28/07/2004 - 10:00
Os dias começam sempre iguais para os 4.600 funcionários do Magazine Luiza, uma cadeia de móveis e eletroeletrônicos com sede em Franca (SP). Pontualmente às 7h45, canta-se o hino e hasteia-se a bandeira nacional nas 185 lojas da empresa. As vendas só começam depois de cumprido o ritual, um tanto fora de moda por causa da sua identificação com o regime militar. A dona do negócio, Luiza Helena Trajano Rodrigues, não se importa com as eventuais críticas. Foi ela quem teve a idéia de adaptar a cerimônia patriótica ao comércio, dez anos atrás. “A gente precisa valorizar as coisas do Brasil”, diz a executiva, que anda percorrendo o País fazendo palestras sobre como transformou um pequeno comércio interiorano numa rede que fatura mais de R$ 1 bilhão anuais. Sua receita é tão simples quanto eficiente: seus funcionários são estimulados a permanecer de cabeça erguida, em qualquer circunstância. “Sempre acreditei que a auto-estima é fundamental. Sem ela, nada vai para a frente”, filosofa Luiza Helena, que acaba de arrematar os 51 pontos-de-venda da rede gaúcha Arno.
A empresária não é, mas poderia muito bem ser um dos personagens da campanha “Eu sou brasileiro e não desisto nunca”, criada pela agência Lew Lara a pedido da Associação Brasileira dos Anunciantes (ABA), em resposta a um desafio lançado pelo secretário de Comunicação do governo, Luiz Gushiken. “Ele deixou claro que a iniciativa só teria êxito se o setor privado fosse o protagonista e o governo tivesse papel de mero coadjuvante”, contou o publicitário Luiz Lara. A idéia básica é levantar o moral da população, historicamente pouco confiante no seu próprio potencial.
Os primeiros comerciais televisivos, que contam as histórias das viradas do músico Herbert Vianna, do craque Ronaldinho e de dois cidadãos anônimos, foram lançados com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na segunda-feira 19, em São Paulo. “Se essa campanha pegar, eu penso que poderemos, em pouco tempo, ter um povo acreditando em si muito mais do que já acreditou em qualquer outro momento”, disse Lula.
A ofensiva publicitária, que é parte de um movimento mais amplo intitulado “O melhor do Brasil é o brasileiro” – frase extraída da obra do folclorista Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) –, surgiu a partir de pesquisas que detectaram cientificamente nosso complexo de inferioridade. No ano passado, o Instituto Latinobarómetro saiu às ruas de 17 países fazendo a mesma pergunta: você confia nos seus compatriotas? Ficamos na rabeira, com apenas 4% de respostas positivas. No Paraguai, o penúltimo da lista, o índice atingiu 8%, enquanto 17% dos argentinos e 36% dos uruguaios (os líderes) responderam sim. Outro levantamento, realizado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) em 2002, listou os pontos fracos do caráter brasileiro, na opinião popular. Deu falta de auto-estima na cabeça.
Virar o humor nacional é tarefa para gerações, mas a campanha, produzida e veiculada gratuitamente pelos envolvidos, sonha alto. “Se cada empresário se der conta da importância do movimento, ele pode movimentar a economia”, afirma Jaques Lewkowicz, o outro sócio da Lew Lara. O contrário também é verda-deiro. “A campanha é positiva, mas a economia precisa ajudar nessa virada”, diz o economista Julio Sergio Gomes de Almeida, do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi). De qualquer forma, os sinais de que entramos
numa rota positiva são cada vezmais intensos, o que deixa a tarefa coletiva de levantar a cabeça um pouco menos complicada.
O “slogan” de Câmara Cascudo será veiculado em toda comunicação do governo federal. Qualquer empresa poderá fazer o mesmo, desde que se engaje no movimento. “A julgar pelo slogan, ele daria um ótimo publicitário”, elogia Lula Vieira, também publicitário e historiador da propaganda.
Se encarada como publicidade oficial – o que não deixa de ser –, a campanha representa um avanço em relação ao passado. O foco no brasileiro e nas suas capacidades é, salvo alguma exceção pouco notável, inédito. Getúlio Vargas, por exemplo, se utilizava de todos os meios para lustrar sua imagem de “pai dos pobres”; o regime militar se sustentou na fama do “Brasil Grande”, auto-suficiente e imbatível, além de propagar o repulsivo “ame-o ou deixe-o”; mais recentemente, Fernando Collor vestia a camiseta do super-homem que nos tiraria da recessão e nos levaria ao mundo globalizado.
Nosso “complexo de vira-latas”, como dizia Nelson Rodrigues, está expresso em atitudes cotidianas.Frases como “só podia ser no Brasil” para se referir a eventos negativos e a oposta “parece coisa de Primeiro Mundo”, quando algo funciona bem, saem naturalmente. “A gente precisa quebrar esse paradigma mental”, diz Luiza Helena.
Autor de Inútil, um hino à nossa falta de autoconfiança, o músico Roger Moreira, do conjunto Ultraje a Rigor, diz que muita coisa mudou desde que escreveu os versos “A gente não sabemos tomar conta da gente/A gente não sabemos nem escovar os dente”, num longínquo 1982 (a música foi lançada no ano seguinte e estourou em 1985). “Muita coisa na música permanece atual, mas hoje temos mais informação e consciência política e somos menos atrasados em relação aos Estados Unidos”, afirma o guitarrista.
Inútil resumiu em poucas e mal traçadas linhas, propositalmente ofensivas às leis gramaticais, o Brasil dos extertores do regime militar. Cantar “a gente somos inútil” talvez fizesse sentido naquele momento, mas desde então votamos para presidente quatro vezes (“A gente não sabemos escolher presidente”), modernizamos nossa indústria automobilística (“A gente faz carro e não sabe guiar”) e ganhamos duas Copas do Mundo (“A gente joga bola e não consegue ganhar”).
O futebol, por si só, é um exemplo de que a virada é possível. Hoje somos os maiorais na disputa futebolística. Mas nem sempre foi assim, como conta a acadêmica Fátima Antunes no livro Com brasileiro, não há quem possa (Editora Unesp). Ela estudou as crônicas futebolísticas de três mestres atuantes nos anos 50: Nelson Rodrigues, seu irmão Mario Filho e José Lins do Rêgo. O Brasil já tinha seus craques, mas não conseguia transformar o talento em títulos, enquanto os argentinos e uruguaios se cansavam de levantar taças. Para decifrar a charada, o trio se dedicou a uma tarefa a que gente do porte de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda e o próprio Câmara Cascudo já se debruçava: estudar a alma brasileira, forjada a partir de uma mestiçagem única no mundo e submetida ao duro crivo da escravidão. Foi nos duros anos entre a derrota para o Uruguai no Maracanã em 1950 e a vitória na Copa da Suécia, em 1958, que Nelson Rodrigues cunhou a expressão “complexo de vira-latas”. De cachorro sem dono, passamos a ostentar o mais alto pedigree (a Taça Jules Rimet) em pouco menos de uma década.
O futebol pode nos servir de espelho. Mas o salto de qualidade passa pela sala de aula. A produção científica brasileira cresceu cinco vezes desde os anos 80, quando nos considerávamos inúteis. A cada ano, formamos seis mil doutores, segundo dados da Fundação Vanzolini, ligada à Universidade de São Paulo (USP). “Durante décadas, criticou-se a distância entre a universidade e a economia produtiva. Esse paradigma não é mais real”, diz o presidente da entidade, Marcelo Pessôa. É desse encontro entre a ciência e o capital que surge a tecnologia que movimenta a Embraer e impulsiona o agronegócio.
Curioso é que a imagem do brasileiro no Exterior contrasta com a que ele faz de si próprio. “Julgava que o problema de auto-estima era muito mais nosso do que vosso”, diz o português João Paulo Sequeira, um dos fundadores do movimento Portugal Positivo, criado para levantar o moral dos nossos patrícios. Ora pois, precisamos todos levantar a cabeça.