02/07/2003 - 10:00
No dia 30 de junho faz um ano que Francisco Cândido Xavier deixou a Terra para ir viver no mundo dos espíritos, como costumava chamar o reino da morte. Mas o médium mais famoso do Brasil e – pode-se dizer – o grande responsável pela adesão de muitos dos 2,34 milhões de brasileiros que adotam a sua fé continua presente na cidade que testemunhou sua vida de dedicação. Em Uberaba, Minas Gerais, as ruas e os jardins em volta do Grupo Espírita da Prece, onde Chico Xavier costumava receber mais de mil pessoas por semana em busca de mensagens do além, ainda ficam apinhados de gente. Às quintas-feiras, de 600 a 800 pessoas continuam a receber o prato de comida que Chico Xavier oferecia aos necessitados. A mensagem que ele – agora do lado de lá – enviaria aos que aqui ficaram ainda não veio, mas caravanas de todo o Brasil continuam a chegar à cidade. A cada fim de semana, pelo menos 300 pessoas visitam seus lugares preferidos e a casa simples em que vivia, hoje transformada em museu. No ano que vem, segundo a prefeitura, poderão também conhecer o Memorial Chico Xavier, a ser construído em um dos parques da cidade.
Na moradia de cinco cômodos de Chico Xavier, quase tudo está como ele deixou. Apenas os quadros com fotos dele com amigos foram acrescentados às paredes. Nos quartos, a cama arrumada, as imagens de santos, roupas e até alguns remédios dão a idéia de que ele está para chegar. Penduradas numa parede, as muitas boinas que usava para se proteger do frio nas sessões que iam até de madrugada. Uma missão que ele cumpriu com prazer até dois anos antes da morte, aos 92. Numa saleta, seus livros preferidos e a máquina de escrever que usou para registrar a primeira de suas 412 obras psicografadas e traduzidas em várias línguas. “Animado e alegre, ele gostava de fazer piadas. Não criticava ninguém, mas era muito firme”, relembra Kátia Maria, 38 anos,
a amiga que presenciou seu último momento. “Ele levantou as mãos para o céu como em prece e se foi”, conta ela.
Em seus últimos meses de vida, Chico não podia mais psicografar. Mas só a sua presença servia de lenitivo para o povo. Ele ia até o Grupo Espírita da Prece e a multidão beijava sua mão ou a colocava no corpo como para transferir a energia santa que teria. No cemitério São João Batista, onde está enterrado o seu corpo, as pessoas tentam repetir o ritual. Meio católica meio espírita, a doméstica Débora Mendonça, 23 anos, coloca flores vermelhas perto do busto de bronze, colocado num aparador externo. Passa a mão na imagem de Chico e ora. “Vim pedir a ele um emprego”, explica ela. A dona-de-casa Irani Aparecida de Moura, 52 anos, se aproxima e fala da saudade que sente. “Conheci Chico aos 15 anos. Acostumei a pedir sua bênção. Hoje, peço uma graça para meus filhos”, diz.
O mausoléu, construído pela editora Ideal, de São Paulo, não chega a ser suntuoso, mas chama a atenção. Sobre o túmulo, cercadas por vidros blindados, uma mesa e uma imagem em bronze de Chico com a mão sobre os olhos reproduzem a famosa posição de quando psicografava. O aparato de segurança foi necessário para evitar a violação do túmulo, um receio do médium. “Chegaram a manifestar o desejo de analisar o seu cérebro, já que Chico, apenas com o primário, versava sobre tão profundos assuntos, mas ele não queria que mexessem em seu corpo”, explica o dentista Eurípedes Higino dos Reis, 52 anos. Filho do coração de Chico, Higino dos Reis foi criado pelo médium desde os oito anos. “Morávamos em Ituiutaba. Minha mãe nem conhecia o Chico, mas veio pedir um conselho. Ele a tirou da fila e disse que um filho seu iria trabalhar com ele. Era eu”, relembra.
Em 2001, Higino dos Reis passou por maus momentos ao se separar da mulher, Christine Schultz. Foi acusado de se apropriar do dinheiro de direitos autorais de obras de Chico. Agora, está aliviado. O processo foi suspenso por falta de provas. “A verba em questão se referia à venda de um CD de mensagens, mas a gravadora nunca mandou o dinheiro”, explica José Vasconcellos, advogado de Higino dos Reis. Na época, falou-se até que o filho adotivo de Chico o maltratava, mas a maior prova de confiança nele foi dada pelo próprio médium. Prevendo que muitas mensagens apareceriam em seu nome após a sua morte, o médium combinou um código com apenas três pessoas, entre elas o filho. As outras duas são a amiga Kátia e o médico Eurípedes Vieira, 65 anos. Até hoje, ninguém recebeu a mensagem com o tal código.
Chico Xavier é uma figura respeitada dentro e fora do meio espírita. Entre os que buscaram a comunicação com os mortos estiveram pessoas de todas as crenças. E, com a sua morte, ninguém ficou totalmente desamparado. Apesar de nenhum médium no País se colocar como sucessor de Chico, dois amigos dele realizam o trabalho de psicografia em Uberaba. O ourives Celso de Almeida, 63 anos, e o dentista Carlos Baccelli, 50. Com apenas o curso primário, Celso já psicografou 23 livros e milhares de cartas. Descobriu
a mediunidade aos 14 anos, ao ver o pai morto em pé na porta de seu quarto. “Fiquei apavorado. Não queria saber dessas coisas. Aos 16 anos, fui ao centro do Chico com a minha família só porque não queria ficar sozinho em casa. Ele me falou que íamos trabalhar juntos. Demorei mais de 20 anos para aceitar. Só aos 42 comecei a psicografar”, conta. Hoje, ele atende cerca de 400 pessoas por semana no Centro Espírita Aurélio Agostinho e diz que aprendeu a sentir felicidade ao ver o consolo substituir o desespero no olhar de muitos. Nem todos são atendidos
em sua ânsia de um reencontro por carta. Mas, quando isso acontece,
o sorriso se mistura às lágrimas. A endocrinologista Elvi Cristina Fonseca, 36 anos, foi uma das beneficiadas pela psicografia de Almeida. Ela teve dois filhos gêmeos e perdeu um deles com pouco mais de um ano. “Ele
me explicou que lá não é criança. É um espírito que já viveu outras
vidas. Acredito nas mensagens porque ele fala de coisas que apenas
eu pensei”, conta a médica.
Ao contrário de Almeida, o dentista Carlos Baccelli não relutou em
aceitar o encargo espiritual. Descobriu a psicografia aos 18 anos em casa. Sentiu vontade de escrever e viu no final que era uma mensagem de incentivo para ele mesmo. Começsou a frequentar o centro onde
Chico trabalhava e hoje recebe semanalmente 400 pessoas para as sessões de psicografia no Lar Espírita Pedro e Paulo, que abriga 30 idosos. Baccelli publicou dez livros em parceria com Chico Xavier e escreveu 12 obras biográficas sobre o menino sofrido de Pedro Leopoldo que se transformou no grande líder de almas de Uberaba. O último, Chico Xavier, o apóstolo da fé – 75 anos de mediunidade (Edições Pedro e Paulo), foi lançado pouco antes de sua morte.
No meio editorial, Chico Xavier sempre foi um sucesso, com livros psicografados por ele ou com obras sobre ele. Só um de seus primeiros livros, Nosso lar, pelo espírito de André Luiz, vendeu um milhão de exemplares. Chico sempre doou os direitos autorais às editoras para obras assistenciais. Agora, a literatura espírita começa a despertar o interesse de grandes editoras. Não à toa. No ano passado, foram vendidos sete milhões de livros de cunho espiritualista. A Siciliano lançou recentemente seu primeiro livro espírita Do outro lado da vida, de Ricardo Magalhães, que traz as revelações de um jovem feitas pela psicografia de Chico. A Editora Planeta está lançando este mês As vidas de Chico Xavier, do repórter Marcel Souto Maior, que fez mais de 100 entrevistas sobre o médium Sem ter abraçado nenhuma religião, Marcel afirma que resolveu fazer a biografia porque as disponíveis eram feitas por espíritas. “Não havia nenhuma com uma visão mais distante, jornalística”, conta ele. Apesar do ceticismo, o repórter terminou a obra bastante impressionado com o que viu e ouviu. “Chico foi uma pessoa ímpar”, diz o autor.
A mesma opinião tem o médium Carlos Baccelli, que não se conforma com a indiferença das autoridades com o ilustre morador. “Ele era uma referência nacional. E aqui foi pouco homenageado. Niterói, Taubaté e até Pedro Leopoldo saíram na frente e deram o nome de Chico a ruas e praças”, reclama. A falta de reconhecimento poderá ser corrigida em 2004, segundo o secretário de Planejamento da cidade, Gilberto Facury Dib. Um projeto de R$ 400 mil, já aprovado, prevê a construção do Memorial Chico Xavier na Mata do Carrinho, parque nativo de 132,5 mil metros quadrados. Sem derrubar nenhuma árvore, assegura o secretário, serão levantados 800 metros quadrados em três andares, com biblioteca, espaço para exposição e auditório. “Na entrada, haverá uma grande cruz, símbolo universal do cristianismo, e um pequeno espelho d’água. Será algo no estilo do Chico, modesto e sem ostentação”, explica Dib.