12/10/2005 - 10:00
Das favelas cariocas para as de Nairóbi, a novidade é a forma como os miseráveis são usados. O cineasta paulista Fernando Meirelles, 50 anos, mostrou o flagelo que é viver sob o domínio do tráfico numa favela carioca em Cidade de Deus e, agora, acusa a indústria farmacêutica de usar favelados africanos como cobaias em testes para novas drogas em O jardineiro fiel, que estréia na sexta-feira 14. O filme, uma produção inglesa estrelada por Ralph Fiennes, atualmente está entre os dez mais vistos nos Estados Unidos e participou do Festival de Veneza. Meirelles começou sua carreira como publicitário e revela, nesta entrevista a ISTOÉ, que sua produtora se recusou a gravar cenas que seriam usadas em falsa denúncia em uma campanha do PMDB para governador no Paraná. Isso fez com que decidisse nunca mais trabalhar com políticos no Brasil.
ISTOÉ – O sr. já trabalhou com publicidade. Fez campanhas políticas?
Conhece o esquema de caixa 2?
Meirelles – Fizemos programas de horário eleitoral para o PT e o PSDB e a
produtora da qual sou sócio fez uma campanha para o PMDB, no Paraná, na
década de 80. Eu não participei diretamente, a produção estava com meu sócio, Marcelo Machado. Nessa campanha, cometemos a estupidez de dar um recibo em vez de nota fiscal para o partido, como eles tinham sugerido, e levamos uma multa que quase fechou a produtora. Vou revelar algo que fez com que decidíssemos nunca mais trabalhar com políticos. O publicitário forte da campanha fez uma bagunça geral no escritório dele, chamou nossa equipe, uma garotada de 20 e poucos anos na época, e mandou gravar porque pretendia mostrar as imagens no programa da tevê como uma denúncia. Iriam dizer que a sede tinha sido invadida pelo candidato a governador concorrente. A equipe se negou a gravar, houve briga, foi péssimo. Não vou citar nomes. Os caras estão aí, hoje, falando bonito nos jornais, são paladinos da moralidade (Meirelles era sócio da produtora Olhar Eletrônico, que fez a campanha do PMDB, em 1986, cujo candidato a governador era Álvaro Dias, hoje senador (PSDB-PR).
ISTOÉ – Tem acompanhado a crise política? Qual é a sua opinião?
Meirelles – Claro que não estamos vendo coisas exclusivas do PT. O que o PT está fazendo é o que sempre foi feito, só que era encoberto. O que mudou foi a imprensa, que está mais ativa. Tudo está vindo à tona e eu acho absolutamente saudável isso. A prisão de Paulo Maluf, algo há tantos anos esperado, finalmente aconteceu. Esses novos procuradores estão mudando a cara do Brasil realmente. Eles não se deixam comprar, não se dobram. A vergonha são os juízes. A sociedade consegue cercar o cara e o Tribunal Federal libera. Entre prender um juiz ou um deputado, eu prefiro prender o juiz, acho que é melhor para o País. As coisas estão acontecendo, eu estou animado. Mais de 27 dirigentes de estatais já foram afastados, a cúpula do governo foi rebaixada. Acho que estamos amadurecendo, a democracia está estável, a economia idem, o dólar está baixando, a Bolsa subindo. Trágico é o Congresso que temos. Como é que aquelas pessoas podem comandar o País se não sabem respeitar filas, sentar num auditório e ouvir, fazer perguntas? É patético.
ISTOÉ – O sr. tem recebido muitas propostas internacionais? O que
o seduziu para fazer O jardineiro fiel?
Meirelles – Sim, muitas. Mas resolvi inverter. Em vez de eles me mandarem
um roteiro, eu é que faço o roteiro e ligo perguntando: quer financiar meu filme?
Em vez de eu dirigir os filmes deles, estou pedindo para eles produzirem os
meus. O convite para OJardineiro fiel veio no momento certo. Eu estava escrevendo Intolerância e meio em crise com o roteiro. E, claro, me interessei pelo tema. Um filme que tem a indústria farmacêutica como vilã me pareceu muito adequado.
E com uma história de amor bonita.
ISTOÉ – E também uma favela…
Meirelles – Não. Na verdade, no primeiro roteiro nem tinha cenas em Kibera (favela de Nairóbi, no Quênia). Eu é que acabei incluindo a favela. Quando conheci Kibera, fiquei muito impressionado.
ISTOÉ – Mesmo conhecendo bem as favelas brasileiras?
Meirelles – É bem diferente, para pior. Não tem água corrente, as pessoas têm de andar quilômetros com galão para buscar água para cozinhar, lavar. Não tem saneamento, não tem luz elétrica. Aqui, todo mundo tem tevê nas favelas. A história de Jardineiro fiel fala da indústria farmacêutica usando africanos como cobaias; então achei que seria razoável mostrar onde moram, como moram as cobaias.
ISTOÉ – Como é possível conviver com isso?
Meirelles – Não é possível. O filme fala também sobre como as corporações usam a miséria. Drogas precisam ser testadas porque vão beneficiar, teoricamente, todo mundo. As pessoas assinam um consentimento, mas muitas não sabem que estão testando. Mesmo que soubessem, acho que aceitariam para ganhar, em troca, medicamentos para a família, já que não têm acesso ao sistema de saúde. Essa mesma indústria, quando vai testar um medicamento nos Estados Unidos ou no Canadá, por exemplo, diz no contrato que vai fazer um teste e paga um salário. Afinal, isso vai ser vendido no futuro. O Brasil faz licenciamento compulsivo de várias drogas. Toda vez que o governo tenta diminuir o custo, a indústria não quer. Acompanho esse processo, li tudo sobre a guerra do José Serra, quando era ministro da Saúde, com a indústria aqui no Brasil, na época dos genéricos. O filme mostra que os políticos controlam nossa vida, mas as corporações controlam a vida dos políticos.
"Jamais um filme tinha sido vendido por US$ 2 milhões, que foi por quanto vendi Cidade de Deus" |
ISTOÉ – Cidade de Deus custou
US$ 3 milhões, e metade desse dinheiro
saiu de seu próprio bolso. O jardineiro fiel
teve US$ 25 milhões captados por investidores. Isso faz diferença?
Meirelles –
Faz. Mas, quando eu rodava
Cidade de Deus
, estava tão empolgado que nem pensava nisso, ia passando um monte de cheque em branco. Só na hora em que acabei de filmar é que fui ver as contas e levar o susto. Para o padrão americano, o orçamento de
O jardineiro fiel
não é grande. Um filme médio consome perto de US$ 40 milhões. Mas para mim foi folgado: tive tudo o que quis e precisei.
ISTOÉ – O sr. deve ter ganhado muito dinheiro com Cidade de Deus,
já que é o produtor.
Meirelles – Não. Por causa do contrato que assinei com a Miramax. Eu banquei a produção, montei, dediquei três anos de trabalho. No fim, eu tinha nas mãos a fitinha de um filme feito na favela, com atores desconhecidos, filmado no Brasil, falado em português, e estava cheio de dívidas. A Miramax me propôs uma quantia que achei ótima, mas num contrato com cláusulas muito desfavoráveis. Jamais um filme brasileiro tinha sido vendido por US$ 2 milhões, que foi por quanto eu acho que vendi. Fiquei feliz na época. Mas, na hora de recuperar, você não recupera nunca.
ISTOÉ – Qual é o tema central de Intolerância?
Meirelles – Globalização. As diferenças dos tipos de vida em volta do planeta e como estão ligadas. É uma leitura mais filosófica sobre ricos e pobres, felicidade, o que estamos fazendo aqui, o que somos… Estou com outro projeto que também aborda a filosofia, só que menorzinho, mas não quero falar muito ainda.
ISTOÉ – Projeto pequeno, barato, sem atores famosos?
Meirelles – Pequeno, barato, com atores famosos. Mudou um pouquinho a minha escala de barato. Agora, barato para mim é caro para o cinema brasileiro. As portas do financiamento externo se abriram.
ISTOÉ – O cinema brasileiro pode sobreviver sozinho?
Meirelles – O mercado brasileiro não paga um filme que custe mais de US$ 1 milhão. De cada 40, um tem o destino de 2 filhos de Francisco, que se paga. Entrar no mercado internacional aumenta a receita do filme e pode atrair investidores para o cinema brasileiro. Quando alguns colegas planejam financiar filmes aqui, pensam em lei de incentivo, o governo paga e pronto. A Rede Globo está começando a financiar filmes e a Columbia está interessada. Isso é bom. Quanto mais possibilidades, melhor.
ISTOÉ – O Jardineiro fiel é um filme comercial?
Meirelles – É comercial. Me surpreendeu ter ido para o Festival de Veneza. É voltado para o grande público, não é um blockbuster, mas está funcionando. Nos Estados Unidos, está fechando US$ 30 milhões em 5 semanas. Está bem. Está na lista dos dez mais vistos.
ISTOÉ – Quanto é necessário para fazer um filme decente?
Meirelles – Não é quanto, é o quê. Se tiver um bom roteiro, um bom ator, pega um VHS e fica um filme genial. No fundo é isso que conta.
ISTOÉ – O sr. viu 2 filhos de Francisco? Acha que tem chances na disputa pelo Oscar?
Meirelles – Vi e gostei muito. Acho que é cinema popular brasileiro da melhor qualidade. A história tem os elementos necessários para o gosto do júri da Academia: um pai que tem um sonho para os filhos, que vai até o limite. Qualquer um entende, em qualquer lugar. O ponto é que, para conseguir nomeação, tem de conseguir um distribuidor americano, fazer a campanha – mandar fita para todo mundo, realizar projeções para os acadêmicos, fazer certa publicidade. O filme mesmo conta 40%. Os 60% restantes são esse trabalho que é feito.