Driblar a escassez de recursos para pesquisas sempre foi, para os cientistas brasileiros, uma tarefa tão desafiadora quanto a de apresentar descobertas. Não por acaso, o País perdeu nas últimas décadas vários cérebros importantes para nações que abriram suas portas – e seus cofres. O paulistano Miguel Nicolelis é um deles. Ele trocou a Universidade de São Paulo pela de Duke, nos EUA, onde encontrou condições que lhe permitiram desvendar os mistérios do cérebro humano. Uma das maiores autoridades mundiais da neurociência, Nicolelis fez descobertas que servem de base para a medicina do futuro. Entre elas estão as próteses robóticas e os implantes neurais que vão permitir que as células cerebrais sejam reprogramadas para assumir novas tarefas. No final deste mês, ele inaugura, em Natal (RN), o primeiro pólo de educação e pesquisa científica do Brasil. Em uma das frentes, Nicolelis quer que 150 estudantes da rede pública se transformem em cientistas. Convidados por ele, cientistas brasileiros estão voltando do Exterior para viver em Natal. Em parceria com centros de referência nos EUA e na Europa, esse grupo dará continuidade ao trabalho de Nicolelis para aprimorar a capacidade cerebral humana e enfrentar os desafios do próximo século. “Nós temos muitos Santos Dumont. Precisamos dar a eles condições de desenvolver novas plataformas de idéias”, acredita. Ex-militante estudantil, período do qual ainda conserva uma vistosa barba, ele defende um diálogo maior entre os cientistas e a sociedade. “A divulgação científica ajuda as pessoas a conhecer os avanços do mundo e a criar acessos a esse conhecimento”, define. Um detalhe confere beleza adicional ao brilhante trabalho de Nicolelis: ele reserva a Ivy e Aurora, as duas macacas usadas em suas pesquisas, um carinho que muitas vezes não se identifica entre seres humanos. De passagem por São Paulo, às vésperas de uma viagem à Suíça, ele deu a seguinte entrevista a ISTOÉ:

ISTOÉ – ISTOÉ ? O que ainda existe de mistério no funcionamento do cérebro?
Miguel Nicolelis

Miguel Nicolelis – Estamos em um estágio avançado. Há dez anos, deciframos o tipo de mensagem elétrica enviada pelo cérebro para movimentar um dos braços de um macaco. Depois disso, conseguimos induzir os animais a acionar um braço mecânico como se fosse um de seus membros de verdade. Recentemente, demos mais um passo trilhando o caminho inverso. Enviamos para a mesma região do cérebro uma mensagem elétrica que se espalhou e foi entendida a ponto de determinar movimentos, fazendo o braço de um dos macacos mexer ora para a esquerda, ora para a direita. Posteriormente, conseguimos definir tarefas mais complicadas como “mexa para a esquerda, abaixe e traga essa banana”. Foi um grande avanço.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Como o cérebro dos animais recebe esses sinais?
Miguel Nicolelis

Nicolelis – Por meio de um chip implantado no córtex motor, a área responsável pelos movimentos do corpo. Esse dispositivo espalha a mensagem pelo cérebro, que a decodifica e transforma em um comando motor que aciona a musculatura do braço.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Qual o limite para a execução dessas tarefas?
Miguel Nicolelis

Nicolelis – Ainda estamos medindo quantos bytes (unidades de informação em um computador) podem ser transmitidos de uma vez ao chip. Quanto maior esse número, mais complexas são as tarefas que podem ser executadas.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Funcionaria da mesma forma nos humanos?
Miguel Nicolelis

Nicolelis – Sim. Num primeiro momento, esse trabalho abre perspectivas para os portadores de deficiência física. Mas alguns centros de pesquisa tentam criar ferramentas para potencializar as habilidades humanas a partir da fusão de nossa capacidade biológica com a dos computadores.

ISTOÉ – ISTOÉ ? O que pode surgir daí?
Miguel Nicolelis

Nicolelis – Qualquer previsão é simples futurologia. O grau de complexidade dos humanos não é o mesmo de um macaco que hoje nos ajuda nos testes preliminares. Hoje só temos uma possibilidade de aprimorar as habilidades humanas: a prótese auditiva. Cerca de 100 mil pessoas fazem uso desse chip que “recupera” boa parte da capacidade do nervo auditivo.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Então seremos meio máquinas?
Miguel Nicolelis

Nicolelis – As chances são grandes, mas a idéia de ciborgues é totalmente exagerada. Nossas pesquisas indicam que o cérebro evoluiu em formas de comunicação que extrapolam os limites do nosso corpo, mesmo com uma capacidade de aprendizado contínuo. Se o organismo humano recebe uma informação, acaba se adaptando com os recursos de que dispõe para dar uma resposta a esse estímulo. Estamos testando em laboratório o que aconteceria caso conectássemos o cérebro a um sensor de campo magnético ou de infra-vermelho. A tese é a de que ele irá se adaptar para interagir. Se isso acontecer, será uma prova de que teremos condições de responder a estímulos que não se limitam ao toque ou ao raio de visão, como as já citadas ondas eletromagnéticas.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Pode dar um exemplo?
Miguel Nicolelis

Nicolelis – Poderíamos experimentar a sensação de caminhar em Marte sentados no sofá de casa. Controlaríamos naquele planeta robôs cujos sensores mandariam sinais elétricos referentes a temperatura e pressão, por exemplo, diretamente para os chips implantados em nosso cérebro. Esses chips recriariam o ambiente marciano, transmitindo para o ser humano a impressão de estar lá.

ISTOÉ – ISTOÉ ? A realidade, então, não seria algo concreto, e sim uma construção cerebral?
Miguel Nicolelis

Nicolelis – Sim, mas ela é uma mistura das informações externas com tudo o que experimentamos ao longo da vida. Nesse caso, podemos nos comparar aos computadores. Nosso cérebro está para o hardware da máquina assim como os softwares (programas) que nela instalamos estão para os estímulos que recebemos do mundo. São os softwares que modificam nossa visão de mundo, deixando nosso cérebro mais capaz e com melhor desempenho.

ISTOÉ – ISTOÉ ? O envelhecimento e a perda de neurônios não comprometem essa capacidade?
Miguel Nicolelis

Nicolelis – Começamos a perder células cerebrais a partir dos 18 anos, mas não existe nenhum comportamento que dependa de um único neurônio. O cérebro pode usar múltiplas combinações de neurônios para cumprir uma mesma tarefa.

ISTOÉ – ISTOÉ ? É possível programar outras regiões do cérebro para realizar um comando?
Miguel Nicolelis

Nicolelis – Isso se chama plasticidade neural e é feita por meio de chips implantáveis que nada mais fazem do que recrutar neurônios para substituir os que não funcionam mais. Para isso precisamos reagrupar pelo menos mil células sadias. Em casos de acidentes, com perda de massa cerebral, muitas vezes não conseguimos reagrupar um número suficiente de células.

ISTOÉ – ISTOÉ ? As próteses robóticas vão demorar para se tornar realidade?
Miguel Nicolelis

Nicolelis – Essa área está num grau de maturidade impressionante, mas falta um último passo para evitar a reação cerebral aos implantes. Os chips provocam uma inflamação violenta na área do cérebro que fica em contato com os filamentos dos eletrodos responsáveis por mapear a atividade elétrica das células. Alguns pesquisadores tentam desenvolver um revestimento para esses filamentos à base de antiinflamatórios. Estamos em uma fase parecida com a que antecedeu o lançamento do marcapasso.

ISTOÉ – ISTOÉ ? O que aconteceu com o cérebro dos animais testados em seu laboratório?
Miguel Nicolelis

Nicolelis – Quando as duas macacas (Ivy e Aurora) começaram a movimentar um braço mecânico extra, suas células cerebrais incorporaram as propriedades deste terceiro braço como se fossem parte do corpo delas. Isso não alterou a capacidade de mexerem seus dois braços. O experimento provou que o cérebro incorpora as ferramentas que criamos. O criador absorve a criatura.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Como melhorar as nossas capacidades cerebrais?
Miguel Nicolelis

Nicolelis – A atividade intelectual é importante. Vale tudo: ir à ópera ou ao forró. O que importa é manter a cabeça ativa em busca de desafios e prazer. E isso depende bastante da história de vida de cada um. A trajetória individual das pessoas tem peso primordial na configuração do cérebro.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Falta estímulo para que o brasileiro tenha boas idéias?
Miguel Nicolelis

Nicolelis – Sem dúvida. A universidade está formando profissionais cada vez mais voltados ao mercado de trabalho e se esquece de estimulá-los à criatividade. E isso se reflete nos laboratórios. A ciência brasileira ainda não atingiu seu potencial mais amplo. No Brasil, o cientista tem de passar pela universidade, fazer doutorado, pós-doutorado para conseguir fazer alguma coisa, levar adiante algum estudo. Santos Dumont nunca precisou enfrentar uma banca de examinadores e entrou para a história como o maior cientista brasileiro.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Qual seria a saída?
Miguel Nicolelis

Nicolelis – Desmistificar a ciência. Em fevereiro vou inaugurar em Natal, no Rio Grande do Norte, um projeto de educação científica para 150 crianças da rede pública. Elas serão cientistas com o que tiverem à mão. Aprenderão biologia a partir da análise do solo do bairro onde moram para que percebam quanta vida existe em um pedaço de terra. Com um telescópio, olharão para o céu e passarão à matemática. O que falta é mostrar que a ciência é fruto da combinação de talento, paixão, perseverança e, sobretudo, interesse.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Por que Natal?
Miguel Nicolelis

Nicolelis – A escolha é uma tentativa de descentralizar a produção científica. O federalismo pressupõe a realização de pesquisas de boa qualidade fora do eixo Rio–São Paulo. Fora isso, a capital potiguar é uma cidade de médio porte, está a quatro horas da Europa e deverá ter brevemente acesso direto aos EUA. Isso facilitará o intercâmbio que mantemos com alguns dos centros de pesquisa mais importantes do mundo. Já estamos integrados com a Universidade Duke, nos EUA, onde sou responsável por um laboratório de bioengenharia, com o Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, com a Escola Politécnica de Lausanne, na Suíça, e com o ATR, no Japão, um dos mais renomados centros de robótica do mundo.

ISTOÉ – ISTOÉ ? De onde vem a verba?
Miguel Nicolelis

Nicolelis – O orçamento da construção dos prédios era de US$ 20 milhões. Essa quantia não levava em conta o custo operacional. Ao todo o projeto deverá consumir US$ 35 milhões. Cerca de 80% dos recursos vieram do governo americano, representado por diferentes instituições, e também de fundações privadas, como a do ator Cristopher Reeve. Há também doadores particulares. Uma pequena parte veio do governo brasileiro. Não estou tomando dinheiro de pesquisas ditas importantes do Sul do País, como disseram vários dos nomes mais relevantes da ciência nacional.

ISTOÉ – ISTOÉ ? O sr. teria conseguido levar adiante um projeto desse tipo sem ter saído do Brasil?
Miguel Nicolelis

Nicolelis – Eu saí do País porque não conseguia espaço e verbas. As estruturas de fomento federal são arcaicas e não têm compromisso com a sociedade. Os agentes acham que são estrelas e se esquecem que só existem em função do cientista, que por sua vez representa a sociedade. No final das contas, é o contribuinte quem financia as pesquisas. Nos EUA, o governo aplica US$ 200 bilhões em ciência por ano. A iniciativa privada entra com outros US$ 200 bilhões. O setor de tecnologia da informação destina mais US$ 250 bilhões. Some tudo isso e terá o PIB brasileiro. Quem abre mão da ciência perde o bonde do desenvolvimento.