04/08/2004 - 10:00
Ser mãe é padecer no paraíso. Ser
pai é ter o privilégio de ser condecorado herói pelo filho logo nos primeiros meses de vida. “A mãe segura o bebê com os braços em forma de concha, o
que dá uma sensação de proteção e acalento. A forma como o pai segura o filho, desajeitado, permite que a criança perceba que há um mundo a sua volta”, explica o psicólogo da Pontifícia Universidade Católica (PUC) Haim Grunspum. “Instintiva-mente, o bebê considera o pai a figura forte nesse ambiente que ainda não conhece”, completa o especialista.
Com o passar dos anos, o mito do pai herói diminui ou até acaba. Afinal, papai também é humano e tem uma série de pontos fracos. Muitos conseguem manter a imagem do paizão herói. Até porque eles são, literalmente, heróis. Caso do piloto da Esquadrilha da Fumaça Ricardo Beltran Crespo, do piloto de Stock Car Guto Negrão, do policial Nestor Gomes e do professor Helio Teixeira – que salvou seu filho Alexandre das mandíbulas de um crocodilo. Cada um a seu modo fortalece a idéia de heroísmo no imaginário de seus rebentos. E são infalíveis nessa difícil missão.
Circo voador
Para o Super-Homem voar, basta querer. Já o major Ricardo Beltran Crespo, 35 anos, precisa do caça T-27 Tucano da Esquadrilha da Fumaça, que corta o ar a mais de 400 quilômetros por hora. Viajando pelo céu, ambos são heróis. Durante a segunda quinzena de junho e a primeira de julho, os pilotos da Esquadrilha apresentaram suas acrobacias em 12 cidades do Norte do País e na cidade de Rio Negro, na Colômbia. Em todas as demonstrações do chamado Circuito Norte havia uma multidão em terra, hipnotizada, de olho nas evoluções. Segundo a Esquadrilha, em Rio Branco (AC), a platéia era de 50 mil pessoas. “As pessoas pedem autógrafos e fotos ao nosso lado. Algumas querem nos tocar, como se não acreditassem que somos reais, e outras chegam a chorar”, diz Crespo.
Além dos admiradores em cada cidade que passa, o major tem três fãs em sua casa, na vila militar da Academia da Força Aérea (AFA), em Pirassununga, interior de São Paulo: a esposa, Rita, as filhas, Yasmin, nove anos, e Isadora, sete. Durante a semana, o trabalho de Crespo é cuidar da seção de pessoal do Esquadrão de Demonstração Aérea, nome oficial da Esquadrilha. Vôos, no máximo dois por semana, rotina bem diferente das duas saídas diárias do primeiro mês de treinamento dos fumaceiros, como os pilotos são conhecidos. “Quando sobrevoamos a vila, soltamos um pouco de fumaça e balançamos os aviões”, conta o major. A filha Isadora corre para a janela sempre que ouve o barulho dos caças.
A rotina de demonstrações nos finais de semana afasta o pai da família. “No Dia dos Pais do ano passado, ele não pôde ir à festa que preparamos na escola. Eu fiquei um pouco chateada, mas gosto muito do trabalho dele”, diz Yasmin. Para Crespo e Rita, as filhas assimilam bem a ausência do pai.
Elas sabem o quanto ele gosta de voar na Esquadrilha. A convivência com aviões é tanta – o casal está baseado na AFA desde 1995 – que Isadora já vestiu as pesadas botas do pai e Yasmin, aos três anos, construiu um avião de travesseiros com chinelos no lugar das asas e uma fralda de pano no lugar do capacete. A apresentação do domingo que vem está marcada, e este ano Yasmin não terá com o que se preocupar. As acrobacias serão feitas em Pirassununga e devem dar mais graça à festa de Dia dos Pais.
Projeto-piloto
André Negrão, 12 anos, não pára. Circula entre os carros de uma oficina mecânica em Campinas e mostra o barulho dos motores envenenados da Brasília cor de abóbora, 1974, e do Fusca chumbo-metálico 1993 do pai, o empresário Guto Negrão, 45 anos. “O que me atrai no automobilismo? A velocidade. O velocímetro é a primeira coisa que olho em todos os carros”, diz André, agora sentado no cockpit do veículo da foto. “Antes eu acompanhava o (Juan Pablo) Montoya, hoje eu acompanho ele”, fala, apontando para o pai. Todo domingo de corrida, como o deste final de semana, André acorda cedo para assistir pela tevê às provas de Guto no Campeonato Brasileiro de Stock Car V8, no qual ocupa a sexta colocação. O próximo domingo, porém, será dia de reunir toda a família em torno do avô paterno, como ocorre nos Dias dos Pais, das Mães e no Natal.
O clã tem intimidade com o automobilismo. Além de Guto, que já disputou os campeonatos brasileiros de Fórmula Ford, de Marcas, de Fórmula Uno e de Fórmula Fiat de Turismo, Xandy e Xandinho Negrão – irmão e sobrinho de Guto – também são pilotos. Os três lideram o Campeonato Brasileiro de Endurance. Mesmo com tanta gasolina por perto, o interesse de André pelo kart começou neste ano, após assistir à corrida de um primo. “Eu sempre esperei que ele pedisse para começar a correr”, afirma Guto. “Quase toda quarta-feira, meu pai me pega na escola e me leva para o treino de kart. Ele é o meu técnico”, diz André. Muito mais do que passar conselhos de corrida, Guto aproveita esses momentos para se aproximar do filho. “Eu tinha um receio muito grande de falar com o meu pai, e com o André eu faço justamente o contrário. Tento deixá-lo à vontade para conversar comigo sobre a escola, os amigos e as meninas”, conta.
Para o piloto, a admiração de André por ele está baseada na convivência diária, e não no fato de vestir macacão e capacete e rodar em um carro a 200 quilômetros por hora. “Eu levanto às seis da manhã, acordo o André com um beijo e preparo o café da manhã dele e das meninas (as filhas Isabella, 18 anos, e Renata, 16). Depois, eles vão para o colégio e a faculdade e eu vou trabalhar. Sempre que possível vou buscá-lo na escola. Sem dúvida, isso é muito mais importante do que aparecer na televisão com aquela espécie de armadura.” André também veste sua “armadura” e tem um capacete idêntico ao do pai. O garoto adora velocidade, mas tem outras vocações: é um apaixonado por helicópteros. Quem sabe o clã Negrão não ganha um outro tipo de piloto.
Um baterista no telhado
O investigador Nelson Gomes, 42 anos, está sempre no ar, num helicóptero Esquilo AS50 blindado, de fabricação francesa, montado em Itajubá, interior de São Paulo. Ele e seus parceiros
são os primeiros a chegar em rebe-
liões de presídios ou cativeiros de sequestrados. “Aqui é só adrenalina, não tem ocorrência fraca. É bandido bem armado que sabe atirar. Não temos tempo de errar”, diz. Há 15 anos na polícia, o baterista de rock e jazz nas horas vagas trabalha no Serviço Aerotático da Polícia Civil, dentro do Campo de Marte, na zona norte, em São Paulo. Lugar que conhece bem, desde os tempos de criança, quando ia ver avião subir, avião descer. Piloto civil de helicóptero, atua como tripulante no Esquilo da Polícia. Numa tarde de janeiro deste ano, foi alçado à condição de celebridade instantânea como estrela involuntária dos programas jornalísticos vespertinos.
Do helicóptero, acabara de localizar oito carros depenados na região de São
Mateus, zona leste. Voltava à base quando, na altura do córrego Aricanduva, viu
vários helicópteros da Polícia Militar sobrevoando casas quase encobertas pelas águas da enchente. Avistou uma criança e um senhor de idade ilhados num muro, cercados de água em que boiavam ratos e baratas. Por se tratar de uma criança muito pequena, a equipe optou por não içá-la pelo cesto de salvamento. Ela podia escorregar. O helicóptero se aproximou, desviando-se de instalações elétricas, a alguns centímetros do telhado de barro, liso e escorregadio. O policial foi pisando nas emendas do telhado e se aproximou do garoto, que, mais tarde saberia, se chamava João Victor e tinha quatro anos, praticamente a idade de seu filho, Daniel. O menino estava assustado. O barulho da imensa máquina sob sua cabeça, o frio, a chuva… “Abraça o tio bem forte, senão vamos cair os dois”, avisou Gomes, lembrando de quando costumava brincar com o filho, apertando-o bem forte. “Foi um alívio quando vi que meus pés estavam no esqui e o menino dentro do helicóptero.” A cena, flagrada por várias emissoras, foi destaque das transmissões ao vivo e dos telejornais da noite. Gomes virou o herói do dia. “Não imaginava tamanha repercussão, mas foi bom para a instituição.”
No dia seguinte, a façanha do pai era o assunto principal na escolinha onde estuda. Daniel adora super-heróis, mas, para ele, seu pai é apenas um companheiro de brincadeiras. No dia das fotos, surgiu no Aerotático vestido de Zorro. Trazia três espadas de plástico com as pontas quebradas pelo excesso de duelos. Como Gomes também faz faculdade de música, pouco vê o filho. “Quando nos encontramos, brincamos até ele desmaiar de sono.” No futuro, Daniel talvez nem se lembre daquela tarde de heroísmo do pai. Mas a imagem de bom policial encarnada por Nelson Gomes deverá ser eterna.
Indiana-pai
O que faria um pacato professor de economia paulistano ser alçado à condição de herói? A resposta é simples: qualquer pai seria capaz de um ato de coragem ao ver o filho em uma situação de perigo. No caso do professor-herói Hélio Janny Teixeira a história até que poderia virar filme, daqueles com fortes emoções. Imagine a cena: papai, mamãe e seus três filhos circulam de bicicleta em um parque, numa tarde ensolarada. Um dos meninos se desequilibra, cai em um canal e é atacado por um crocodilo. Ao ver a cena, o pai pula na água, segura o animal pela mandíbula e consegue resgatar o garoto. Depois de três dias de internação, a criança se recupera bem dos ferimentos. Antes do The End e dos créditos de encerramento na telona, a família aparece feliz, num passeio na Disney.
No entanto, a história é real e aconteceu em 1996, em um parque de Miami, nos Estados Unidos. O professor da Universidade de São Paulo (USP) e sua família passavam férias por lá e o acidente aconteceu com o estudante Alexandre de Almeida Janny Teixeira, hoje com 15 anos. Com a mordida do crocodilo, o estudante teve duas costelas quebradas e o pulmão perfurado. Passado o susto, a família teve uma surpresa: comovidos com a história, empresários da Disney ofereceram um passeio para toda a família.
Felizmente, o acidente não deixou traumas nem sequelas. “Não lembro de quase nada. Quando caí no canal, desmaiei”, conta Alexandre. Mesmo com o susto, o adolescente fala do caso com bom humor. “Durante um bom tempo, meus colegas tiravam sarro. Meu apelido era Jacaré.”
Segundo Hélio, os laços entre pai e filho foram fortalecidos com o ocorrido. “Vivemos um episódio fora do comum, mas não deixamos isso tomar conta da nossa vida. Nunca deixei que o Alexandre criasse um mito de que eu era herói. Quero que ele seja o protagonista de sua própria história”, revela o professor. E, nessa empreitada, mais uma vez o paizão-herói é bem-sucedido. Alexandre é um aluno aplicado e caminha a passos firmes para se tornar um tenista profissional. “Meu filho é um bom jogador e tenho certeza que será um campeão.” Papai-coruja acompanha tudo de perto: da alimentação do tenista aos horários das competições. Mesmo com Hélio negando sua condição de herói, para Alexandre não resta a menor de dúvida de que seu pai é um verdadeiro representante da categoria. Mas não por causa do episódio. “Sinto muito orgulho do meu pai porque ele participa da minha vida e sempre está presente nas horas mais importantes”, gaba-se o filho-coruja.