Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
indicou o delegado da Polícia Civil de São Paulo, Mauro Marcelo de Lima e Silva, para o comando da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), os serviços de informações do Exército, da Marinha e da Aeronáutica se mostraram resistentes. Isso porque o cargo sempre foi ocupado por militares ou por pessoas por eles indicadas. Além de não ter ligações com os militares, o perfil do delegado Mauro Marcelo é o oposto ao que foi construído pelos responsáveis pela chamada comunidade de informações nos últimos tempos. “Entendo o trabalho de informação e de inteligência como uma tarefa de Estado a serviço da sociedade e não para vigiar a sociedade”, diz o delegado de 44 anos. “Vamos acabar com essa história de abusos, de métodos ilegais de se obter informação e de arapongagem da vida alheia. Trabalharemos com transparência e só atuaremos dentro dos limites legais”, promete. Trata-se de um discurso coerente com a própria biografia do delegado.

Mauro Marcelo está há 18 anos na polícia e só colecionou elogios. Graduado em direito no Brasil, especializou-se na Universidade de Virgínia, nos EUA, formou-se na Academia Nacional do FBI e fez cursos no Japão, no Canadá e na França.
Fascinado pela tecnologia, desde os anos 80 Mauro Marcelo tem dito que para
uma polícia ser eficiente é mais importante um bom computador do que um
revólver. Sempre privilegiando a investigação com mais inteligência e menos brutalidade, ele se especializou em resolver crimes cometidos através da internet. Alheio à militância política, o delegado conheceu Lula em 1990, quando um afilhado do atual presidente fora sequestrado. “Não houve pagamento de resgate e prendemos todos os sequestradores”, lembra. “Isso me aproximou do presidente Lula, mas jamais tive ligações com o PT ou com qualquer outro partido.” De fato, o novo chefe da Abin parece transitar por várias tendências. Logo depois de ser indicado por Lula, ganhou o apoio público do senador Antero Paes de Barros, do Mato Grosso, um dos tucanos que mais batem no governo, e, há 15 dias, carrega no pulso direito uma fita do Senhor do Bonfim que lhe foi colocada pelo pefelista Antônio Carlos Magalhães, da Bahia.

Sem seguranças, Mauro Marcelo recebeu a reportagem de ISTOÉ na manhã do sábado 17 em sua casa. Após meia hora de entrevista, resolveu continuar, em
traje esportivo, numa mesinha na calçada de uma confeitaria nas Perdizes,
bairro de classe média de São Paulo. Um gesto que não costuma ser visto
quando se trata de agentes secretos.

ISTOÉ – Em seu discurso de posse, o sr. falou na criação de uma nova Abin. Como será essa nova agência?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

Será uma agência de inteligência que atue norteada pelos parâmetros legais. Uma atividade de Estado a serviço da sociedade e não deste ou daquele governo. Quando era SNI (Serviço Nacional de Informação), SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos) e mesmo no início da Abin, só quem tomou conta desse serviço foram os militares ou pessoas indicadas por eles. Agora não. Não tenho absolutamente nenhum relacionamento com os militares, não sou petista nem ligado a nenhum partido e tenho uma visão completamente diferenciada dos militares sobre o que é uma atividade de inteligência.

ISTOÉ – Como deve ser a atividade de inteligência no Brasil?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

Vamos acabar com esse estigma de que agente secreto pode prender, interrogar e matar, não necessariamente nessa ordem. O pessoal da Abin não pode prender, nem interrogar e muito menos matar. A Abin é o órgão central do sistema brasileiro de informação. Temos a inteligência da Polícia Federal, da Receita, das polícias estaduais, do Exército, da Marinha, da Aeronáutica… Temos pelo menos uns 15 grupos que integram o sistema brasileiro de informação. Não existe hierarquia, mas a Abin precisa ser a centralizadora. É preciso haver uma troca de informações para que o governo esteja apto a atuar.

ISTOÉ – É possível garantir que haverá essa troca de informações?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

Diante dos outros órgãos, principalmente os militares, a Abin tem uma falta de credibilidade. Tenho um duplo desafio: resgatar a credibilidade junto aos demais serviços de informação e junto à sociedade. Sempre que se fala em serviço de inteligência ou de informação, somos remetidos a um passado de arbitrariedades, abusos.

ISTOÉ – Como mudar isso?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

A ex-diretora da Abin era muito ligada ao general Alberto Cardoso. Quando ela assumiu, o general falou aos jornalistas: “Olha, essa é a nova diretora e vocês nunca farão entrevistas com ela.” Ora, colocar esse manto de segredo numa função dessas acaba levando o povo a achar que ali existem coisas irregulares. É evidente que o funcionário da Abin precisa ter o lapidar perfil discreto. Mas isso não se aplica ao diretor, que precisa se expor para que a sociedade perceba que estamos fazendo as coisas com transparência.

ISTOÉ – Dá para ser agente secreto com transparência?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

Estamos muito pautados por filmes de Hollywood e pela péssima experiência do passado, com todos os seus abusos. Mas a coisa não é assim. O serviço de inteligência – e isso é determinado por uma lei de 1999 – planeja e executa ações, inclusive sigilosas, na busca de informações que são analisadas e transformadas em inteligência para serem levadas às decisões governamentais.

ISTOÉ – Por exemplo.
Mauro Marcelo de Lima e Silva

Digamos que um navio afunde no Canal da Mancha e isso bloqueie o tráfego naval na região. Sei que temos 40 navios com soja do Brasil indo para lá e ficarão parados. Isso inevitavelmente trará problemas para a economia do País. Precisamos ter informações privilegiadas para vislumbrarmos cenários e propormos soluções. Precisamos nos reunir com o presidente e dizer: olha, aconteceu esse naufrágio e isso pode nos afetar desta ou daquela maneira. Temos que nos antecipar aos fatos.

ISTOÉ – Nesse exemplo o sr. só mencionou informações públicas.
Mauro Marcelo de Lima e Silva

Mas é isso que ocorre em quase 80% de nossa atividade. São informações obtidas por nossos correspondentes no Exterior, nos jornais, nas embaixadas, na internet. O segredo está nas análises dessas informações. Isso é transformar a informação em inteligência.

ISTOÉ – E os lobbies que atuam no governo e no Congresso. Isso também interessa à Abin?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

Claro. Todas as questões que interessam ao governo e à sociedade serão acompanhadas.

ISTOÉ – O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) é um alvo da Abin?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

Não o MST, mas a questão agrária, pois essa é uma demanda da sociedade. Sob meu comando não haverá em hipótese alguma essa idéia de infiltrar pessoas nos movimentos sociais. Mas vamos acompanhar tudo o que acontece. Há coisas em que o governo não pode ser surpreendido. Por exemplo, o MST invadiu uma delegacia na Bahia e libertou dois militantes. Isso pode acontecer em outros lugares. Preciso saber quantos integrantes do MST estão presos em outros lugares. Assim o governo pode se antecipar. Isso não significa que colocarei agentes disfarçados de sem-terra para obter informações. Seria absurdo. E veja bem, não estou dizendo que vamos acompanhar o MST, mas as demandas sociais.

ISTOÉ – O sr. disse que 80% do trabalho da Abin se faz com informações públicas. E os 20% restantes?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

São casos em que a Abin precisa buscar a informação negada. Aí é que mora o perigo, que pode trazer uma interpretação errônea de nosso trabalho, pois todo mundo vai dizer que a Abin faz grampo telefônico e coisas desse tipo. A informação negada necessita de vários estágios de apuração. O grampo talvez seja o último desses estágios.

ISTOÉ – A Abin faz grampo?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

Não fará. Por lei a Abin não pode fazer grampo. Mas são ferramentas de que precisamos: o grampo telefônico e o grampo ambiente. Para isso, vamos propor a médio prazo a aprovação de uma lei que autorize a Abin a reivindicar a autorização judicial para que sejam feitos grampos. Hoje, apenas a polícia e o Ministério Público podem reivindicar isso.

ISTOÉ – Em quais casos a Abin faria grampos autorizados?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

Vamos supor, por exemplo, que chegue a informação de que cientistas americanos estejam travestidos de uma ONG no meio da Amazônia fazendo biopirataria e usando telefone por satélite. Não tenho outro caminho,
preciso grampear esse telefone para saber o que eles estão fazendo. A Abin
precisa ter a prerrogativa de recorrer ao Judiciário e pedir o grampo telefônico.
Em todo o lugar do mundo é assim.

ISTOÉ – Mas isso não fará com que a Abin, direta ou indiretamente, sofra controle do Judiciário e do Ministério Público?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

Sim. Mas isso é ótimo. Isso é transparência.

ISTOÉ – Quais as outras maneiras além do grampo para se obter a informação negada?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

Podemos empregar alguém em uma empresa, por exemplo. Quer outra: se você vasculhar diariamente o lixo de minha casa, por exemplo, em uma semana terá um perfil de toda a minha família. Isso é legal, embora eticamente seja questionável. Nos Estados Unidos, o lixo, até que chegue no caminhão, é considerado algo de privacidade. Então, é muito engraçado. A polícia faz campana esperando o caminhão do lixo chegar e depois sai correndo para evitar que o lixeiro jogue tudo no caminhão. Mas quero deixar bem claro que não faremos nada ilegal. Vamos, sim, buscar ferramentas legislativas para que nossa atividade possa ser desenvolvida por inteiro.

ISTOÉ – A Abin possui fontes de informação remuneradas como os gansos ou os X-9 das polícias estaduais?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

Não posso ainda te dizer isso. Li recentemente que um diretor da Abin declarou que existe fonte remunerada. Acho que tem, mas não sei ainda a extensão disso.

ISTOÉ – A Abin também precisa trabalhar com a contra-informação?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

Sim, pois é nosso dever lidar com a chamada proteção do conhecimento sensível. O Brasil tem planos para situações estratégicas que precisam ser mantidos em sigilo. Também temos nossos trabalhos para antever ameaças endógenas e exógenas. Isso precisa ser protegido.

ISTOÉ – Mas nós temos ameaças internas?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

Claro. Na quero nomear grupos nem dar detalhes, mas temos o PCC, o Comando Vermelho. Coisas que são atribuições dos Estados, mas que ameaçam a segurança pública. E segurança pública é uma demanda da sociedade. E há questões mais amplas. Temos uma sala de emergência ao lado do gabinete do presidente. Quando acende a luz amarela, montamos imediatamente o gabinete de crise. Isso já aconteceu com a Sars, com o incêndio em Roraima.

ISTOÉ – No episódio Waldomiro Diniz (ex-assessor do Palácio do Planalto que mantinha ligações com bicheiros e donos de bingo), a Abin foi acusada de não fornecer as informações necessárias antes que o sujeito fosse nomeado para um cargo importante no governo. O sr. concorda com essas críticas?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

Veja, essa é uma demanda da Abin. Tenho certeza de que fui investigado antes de ser nomeado. Nenhum ministro nomeia ninguém sem passar pelo crivo da Abin, embora não tenhamos o poder de vetar ninguém. Por outro lado, não é correto que a Abin investigue pessoas. Então, somos condenados por fazer e também por não fazer.

ISTOÉ – O sr. fala em transparência e é evidente que durante as investigações muita coisa precisa ser mantida sob sigilo. Mas, depois de encerrada a investigação, a Abin irá divulgar todas as suas descobertas?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

Isso será tratado caso a caso. Com certeza teremos investigações cujos resultados necessariamente precisem ser mantidos sob absoluto sigilo

ISTOÉ – Que casos?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

O País tem seus segredos estratégicos. Digamos, hipoteticamente, que a Abin descubra a presença de um agente estrangeiro em um trabalho de pesquisa brasileira sobre enriquecimento de urânio para fins pacíficos. Divulgar essa descoberta iria expor nossos segredos estratégicos.

ISTOÉ – Quantos funcionários tem a Abin?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

No Brasil somos 1.800, mas há gente na Argentina e em Miami. Esses não posso, por uma questão estratégica, revelar quantos são. Este ano, ainda pretendemos colocar nosso pessoal no Paraguai e na Colômbia.

ISTOÉ – No Paraguai é por causa da eventual existência de grupos terroristas na tríplice fronteira?
Mauro Marcelo de Lima e Silva

A posição do governo Lula e, portanto, do Estado brasileiro, é que não há grupos terroristas na tríplice fronteira. Mas não podemos ser surpreendidos e vamos analisar tudo o que esteja ocorrendo na região.