28/07/2004 - 10:00
"Era o melhor dos tempos e o pior dos tempos; a idade da razão e a idade da estupidez; a primavera da esperança e o inverno do desespero; tínhamos tudo em nossa frente e nada tínhamos em nossa frente.” Assim o escritor inglês Charles Dickens inicia a narrativa, em Um conto de duas cidades, dos tumultuados tempos da Revolução Francesa (1789-1799). Numa escala infinitamente menor, esses paradoxos descrevem o clima de euforia e temor despertado pela Revolução Sandinista na Nicarágua, que eclodiu em 17 de julho de 1979 e pôs fim a quatro décadas de uma sangrenta e corrupta tirania familiar, capitaneada por Anastasio Somoza Debayle e apoiada por Tio Sam. Agora, ao completar bodas de prata de sua vitória, o movimento inspirado no líder guerrilheiro Augusto César Sandino (1895-1934) e que chegou a substituir Cuba no imaginário revolucionário latino-americano tem pouco a comemorar, com um legado de fracassos, corrupção e oportunismo.
É bem verdade que os rebeldes transformados em governantes da noite para o dia receberam, eles sim, uma herança maldita: a Nicarágua estava arrasada pela guerra, pela crise e ainda pelos efeitos econômicos do terremoto de 1972. Os sandinistas tentaram montar um Estado diferente, na forma, do figurino marxista-leninista de partido único. Montaram uma junta com a participação de liberais e mantiveram um sistema político pluripartidário. O poder real, contudo, se concentrava nas mãos de um diretório de nove comandantes da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) – o que acabou levando à ruptura com os liberais já em 1980.
Mas o que entornou o caldo foi a ascensão de Ronald Reagan à Casa Branca, em 1981. O ex-ator de Hollywood, virulentamente anticomunista, estava convencido de que os sandinistas liderados por Daniel Ortega davam apoio às guerrilhas de esquerda em outros países da América Central, como em El Salvador, e que não passavam de lacaios de Cuba e da URSS. Os EUA não apenas suspenderam toda a ajuda à Nicarágua como lhe impuseram um boicote econômico. Para completar, Reagan enviou dinheiro e armas aos rebeldes anti-sandinistas, os “contras” (de “contra-revolucionários”), a maioria formada por ex-integrantes da famigerada Guarda Nacional de Somoza. Acossado, o regime sandinista recorreu à ajuda militar de Havana e Moscou, censurou a imprensa, prendeu oposicionistas e implantou um modelo socializante de economia, embora jamais tenha suprimido o setor privado.
Nas eleições de 1984, boicotadas pela oposição, Daniel Ortega ganhou com 60% dos votos. Mas a guerra, aliada à desastrosa política econômica dos sandinistas, levou o país à bancarrota. A implosão do bloco socialista completou o estrago, obrigando Manágua a negociar com os rebeldes e a afrouxar os controles no pleito de 1990. Derrotados, os sandinistas cumpriram as regras do jogo e entregaram o governo à oposição, mas não sem antes “privatizar”, em benefício próprio, várias propriedades públicas. De lá para cá, convertidos à demagogia, os herdeiros de Sandino desceram à vala comum dos políticos “burgueses”, com alianças as mais espúrias possíveis. Mesmo assim, jamais conseguiram voltar ao poder. E o fim da guerra fria trouxe a miserável Nicarágua de volta ao limbo. Em tempos difíceis, como sabia Dickens, as grandes esperanças podem se transformar em desespero.