.

“Eu não só sou contra o índice como entendo que a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) não cumpriu as cláusulas contratuais de defesa do consumidor, de defesa do equilíbrio econômico-financeiro do contrato”, alfineta Miro Teixeira, apontando uma suposta omissão da Anatel por não ter defendido a revisão dos contratos para proteger o consumidor. Antes mesmo de assumir o cargo, em janeiro, Miro já pregava contra a indexação dos preços da telefonia. Estava claro, portanto, que o governo teria de decidir se continuava adoçando
a boca dos investidores com tarifas indexadas ao dólar ou mudava os contratos, como pretende
fazer no setor elétrico.

Distância – Como há uma distância grande entre o discurso indignado
e a prática, a gritaria de Miro Teixeira não surtiu efeito no gabinete
do presidente da Anatel, Luiz Guilherme Schymura, que defende a manutenção dos contratos. O consumidor, por sua vez, se mostra disposto a seguir os conselhos do ministro Miro, de partir para a briga
nos tribunais. De acordo com a Anatel, há 33 ações impetradas contra
o reajuste em cinco Estados. A Advogacia Geral da União (AGU),
também marchando em sentido contrário ao do ministro, entrou
na briga em defesa da Anatel e contra o Instituto Brasileiro de
Defesa do Consumidor (Idec).

No setor elétrico, a briga está só começando. As empresas estão de orelha em pé com as movimentações da ministra das Minas e Energia, Dilma Rousseff. Em suas peregrinações para formular um novo modelo energético para o País, ela inclui sempre a defesa da renegociação dos contratos com a mudança do índice de reajuste. “Precisamos jogar fora o lixo neoliberal deixado pelo governo anterior”, cutuca Luiz Pinguelli Rosa, referindo-se à herança recebida na presidência da Eletrobrás. As reclamações no setor vêm de todos os lados. As distribuidoras, iradas, acusam o governo de querer mudar as regras no meio do jogo. As empresas geradoras alegam que estão vendendo a energia por preços irrisórios. Os consumidores também gritam, mas, como são a ponta mais fraca da corda, sabem que vão acabar pagando a conta. Em um ano, o IGP-M subiu 28,23% e a variação do IPC-A, o índice que o governo pretende adotar, foi de 17,24%. Como vale o que está escrito, as empresas elétricas precisam topar a mudança proposta. Ou seja, é preciso combinar com o adversário. “Temos de usar um índice que o consumidor possa pagar”, defende Pinguelli.

A Light, no Rio de Janeiro, está cobrando US$ 120 pelo megawatt/hora. Desconfiada de que algo estava errado, a Eletrobrás foi ao Primeiro Mundo ver a quantas anda o apetite das empresas de energia. Só para citar um exemplo, na cidade americana de Idaho o megawatt/hora custa US$ 20. A proposta de rever o índice precisa ser exaustivamente discutida com as empresas e tramitar no Congresso. Caso seja aceita, os contratos atuais não serão rompidos, mas um novo será assinado. Afinal, rasgá-los está fora de cogitação.