No início dos tempos, foi assim. De manhã, criaram o governo. À tarde, nasceram as empresas. Antes do anoitecer, eles já discutiam sobre os impostos. Quem recolhe sempre acha que é pouco. Quem paga, seja quanto for, invariavelmente se considera usurpado. Na semana passada, esse combate atemporal virou guerra no Brasil. Como a paz total nessa área é um objetivo impossível, fez-se a trégua: na noite da terça-feira 20, o Ministério da Fazenda, depois de muita gritaria do setor produtivo, da reclamação de aliados políticos e de uma intervenção do presidente Lula, desistiu de aumentar a contribuição patronal à Previdência de 20% para 20,6% a partir de novembro. A elevação havia sido decidida na sexta-feira 16 e tinha destino certo. Serviria para cobrir uma dívida que o governo tem com os aposentados de R$ 12,3 bilhões, nascida há dez anos, na época em que a moeda era baseada na URV. O compromisso será honrado, mas com outra fonte de recursos. Um pacote de alívio da carga tributária que estava em estudo vai sofrer adaptações para abrigar a despesa extra, que terá como destino os bolsos de 1,8 milhão de pensionistas.

“O presidente está sensível à solicitação que recebeu das lideranças empresariais e do Congresso”, disse o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, ao anunciar o passo atrás. Ele saiu do episódio carregando sua primeira derrota política em 18 meses no cargo. No dia anterior, já sob forte pressão, ele defendeu a cobrança. “Não há outras opções. Poderia aumentar outro tipo de imposto que as coisas não mudariam”, afirmou, em entrevista à Rede Globo, na qual reiterou diversas vezes o compromisso da administração petista em não aumentar a carga tributária (a promessa nunca foi a de reduzi-la). No fim do episódio, ficou decidido que nenhuma taxa será aumentada. Mas, com certeza, algumas delas deixarão de ser reduzidas.

O governo percebeu que errou a mão quando até seus aliados engrossaram
o coro dos descontentes. João Paulo Cunha, presidente da Câmara, disse
que os deputados “não ficariam confortáveis” votando o aumento. O presidente do PT, José Genoino, disse que não via a proposta com “simpatia”, apesar de defender uma saída para a dívida, “herdada” da administração tucana. A oposição mostrou-se indignada. “O governo precisa enxugar a máquina, e não aumentar impostos”, bradou Jorge Bornhausen, presidente do PFL, que continuou reclamando mesmo após o recuo.

O setor privado também fez soar suas trombetas. A Associação Comercial de São Paulo montou um “Feirão do Imposto” no centro da cidade. As mercadorias expostas tinham a composição de seus preços decifrada. Quem parou para observar descobriu que, por exemplo, um quilo de açúcar tem 40,5% do seu valor inflado por tributos. “Essa é uma ação de cidadania, para que o consumidor possa exigir melhores serviços públicos como contrapartida”, diz Guilherme Afif Domingos, presidente da associação, que pretende levar o evento a outras capitais brasileiras. O Feirão estava programado há meses e não poderia ter acontecido em momento melhor. “Redução da carga tributária é nossa bandeira antiga”, afirma Afif.

Enquanto os empresários voavam no pescoço da equipe econômica contra o aumento da contribuição, surgia o mais cristalino sinal de que a máquina federal anda cheia de apetite: a Receita Federal anunciou mais um recorde de arreca-
dação. Em junho, entraram nos cofres públicos R$ 26,5 bilhões, ou quase 30% a mais do que no mesmo mês do ano passado. No acumulado do semestre, a Receita Federal soma R$ 155,8 bilhões recolhidos, 8,8% a mais do que nos primeiros seis meses de 2003.

A recuperação da economia foi o principal motor da arrecadação. Mas chama a atenção o obtido com a Cofins, contribuição alterada pelo governo: 40,7% a mais. Para a oposição, é a prova de que o governo Lula está aumentando a carga
tributária. “Não foi só a Cofins que cresceu. A economia cresceu”, disse o secretário-adjunto da Receita, Ricardo Pinheiro. Quem pode comemorar é o
grupo de aposentados credor do governo. O excedente arrecadado será utilizado para começar a pagar a dívida, segundo o ministro do Planejamento, Guido Mantega. Ele considerou o recuo a prova de que o governo preza o diálogo. “É importante ter um governo flexível”, disse.

O recuo, de fato, deixou a impressão de que o governo pretende honrar a palavra de não subir impostos. O problema é que eles já estão nas alturas. No primeiro trimestre do ano, a carga tributária atingiu 40,01%, segundo cálculos do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT). Em outros termos, o estudo afirma que, a cada R$ 10 que circulam na economia, R$ 4 serão tragados pela máquina pública. A Receita considera o cálculo uma “maluquice”, mas os dados oficiais também mostram uma situação fiscal digna de Primeiro Mundo – enquanto os serviços públicos ainda provocam muita insatisfação na população. Em 2002, a mordida chegou a 35,86% do produto interno bruto. Dez anos antes, a carga fiscal era de 25,28%. Portanto, cada ano representou um ponto porcentual a mais.

Palocci sempre cita esse dado quando é questionado sobre o assunto. Numa entrevista ao jornal inglês Financial Times, ele disse com todas as letras que os impostos não serão reduzidos durante o governo Lula: “A redução da carga tributária não é possível no curto prazo devido aos gastos e obrigações sociais.”

Sair no encalço dos sonegadores pode ajudar a equilibrar as contas federais
sem a necessidade de aumentar impostos. Na semana passada, um equipamento dos sonhos de qualquer administrador público começou a funcionar na fábrica de cerveja da AmBev em Jaguariúna (SP). Acoplado à tubulação da companhia, ele envia dados em tempo real à Receita sobre o volume produzido. O sistema é à prova de fraudes e pretende moralizar um setor reconhecido pela, digamos, fragilidade das informações prestadas. Imagine se fosse possível adaptar uma maquininha dessas em todas as atividades produtivas e de serviços. Certamente, o mundo caminharia para a autodestruição.