Até pouco tempo atrás, as pessoas iam assistir a um filme de animação para curtir o coloridíssimo visual, rir das trapalhadas dos bichinhos falantes e, ao final, sair cantalo-rando alguma música especialmente composta para a história. Hoje, além da perfeição dos movimentos arquitetados pela computação gráfica, os desenhos animados oferecem uma atração irresistível. Cada vez mais os estúdios recorrem a vozes célebres para dar vida aos personagens. O auge da investida em nomes consagrados de Hollywood chega aos cinemas no dia 8 de outubro com O espanta tubarões, da DreamWorks, que trará na versão original os gogós de Robert De Niro, como o raivoso tubarão Don Lino, e Will Smith como Oscar, um peixinho bem invocado. A trama mafiosa passada no fundo do mar ainda conta com a participação de Angelina Jolie, Renée Zellweger, Martin Scorsese e Jack Black, cujos nomes aparecem em destaque no cartaz. Criada com a intenção de dar mais charme aos desenhos e, obviamente, atrair marmanjos para um gênero tipicamente infantil, tal estratégia tem gerado ótimos resultados. Em dois meses de exibição, Shrek 2, da mesma DreamWorks, já fez mais de 425 milhões de espectadores só nos Estados Unidos, tornando-se o quinto filme mais visto no país.

Aumenta-se o faturamento enquanto os cachês crescem na mesma proporção. Em entrevista ao The Wall Street Journal, o produtor Jeffrey Katzenberg, da DreamWorks, declarou que Mike Myers, Eddie Murphy e Cameron Diaz – o trio de vozes protagonistas de Shrek 2 – receberam cada um a bagatela de US$ 10 milhões. “É o maior salário da história da animação. E eles merecem cada centavo.” Dublador brasileiro do ogro verde, o humorista Bussunda diz que estaria satisfeito só com 0,5% de tal cachê. Mas não deve se queixar. Por quatro dias de trabalho o casseta & planeta embolsou a nada desprezível quantia de US$ 20 mil. “Do ponto de vista mercadológico esta estratégia faz o maior sentido”, afirma Bussunda. “Ao se convidar um ator famoso para fazer a voz, se vende mais o filme.”

No Brasil, a onda começou com a Walt Disney Company, que em 1996 inaugurou o núcleo especializado Disney Character Voices. Segundo Eduardo Rosemback, diretor de marketing da empresa, o primeiro trabalho com famosos foi em Tarzan (1999), trazendo Eduardo Moscovis na voz do Homem Macaco. “A intenção inicial era aumentar a aceitação das cópias dubladas, vistas com ranço pelo público”, assinala Rosemback. De lá para cá, Antonio Fagundes, Marieta Severo, Maitê Proença, Marco Nanini e até Hebe Camargo já deixaram sua marca em desenhos animados. Mas agora, as contratações estão se tornando mais sistemáticas. Cesar Silva, diretor da United International Pictures, explica que no Brasil o critério é uma soma do perfil do personagem do desenho com o perfil do ator originalmente escolhido para fazer a voz. “Ele precisa ter carisma para o público-alvo e para a imprensa. Nosso objetivo é também gerar notícia.”

Assim aconteceu a escolha de Antonio Calloni para Garfield – o filme, da 20th Century Fox. Nada preguiçoso, o ator ficou quatro dias trancado num estúdio para abrasileirar as tiradas sarcásticas do gato laranja, tarefa que nos Estados Unidos coube a Bill Murray. “Estudei o Garfield como qualquer outro personagem”, conta Calloni. “A criança pode não perceber quem está interpretando, mas com certeza vai ser tocada pela atuação”, afirma. E o cachê? “Foi suficiente para comprar muitas lasanhas”, despista ele. A mais recente militante do rendoso ofício é Fernanda Montenegro, escondida na figura da Senhora Calloway, uma das três simpáticas ruminantes de Nem que a vaca tussa, papel que no original coube à atriz inglesa Judi Dench. Por trás da petulante Maggie, a maior vaca do mundo, feita nos Estados Unidos por Roseanne Barr, brilha a comediante Cláudia Rodrigues do seriado A diarista, da Rede Globo. “O problema da dublagem é que a máscara já vem pronta. Por mais que você crie, não pode sair dali”, explica a atriz, que usou artifícios como chupar bala nas cenas em que Maggie fala com a boca cheia de capim. Figura atuante na indústria da animação americana, o brasileiro Carlos Saldanha – co-diretor de A idade do gelo e autor do inédito Robots, cuja estréia está prevista para março de 2005 – vê todas essas mudanças com naturalidade. “Antes, as vozes dos desenhos animados eram muito parecidas com as dos cartoons, falsas e forçadas. Hoje, o que se busca é uma interpretação mais natural.” Ele explica que no caso da DreamWorks, a seleção dos nomes é agressiva e aguçada. “A gente faz um trabalho oposto. Desenvolve o personagem baseado num roteiro e só depois procura um ator com seu perfil. A Pixar também trabalha assim, que é a maneira mais lógica.” Com a DreamWorks, o arremate se dá no próprio desenho dos personagens, que trazem feições parecidíssimas com as dos atores que fazem as vozes.

Com tanta exposição da imagem dos astros, é natural que os cachês se tornem cada vez mais altos. Mas a inflação da área é recente. Sabe-se, por exemplo, que para fazer o gênio azul de Aladdin (1992), da Disney, Robin Williams recebeu “apenas” US$ 75 mil. Diante dos US$ 500 milhões arrecadados pelo filme, ele bateu os pés e ganhou do estúdio uma tela de Picasso. Tom Hanks foi outro que não conseguiu assinar um bom contrato com a Pixar ao dar voz para o xerife Woody, de Toy story (1995). Recebeu US$ 50 mil. Quatro anos depois, contudo, ao repetir a dose em Toy story 2, embolsou US$ 5 milhões. De olho no filão, ele resolveu bancar do próprio bolso O expresso polar, previsto para estrear em 26 de novembro, no qual faz a voz dele próprio.

A escalada das vozes célebres tem indignado a classe americana dos dubladores. Por aqui, onde um profissional não famoso ganha R$ 54,60 por hora, acontece o mesmo. Gilberto Baroli, voz do robô do cultuado seriado Perdidos no espaço, é um dos insatisfeitos. “O mercado cresceu para os atores globais. São quatro ou cinco filmes que exigem estrelas da televisão porque usam atores da Globo de lá.” Selton Mello, que iniciou sua carreira aos 12 anos como dublador e recentemente participou das versões de A nova onda do imperador e Irmão urso, acha o processo irreversível. Para ele, o valor pago aos colegas de tevê é mais que justo. “Você não recebe apenas pela dublagem, mas pela cessão da imagem. Nossas fotos aparecem no DVD e nas campanhas promocionais.” E assim vamos todos ao cinema.