12/01/2005 - 10:00
A Renascer, dirigida por Vera Cordeiro (acima, ao centro), acompanha crianças internadas em hospital do Rio de Janeiro: exemplo de política pública
Foi fora do País, no encontro de Davos, na Suíça, em 2003, que o presidente Lula soube da experiência da ONG Saúde Criança Renascer, do Rio de Janeiro. Naquele momento, líderes de projetos sociais brasileiros sugeriram a Lula que não “reinventasse a roda” e valorizasse iniciativas de comprovado êxito, como a da organização, que poderiam se tornar uma política pública do governo no combate à desigualdade social. Em momentos diversos, personalidades como a ex-primeira-dama Ruth Cardoso, o sociólogo Betinho (morto em 1997) e a mulher de Nelson Mandela, Graça Machel, também ressaltaram o trabalho da entidade como modelo de atendimento integral na área de saúde e de mobilização da sociedade no combate à exclusão.
Os elogios não são excessivos. A Renascer, criada em 1991 pela médica carioca Vera Cordeiro, atende mensalmente 250 famílias carentes do subúrbio do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense que têm filhos internados no Hospital da Lagoa, no Jardim Botânico. Dá acompanhamento nas áreas de saúde, educação, moradia, geração de renda e cidadania. Oferece cursos profissionalizantes, orientação psicológica, ajuda para a compra de remédios e alimentos e até para a reconstrução de moradias. Familiares também participam de palestras sobre doenças sexualmente transmissíveis, aleitamento materno e planejamento familiar.
Pouco antes do encontro com Lula em Davos, a entidade recebeu, no Cairo,
o prêmio The Most Innovative Social Project (projeto social mais inovador do
mundo), do Fórum Global Development Network, organizado pelo Banco Mundial, pelo governo do Japão e pela empresa Merck Sharpe Dome. Disputou o título com 400 instituições do mundo inteiro e ganhou US$ 100 mil, dinheiro utilizado na construção de uma nova sede.
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A ONG teve o reconhecimento por buscar uma forma de interromper o ciclo vicioso “miséria-doença-internação-reinternação-morte” de crianças pobres e suas famílias. Quando trabalhava na pediatria do Hospital da Lagoa, Vera Cordeiro constatou que não adiantava apenas dar o tratamento para aquelas crianças. Em menos de seis meses, 60% delas retornavam com o mesmo problema. E não voltavam por causa de bactérias, mas em razão da miséria na família, da falta de emprego, educação e moradia. “As crianças tinham tuberculose porque não comiam e pneumonia por causa da imunidade baixa”, lamenta. “Alguma coisa precisava ser feita. Então, nos reunimos e rifamos um lençol e ali nasceu a Renascer.”
Funcionários do hospital e voluntários começaram a se encontrar no Parque Lage, no Jardim Botânico, num espaço cedido gratuitamente, onde antes guardavam-se cavalos. O grupo juntava dinheiro, todos os meses, para comprar remédios e mantimentos, que eram distribuídos às famílias. “Algumas mães pediam um pedaço de pano ou lençol para cobrir os filhos. Mas elas queriam um agasalho. Afinal, se um menino com câncer ficasse gripado, a quimioterapia era interrompida”, lembra Vera. “Fazíamos uma caixinha para mães sustentarem crianças que tinham alta. Uma delas se internava repetidamente com pneumonia. Fui investigar e percebi que tinha goteiras na casa. Mas se o médico prescreve o remédio e a psicóloga lida com o emocional, quem lida com a miséria?”
A ajuda gerou críticas de setores que consideravam essa ação assistencialista.
Mas Vera obteve o apoio de Betinho, criador da Ação da Cidadania contra a Fome
e a Miséria. “Ele disse que assistencialismo era para quem tinha arroz e feijão
em casa. Para quem não tinha, não havia outro jeito. Ele abriu as portas e assinou cartas de recomendação para obtermos ajuda”, relata. Quando as famílias
chegam na entidade, é feito um diagnóstico da situação e, em seguida, um plano de ação. Depois, uma assistente social visita a residência. Durante um período determinado, é dada a ajuda. A faxineira desempregada Lília Carvalho, dois filhos e moradora de Bangu (zona oeste do Rio), é uma das que recebem apoio. O marido, pedreiro, também está sem trabalho. “Com essa força, a gente vai se reestruturando”, afirma Lília. No projeto, a “alta” só é dada quando todas as
crianças da família estiverem na escola e pelo menos um adulto conseguir renda entre R$ 180 e R$ 250, além do dinheiro para o aluguel.
Desde sua fundação, a Renascer atendeu sete mil crianças e duas mil famílias. A experiência já é reproduzida hoje em outros 14 hospitais públicos – 11 do Rio, um de São Paulo, um do Recife (PE) e um de Joinville (SC) –, através da Rede Saúde Criança. Ela é formada por organizações “irmãs”, que repetem o modelo, mas com autonomia, e têm nomes como Reviver, Reerguer, Reluzir e Revitalizar. Também foi criado o Friends of Renascer, em Nova York, para difundir a iniciativa em outros países. No total, são 20 mil pessoas atendidas.
No quadro de conselheiros, a ONG tem nomes como Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, e a empresária Vivi Nabuco. A lista de voluntários reúne 170 integrantes, entre eles as atrizes Camila Pitanga, Malu Mader e Fernanda Torres. Para arrecadar recursos, são vendidos objetos como o pingente de prata Chiquinho, símbolo da entidade, produzido por adolescentes da zona leste de São Paulo.
No início, sem apoio, Vera admite que chegou a parecer uma drogada em casa ao recolher tudo o que via pela frente para vender e ajudar as famílias. “Minhas filhas chegaram a esconder tênis no guarda-roupa e trancar, com medo de que eu os levasse”, relembra. Mas, sua persistência e obstinação deu resultado e o projeto se viabilizou. Agora é apoiado por empresas como White Martins, Petrobras, L’Oréal e Queiroz Galvão, e instituições como Avina, Ashoka e Fundação Schwab. “Hoje, estamos tocando num problema central: transformar o miserável em pobre. A pobreza tem dignidade, mas a miséria não tem dignidade nenhuma”, sentencia.